VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Batateogonia




Ao amigo Wellington Fernandes


I - GÊNESIS


“Em verdade, no princípio, tudo eram batatas, mas depois veio Elma Chips, de amplos seios, e Pepsi, o deus das trevas e dos gases. Da união de Elma e Pepsi, fez-se a Luz, que iluminou as batatas. Elma contemplou a Luz e disse: ‘comam-se as batatas’. E as batatas foram comidas.


Em seguida, Pepsi, que tudo vê, vendo que as batatas eram boas, disse: ‘crescei e multiplicai-vos’. Então as batatas ocuparam todo Universo. Elma chamou a isso de Batatais.

Sob as folhagens dos imensos pés de batata, surgiu Penumbra, filha do onisciente Pepsi e da onipotente Elma.


No segundo dia, Elma teve sede e conheceu o sofrimento. Dos seus olhos então brotaram lágrimas, que molharam os Batatais. Pepsi, bebendo das lágrimas, viu que elas eram boas e disse: ‘faça-se a água’. Foi quando, dos olhos de Elma, criou-se o Oceano, inundando grande parte dos Batatais.

"Sob as folhagens dos imensos pés de batata surgiu Penumbra..."
O Sol surgiu no terceiro dia, o Oceano ferveu e cozinharam-se as batatas. Pepsi provou das batatas e do caldo, dando a este último o nome de Água de Batata.

Tudo ainda era desabitado. E assim, da Água de Batata, surgiram Darwin e todos os seres vivos que povoam o Universo.

Darwin disse: ‘dessa água jamais beberei’. Foi o quarto dia.

No quinto dia, Darwin foi dar um rolê, pra descolar umas mina, mas só encontrou batatas. Depois de andar muito, o homem deitou-se à sombra dos batateiros e adormeceu. Primeiro, sonhou que era Newton e que uma maçã caía sobre sua cabeça; depois, sonhando que era um sábio chinês, que sonhava que era uma borboleta, que sonhava que era Raul Seixas, sonhou que uma serpente de sete cabeças enroscava-se sete vezes em torno de um pé de batata.

– Não quis assustar-te! – disse a serpente – Meu intuito era fazer-te a Grande Revelação.

E a revelação foi feita:

– Se queres descolar umas mina, rouba o fogo dos deuses! – aconselhou a serpente.


Quando Darwin acordou, viu que a serpente era o deus Brahma e os dois saíram para tomar uma Skol. Isso foi no sexto dia.


Embriagado, Darwin subiu aos céus e roubou a caixa de Fiat Lux de Elma Chips. Mas o homem, não sabendo dominar o fogo, acabou incendiando os Batatais. Daí, fez-se o Caos que perdura até hoje”.


II - OS ESTADOS DA MATÉRIA


Na natureza, a Água de Batata pode ser encontrada em três estados: São Paulo, Paraná e Bahia. Em Minas, decretou-se a moratória, e o governo federal cortou o fornecimento do fluido vital. Entretanto, como se diz por aí, nada se cria, nada se perde, tudo se transporta. Assim também é com a Água de Batata que, quando transportada pelos vários estados da natureza, adquire diferentes coloração, densidade, textura, brilho, viscosidade, maciez e volume.

"Na natureza, a Água de Batata pode ser encontrada em três estados..."
Deste modo, toda matéria – do chumbo ao ar, da verruga da sogra às curvas da vizinha – tudo é composto pela mesma substância: a Água de Batata, em suas incontáveis formas de manifestação. Por isso, os textos sagrados afirmam que somos Água de Batata e à Água de Batata retornaremos.

III - UNIPUNK

Naquele tempo, éramos apenas estudantes latino-americanos, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e habitantes da cidade universitária Severino Faz – editor da revista Gente que Vaz e criador de toda a Universidade.

No sétimo dia, Darwin estava numa puta ressaca animal: dormiu o domingo inteiro e só foi acordar na manhã seguinte. Era uma segunda-feira e, como já se aproximava a hora do almoço, caminhamos a pé, da moradia à Unipunk. O mundo era então um interminável campus de batata, um verdadeiro Éden Batatal. Quando chovia, levávamos quarenta dias e quarenta noites para percorrer o caminho. Naquela segunda, porém, como fazia sol, chegamos ao bandejão por volta do meio-dia. A fila era uma serpente que dava volta ao mundo e mordia a própria cauda. E, por não termos outra opção, resolvemos enfrentá-la assim mesmo.


Logo à nossa frente, encontramos Don Juan, velho índio feiticeiro, que veio puxando conversa conosco. Ele era um sujeito muito estranho, mas já estávamos acostumados e deixamos o velho falar.

"Logo à nossa frente, encontramos Don Juan..."
Tomamos a refeição, conversando banalidades, como, por exemplo, sobre o que poderia ser aquela sobremesa do dia, uma espécie de doce que nunca se vira antes. Cada um deu uma resposta diferente, sem que chegássemos a uma conclusão. Era um manjar dos deuses, uma gelatina ou um tipo de pudim?

Foi então que Dom Juan interrompeu a discussão:

– Isso é feito de água de batata!

