VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

sábado, 20 de julho de 2013

Sonhos de uma Noite de Verão


Numa bela noite de verão, num boteco muito distante, a cerveja Skol de garrafa, reinando absoluta em todas as mesas, sonhou ter uma filha que descesse redondo como a lua cheia e fosse dourada como o sol. Ela contou seu lindo sonho ao marido Marlboro e, logo no verão seguinte, nascia Skol latinha, brilhante como a luz do meio-dia e refrescante como a brisa da manhã.

Mas infelizmente a rainha não sobreviveu ao nascimento da filha, pois é muito difícil uma garrafa dar à luz uma latinha sem quebrar o gargalo.

Embora amasse ardentemente a falecida esposa, o rei Marlboro foi advertido pelo Ministério da Saúde para que procurasse com urgência uma nova rainha, pois Skol latinha e o povo do bar não podiam permanecer órfãos por mais tempo.

Marlboro então escolheu para segunda esposa a Bohemia de garrafa, estupidamente gelada.

Acontece que a Bohemia era mais cara e, apesar de muito gostosa, sua vaidade era tanta que lhe impedia de substituir a antiga rainha. Ela não era tão popular entre os fregueses e não tinha o menor amor pela enteada. Além disso, passava o dia inteiro mirando-se num cinzeiro prateado e repetindo a mesma pergunta:

– Cinzeiro, cinzeiro meu, quem é a mais gostosa dentre todas as cervejas deste bar?

E o cinzeiro respondia:

– É a Bohemia, minha senhora!

Com o passar do tempo, porém, a Skol latinha ia gelando no freezer e ficando cada vez melhor, até que o cinzeiro mágico foi obrigado a dizer:

– Minha senhora, a Bohemia continua tão gostosa quanto antes, mas agora a Skol latinha é a mais apreciada dentre todas as cervejas daqui, pois, mesmo sendo em lata, sai mais em conta por causa de uma promoção do Carrefour!

Conhecendo a sinceridade do cinzeiro – que, apesar de fosco por causa das cinzas, refletia a realidade como nenhum outro –, a rainha Bohemia chamou o garçom e lhe ordenou que sumisse imediatamente com a Skol latinha, que lhe arrancasse o coração e jogasse suas tripas aos cães selvagens.

Mas o garçom estava sóbrio...

E é por isso que, até hoje, os cães selvagens não bebem cerveja em lata!

Fábio  Dobashi Furuzato

terça-feira, 16 de julho de 2013

Duas lições inseteístas



Para Luciano Alonso,
Jânder Baltazar Rodigues
e Irwing dos Teclados.

Inocência


Entomologia,
minha grande paixão desesperada.
(Desesperada
em sentido etimológico:
que desistiu de esperar por mim.)
Amo tanto os insetos
que tenho a secreta esperança
de que Deus seja um:
não uma barata, pois já matei muitas,
mas quem sabe um grilo, ou,
de preferência,
uma formiga.
Dessas,
a única que torturei até a morte
foi com a mesma inocência
(conforme está escrito)
com que os eleitos O pregaram na cruz.

 


Ponderação


Essa fruta tem um dono
– e vou respeitá-lo.
Em primeiro lugar,
porque talvez ele seja inocente,
e nunca tenha pensado, por exemplo,
que a propriedade é uma grande
e um tanto quanto perigosa
piada.
Mas também porque,
ao contrário do que geralmente se pensa,
talvez ele pense.
E pense, por exemplo, que eu sou um deus.
E nada pior do que um deus
que mata e fere
(e humilha,
julga, subjuga
e segrega)
seus semelhantes.

sábado, 13 de julho de 2013

Em louvor a um Lobisomem

Jam Session dos Lobisomens no Holandês Voador
(CLIQUE AQUI)






Este post deveria ter sido publicado ontem, mas não consegui anexar o vídeo linkado acima a tempo. Minha vontade, agora, era falar da reabertura do Holândes: o show heróico do George à frente d'O Lixo e a Fúria, o show arrasa-quarteirão dos Strangers... Enfim, fica pra outra hora.


