VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Arquivo e crítica

Não sou capaz, agora, de dizer o quanto de inspiração e de transpiração contribuiu no ato ou processo mental que resultou nesse nome: arquivos críticos. Mas sei perfeitamente que essas duas palavras advêm de regiões distintas, quase opostas - ainda que também muito próximas -, de meu pequeno universo de interesses intelectuais. Mais propriamente, de dois nomes diferentes: respectivamente, os de Jacques Derrida e T.-W. Adorno.

Seria muito, para uma postagem inaugural, tentar uma comparação entre esses filósofos (mas remeto a uma excelente: http://www.apario.com.br/forumdeutsch/revistas/vol9/adornofabio1.pdf); basta, por enquanto, registrar esse dado elementar: o tipo de desconstrução que Derrida faz do conceito de arquivo (no ensaio Mal de arquivo) não é muito diferente do que ele faz do de crítica (por exemplo em Espectros de Marx). Na economia da desconstrução derridiana, portanto, ambos os termos possuem sinal em certa - ou boa - medida negativo. Para Adorno, pelo contrário, o conceito de crítica é fundamental, como atesta, aliás, o projeto de uma Teoria Crítica da sociedade.

No entanto, este não é um blog de filiação estrita ou exclusivamente adorniana. Ele se pretende aberto a um leque de discussões e proposições que não exclui os pontos de vista e postulados da desconstrução; aliás, encontra neles um de seus interesses fundamentais - embora não se confine a eles -, e é justamente isso, e não um espírito meramente polemista, que me leva a tomar emprestado essa palavra, arquivo, do discurso de Derrida. Não se trata, portanto, de acolhê-la reinstaurando a positividade que este lhe recusa, não obstante a evidência do sentido fundamentalmente positivo que ela possui aqui.

Mas esse é um paradoxo em boa medida aparente: não apenas a leitura derridiana do arquivo não resvala para o maniqueísmo - postulando, pelo contrário, um tipo de duplicidade (ou heterogeneidade) de sentido que é constitutiva da desconstrução -, como a crítica adorniana é de espírito declaradamente negativo, ou seja, encontra no próprio seio da negatividade o precário lugar de encontro - não direi conciliação - do pensamento com a vida contraditória.

O que a expressão "arquivos críticos" postula, portanto, é uma aproximação assumidamente dúplice e problemática, mas, espero, prolífica. Ela guarda a esperança de que essa aproximação engendre um tipo de relação na qual tanto essas noções quanto as próprias práticas ligadas a elas tensionem mútua e incessantemente seus limites.

Nisso, evidentemente, o suporte blog é fundamental, pois o arquivo, em um blog, só é morto na medida de seu desinteresse. Mas este não é o único desafio que ele deve assumir, como exigência mesmo de sua pretensão crítica: se o desinteresse pode confiná-lo ao esquecimento, a comunicabilidade a qualquer preço o confinaria à esterildade. É o caso, então, de cultivar uma potência crítica cuja destinação ou pragmática arquivística institua os riscos imprescindíveis para torná-la não autossuficiente, mas, no âmago mesmo de sua precariedade, fiel a si mesma.

O que mais eu pudesse dizer agora soaria desnecessário e redundante. O gesto que deve suceder essas palavras precisa ser mais humilde e, espero, eficaz que o de um blá blá blá filosófico ou pseudoisso: o de convite ao exercício crítico-arquivístico. E que nenhum arquivo jaza morto; que nenhum gesto crítico fique imune a outros crivos críticos.

Citei:

Jacques Derrida. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Relume-Dumará, 2001.

Jacques Derrida. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Relume-Dumará, 1994.

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