Rimos todos, com exceção do próprio Don Juan. Como é que aquele doce marrom meio gelado, com gosto de maizena, consistência de escargot e cheiro de remédio poderia ser de água de batata?!?


Don Juan permaneceu sério, olhou firmemente para cada um de nós e disse:


– Quando sairmos daqui, peguem um desses doces dentro de um só copo por pessoa e vamos até o Ciclo Básico!


Seguimos as instruções do velho índio.

"...enquanto o velho entoava uma canção monotônica, rouca..."
Quase às duas horas, estávamos sentados no chão, em círculo, cada um com um pequeno pedaço de doce na mão direita, em volta de Dom Juan.

– Agora – disse ele – esfreguem o doce nas têmporas e fechem os olhos.


Fizemos isso, enquanto o velho entoava uma canção monotônica, rouca, de efeito hipnótico...


IV- SEGUNDA-FEIRA

“Conheci a vigília, o sono, os sonhos,
a ignorância, a carne, os torpes labirintos da razão,
 
a amizade dos homens, 
a misteriosa devoção dos cães.”
(Jorge Luis Borges - João, I, 14)

...de repente, minha visão tornou-se esfumaçada. A voz de Don Juan deu cambalhotas no ar, metamorfoseando-se em Pablo Milanés, Mercedes Soza e o time titular quase completo do Cerro Porteño.

Maya surgiu em minha frente e disse: “Tudo é ilusão! Tudo são batatas!”

O tempo, correndo em todas as direções, era um animal em fuga, impedido pelas quatro paredes. Não sei como explicar o que houve, mas ainda estávamos no Bandejão e, de repente, tive uma clareza absoluta das coisas, como se só agora, enfim, despertasse: o doce, cuja natureza discutíamos, sem dúvida era feito mesmo de Água de Batata; o frango frito, o feijão, o arroz, a salada, tudo era Água de Batata; as colunas, o teto, as mesas e o chão eram Água de Batata; a bandeja era Água de Batata. A Água de Batata era uma espécie de fluido energético que se infiltrava em toda matéria. Mais do que isso, compunha toda matéria!

Olhei para Dom Juan e meus colegas. Eles também não passavam de Água de Batata, transformados em gente pelo poder de Maya. Eu próprio era Água de Batata.  Pelas veias do meu corpo inteiro, senti correr o líquido onipresente, pulsando com a mesma energia iniciada desde o Big-Bang. Havia algo, por trás da aparência de tudo, que igualava e unia os seres e as coisas. A mesma substância adquiria os mais diversos aspectos, mas, em essência, tudo era o mesmo.

Tudo era Água de Batata!!! Tudo, absolutamente tudo!!!


"...sonhando que era Darwin que sonhava que era Newton que sonhava..."
Até os pensamentos que eu tinha...

Saí do bandejão e caminhei pelos intermináveis campos de batata, durante quarenta dias.

Quarenta dias mais permaneci sob a sombra de um Batateiro Sagrado, sonhando que era Darwin que sonhava que era Newton que sonhava que era um sábio chinês que sonhava que era uma borboleta que sonhava que era Raul Seixas que sonhava que era eu, dormindo à sombra de um batateiro. Os séculos descreveram uma espiral e continuei sonhando, a percorrer infinitamente o traçado em direção ao centro: fui um dos vinte mil arqueiros de um dos vinte mil exércitos derrotados por Buda; fui um cangaceiro, um cavaleiro andante, um metalúrgico do ABC; conheci os deuses do amor, do pecado e da morte; amei Guinevere, Beatriz e Macabéa.


Passei fome no deserto, também conheci o luxo e o desperdício. Desfrutei dos prazeres da carne, tive os membros mutilados e matei até o arrependimento. Atingido por uma bala perdida no morro onde morava, fui a própria bala, invadindo apressada meu próprio cérebro. Caí na calçada e meu corpo foi jogado de um barranco. Sangrei e conheci a dor. Nasci outras milhares de vezes, outras milhares de vezes morri.

Na última dessas mortes, toda história da Unipunk passou pela minha mente, num relâmpago – desde quando tudo eram batatas, até aquele momento em que esfregávamos o doce nas têmporas. Senti que não estava só, que era forte e que jamais esqueceria... depois, vi apenas a escuridão absoluta, o silêncio, a imobilidade, o vazio, o nada....




... quando dei por mim novamente, estava no Bandejão, no ano passado, conversando com o Wellington sobre o que seria a sobremesa misteriosa daquela segunda-feira. Pareceu até que não sabíamos. E talvez nem soubéssemos mesmo...


Talvez simplesmente não quiséssemos nos lembrar ou talvez também tudo não passasse de Água de Batata!

Fabio Dobashi

Desenhos feitos especialmente para esta postagem por Muriel Vieira a meu pedido, com o objetivo, também, de comemorar os três anos de vida dos arquivos críticos. Obrigado, Muriel! Obrigado, Fabio!

Pra fechar, vale a pena conferir o vídeo de Ricardo Botini para a primeira parte do conto do Fabio no link abaixo.