Outro dia meu amigo Volmir Cardoso Pereira honrou este blog com uma elegia para uma cafeteira, e hoje eu talvez o desonre com este louvor a um Lobisomem – que além do constrangimento dessa forma humilde talvez deixe o próprio Lobisomem em questão constrangido, se ele for um desses cristãos que insistem que só o que se louva é Cristo. Mas Douglas Almeida saberá me perdoar – os cristãos devem sabê-lo –, pois sabe (já lhe disse isso) que eu vejo a música dos Lobisomens como algo semelhante ao que seu livro preferido chamou de o Espírito de Deus pairando, ou melhor – e com o perdão da correção –, movendo-se sobre as águas.

E também porque saberá que esse louvor é uma homenagem não só a ele mas ao Holandês Voador, o templo sacromundano do rock em Campo Grande, bravia e insistentemente erguido e reerguido depois de cada temporal por seu sumo capitão George, outra fera indomável do rock bigfieldense à frente do grandioso O Lixo e a Fúria. Homenagem esta, esclareço, que publico no dia de outra valente reemersão de nosso barco-fantasma das águas de um semiostracismo imposto pelos senhores da Lei.

Também preciso esclarecer que essa “homenagem” é também a amortização de uma dívida contraída com os próprios Lobisomens, aos quais pedi que fizessem a session linkada neste post, com a esperança de fazer um bom registro do som deles, que pudesse ser distribuído com um zine que, pelo visto, não verá a luz do dia.

Essa não foi, provavelmente, a melhor apresentação dos Lobisomens. Em primeiro lugar, porque a platéia era pequena, e os urros cá embaixo que ajudam a tornar os três monstros lá em cima ainda mais monstruosos foram relativamente poucos. Em segundo lugar porque o baixo tocado por Fabrício, pego desprevenido, foi arranjado ali no palco mesmo e, ale de ter um timbre seco de doer as têmporas, era simplesmente inafinável.

Mesmo assim foi outra apresentação monstruosa, e é provavelmente o registro de melhor qualidade sonora dos Lobisomens. Por obra de um azar muito tipicamente meu, a bateria acabou faltando poucos segundos do gran finale, um arregaço completo que ficará a cargo do ouvinte imaginar, se não preferir deixar o som prosseguir infinitamente em sua cabeça.

Mas, como eu dizia, esst post é um louvor a um Lobisomem.

Douglas Almeida é, certamente, um dos melhores guitarristas (senão o melhor) em atividade hoje em Campo Grande. Eu me lembro uma vez que, ao fim de uma session assombrosa, eu disse a ele: “Você é o lobisomem”. Foi a segunda ou terceira vez que eu vi esse trio de jazz-demolição-transcendental (na definição deles mesmos) em ação, e mais uma vez em que, como sempre, eu me assombrava – é a única palavra, mesmo – com o que eles faziam no palco, numa noite em que Douglas tinha estraçalhado como nunca seu instrumento. Ele, por sua vez, balançou a cabeça, enfadado com minha tietagem, e riu: “Que é isso, o lobisomem...”.

Mas Douglas Almeida entendeu o que eu queria dizer: os Lobisomens são mesmo monstruosos, mas o que ele faz é mais monstruoso que tudo. O baixo de Fabrício é rítmica e melodicamente muito rico e muito louco – é a alma jazzística da banda –, a bateria de Leandro é de uma força e, igualmente, uma ritmicidade que, quando se unem, fazem coisas inacreditáveis, mas a guitarra de Douglas une tudo isso: a força, o ritmo e a riqueza – quando não a delicadeza – melódica.

