VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Personas non gratas: Kim Dotcom, Julian Assange, sem-tetos do Pinheirinho etc.

Depois da detenção de Julian Assange, criador do Wikileaks, a repressão internacional organizada deu um outro passo rumo ao cerceamento da internet como espaço de distribuição de informações e produtos culturais: o fechamento do Megaupload e a prisão de seu proprietário, Kim "Dotcom" Schmitz.

Não tenho a intenção de aquilatar (sem maldade, por favor) Kim Dotcom e Assange. Este é um ativista aguerrido, decerto com suas contradições, mas admirável pela coragem com que expôs documentos importantes, entre eles testemunhos sinistros das barbáries cometidas em nome da "democracia ocidental"; o outro, um empresário que angariou lucros fabulosos com uma prática discutível - a de fornecer suporte para o armazenamento de produtos não raro protegidos por lei - mas que também exprime uma potência irrefreável da internet enquanto locus e socius virtuais: a de transcender as determinações puramente mercadológias, por mais que estas ainda a intrumentalizem e cerceiem.

A reivindicação de uma internet livre passa, necessariamente, pelo reconhecimento dessa potência e sua legitimidade, e nesse sentido trabalhos como o do Megaupload estão a serviço desse "ideal". Sem que deixe de ser verdade que o próprio Megaupload constitua, em si mesmo, um grande empreendimento capitalista. E sem que se torne imperioso reconhecer, também, que o tipo de prática propiciada e, ninguém se engana, estimulada por Dotcom prejudica muita gente - e não apenas grandes empresários mas também artistas e artesões culturais de todo tipo.

O que tudo isso expõe, no fim das contas, é uma tensão que o velho monstro SIST prefere tratar de forma maniqueísta, vitimizando-se. Num polo dessa tensão está a demanda de cultura e informação e de outro seu cerceamento político e, principalmente, econômico, em nome do sagrado direito a todo lucro possível.

Tensão semelhante à que vimos eclodir em São José dos Campos, embora de forma mais crua, com a premência do desastre social e a violência institucional explícita, tão típica de nossa tradição autoritária. Refiro-me, naturalmente, ao desmanche forçado da comunidade Pinheirinho, que ocupava, como se sabe, um terreno de propriedade do especulador Naji Nahas. Pois esses cidadãos - que eu me eximo de julgar do ponto de vista legal ou mesmo moral, mesmo porque não conheço detalhes da questão - têm em comum com Dotcom e Assange o fato de se apropriarem de propriedades ou espaços alheios e se tornarem, dessa forma, pedras no sapato de um sistema em ruínas.

Assange declarou esses dias, quando do anúncio de um programa de televisão, que a internet nunca foi ao mesmo tempo tão forte e tão ameaçada. No nosso caso, porém, essa força é muito incipiente: ainda parece longe o dia em que a sociedade brasileira se mobilizará em massa - ainda que no âmbito de nossas zonas de conforto virtualizadas - por algo mais que, digamos, aquela moça que veio do Canadá, e, ao invés de catapultar as vendas de um empresário do setor de imóveis, será capaz de exigir essa grande demanda social de nosso grande país de grandes proprietários que é uma reforma agrária de verdade.

Mas esse dia chegará, ou não chegaremos a lugar nenhum.


P.S.-
Eu sei que o plural de persona non grata é "personae non gratae", e alguém talvez censure o plural "sem tetos", mas a mim é que a gramática, "viva" ou morta, não é muito grata... O que, aliás, me serve de deixa pra recomendar a "novela linguística" - e um panfleto contra o preconceito linguístico - de Marcos Bagno, A língua de Eulália, disponível em versão digitalizada no site da UFSC e à venda, novo, no Mercado Livre e usado na Estante Virtual. Não é "alta literatura", mas uma discussão necessária.

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