Bom, se isso que chamei de “uma homenagem” quisesse fazer alguma justiça à trabalheira que os Lobisomens tiveram a meu pedido, este post deveria ser algo como uma descrição espiritual-fenomenológica de cada segundo do que acontece nesse link. Mas minhas palavras têm muito pouca música pra impedir que essa “justiça” desande em puro tédio. O melhor é deixar que meu leitor – se é que eu ainda tenho algum – ouça o máximo que puder do registro abaixo.

Não é uma apresentação perfeita. A segunda ou terceira música tem trechos bem desarmônicos, mas mesmo nessas horas os Lobisomens são monstruosos. Quando se entendem, e esse entendimento evolui, fazem algo próximo do divino. Além disso, ao contrário do que eu pensava (só ontem ouvi a gravação inteira), trata-se de um registro sonoro bem razoável do talento de Douglas com sua guitarra rascante e veloz, que não raro desafia a distinção entre base e solo, criando verdadeiros riffs solantes, e é às vezes tão incrível que parece haver não uma, mas duas guitarras no palco.

Falta dizer que este post é uma homenagem, também, a’O Lixo e a Fúria de George & Confraria e ainda à Srangers, outra banda magnífica, capitaneada pelo carismático Wille Bruno e que também toca hoje na reabertura do Holandês Voador. E também cujo baixista, Irwing dos Teclados, é um ateu militante que eu tive a honra de ver tocando junto com os também militantes – mas cristãos militantes – Douglas Almeida e Leandro Dourado, em instantes igualmente sacramentados no Estar-Sendo Infinito do Caos-Cosmos.

Mais uma prova de que a música transcende todas as fronteiras. Se este mundo tem algo parecido com uma salvação, ela passa por alguma coisa que está acima da religião e mesmo da política, e que é essa coisa semelhante ao Espírito de Deus (ou dos deuses, e das deusas, ou do Espaço-Tempo, ou do que quer que seja), não pairando, mas se movendo dentro e fora de nós: a Música.

Então viva a Música, viva o Rock, viva a Liberdade, vida longa ao Holandês Voador!

Foto de Kojiroh

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Elegia para uma cafeteira quebrada


 

ntem de manhã, o pino do suporte de plástico do coador com filtro de papel da minha cafeteira quebrou. Não deu pra tomar o cafezinho matutino e o meu quatro de julho de 2013 começou mal. O pino do suporte de plástico do coador com filtro de papel da minha cafeteira talvez custasse uns vinte centavos. Vinte Centavos. Mas onde comprar um pino do suporte de plástico do coador com filtro de papel que servisse certinho no modelo e marca da minha cafeteira? Dia ruim, amargo Brasil. Não, não é só por vinte centavos. Pensando bem, não é só pela cafeteira que quebrou e o café que não saiu.

Meu cérebro amanhecendo sem café remói o mundo-moinho e sinto os meus ossos quebradiços. Cansaço, sombra nascente, nublada manhã que segue. Desperdício de energia minha, da minha geração high-tech, incapaz de usar o coador bruto de Maria Bonita. Acorda, Maria Bonita... cangaço de retóricas, mãos ágeis e leves para as teclas, telas, sem punho firme para foice e martelo e bigorna. Quantos calos nas mãos inglórias serão necessários para que a foice comece a ceifar e o martelo o aço a martelar? Quantos calos na garganta para que o grito ganhe a carne? Ah, como essa dor me espanta, arde, como me inquieta uma atualização de facebook e minha satisfação perfilizada, quase pérfida, carapuça política de um egoísmo programado. As ruas logo ali, meu violão aqui ao lado sem a corda Mi. Dylan, Dylan, the times they are a-changin' merda nenhuma. Nem canção, nem aliteração, ritmo forçado, rima ginasial, disfarçarão as sentenças que escrevo de sua inevitável tibieza espiritual. Lembro o olhar de Dilma piscando uma Constituinte Exclusiva para a Reforma Política e a massa nas ruas cantando O gigante acordou e Bandeira e o Hino e Fora aos partidos. A piscadela da ex-guerrilheira passou despercebida, dobrou à esquerda na esquina, se foi. A juventude quebra-semáforo ainda não sabe o que fazer com a esquina. Entre micaretas, futebol e indignação, um “Vem pra rua porque a rua é a maior arquibancada do Brasil” saltando dos carros sonhos-de-consumo da Fiat para as catracas quebradas em São Paulo, da voz-antena de Falcão para as minhocas de metal onde a juventude se tromba, se compartilha, mesmo com os ouvidos fechados em fones e música e tecnologia. Os proletários descobriram que eram proletários tagarelando juntos dentro da fábrica. Ford se foi e ficaram os trens, metrôs e ônibus da cidade. Dentro das grandes latas móveis, da vida que se vai no caminho pisado, onde o homem de hoje quer “um lugar pra sentar e sonhar no lotação”, será aí o espaço de conversa possível para se descobrir de novo que raios é isso que a esquerda, às vezes quase quixotesca, chama de proletário? De que lugar lançou-se o grito pelos 20 centavos? Ou ainda – um agravo – resolve alguma coisa saber de onde o grito surgiu? Um eco, um oco cheio de novo, cheio de tudo, até de vazio.

As ruas ocupadas, um aroma.

Eu que não sou niilista, que só preciso tomar um café quente pra crer de novo no progresso da humanidade, em Che, em Gandhi, vi com bons olhos o menino de doze anos surfando com rodinhas no asfalto duro da avenida Afonso Pena, no coração duro de Campo Grande. Vi com ternura seu cartaz apagado contra a PEC 37. Invejei sua desenvoltura, seu skate, sua camisa amarrada na cara (e um skate é algo ainda inconcebível para mim). Meus atrasos. Vi o Bradesco apedrejado, vi o Bradesco mordendo com seus estilhaços-dentes de vidro a perna de um vida loka embriagado de raiva justa, urgente. Terror contínuo na periferia, saldo sempre insuficiente. Vi assentados rurais, abandonados pelo Estado, perdidos na massa com cartazes tímidos escritos com caneta Bic pedindo luz elétrica. Pareciam de outro tempo, estáticos, quase pedras, em um canto escuro. Nem sei como os vi na turba patriotizada com o branco da paz e o verde e amarelo gritantes. Lembrei de Meu Coronel em pleno desenvolvimento azul e branco, também cores da bandeira. E a Reforma Agrária, sejamos francos, será sempre vermelha. E o vermelho desbotado, meu querido andrajo, quer vermelha a rosa do povo. Mas “a hora pressentida esmigalha-se em pó na rua” (como diz o poema de Drummond, “nosso tempo”, sobre o tempo dele, que é o tempo nosso também). Restará algo só nosso, um vintém, um V de Vingança, conquista desta juventude, caso não olhemos para a História, caso não abdiquemos de querer fazer sempre um samba? Rosa Luxemburgo, ensinai-nos sobre os conselhos operários, ensinai-nos sobre um socialismo debaixo pra cima, sem cartilhas goela-abaixo. Terá mesmo a chave a América Latina? Talvez mais louco do que a média, “eu que ainda espero a revanche pintar”, mesmo que muito devagar, vou percorrendo o litoral central de Geraldo Roca, o escurão-sul desse mato grosso. Sem muito o que dizer, sem rota, ancorado em citação, só me resta entregar estas linhas pobres ao canto superior de Drummond:

Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.


Eu não sou as coisas. E eu não sei sequer dar nome específico a esse tal pino do suporte de plástico do coador com filtro de papel da minha cafeteira. Só sei que é a cafeteira quebrada, como um todo, o que me incomoda. Só a substituição ou o conserto ou a abolição da cafeteira podem explicar o que seja os vinte centavos de uma coisa que não tem nome, que não tem catálogo, mas que não deixa o café ficar pronto, que afasta a alvorada pra longe, desritmando meus neurônios agitados.


Volmir Cardoso Pereira