VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Em cima do muro há um poeta em cima do muro


que passa pé frente pé no bambo muro concreto, de asas
abertas jogando de cintura ocidente-oriente
sorte se meu Greenwich fosse apenas bipolar mas
tridimensional ainda é pouco quando distorcido pelo tempo


voltimeia me confundo falando que o outro é melhor que
aquele que sou eu. e não posso ser assim?
me dedicaram certa vez “desregramento do turismo interior” e
quando me desregro me catalogam, nos assim e nos assados.


Agora como Hilst
Depois.
Depois. Depois como Clarice
Nos incluíram nos Fernandos!


E agora José?
Ta todo mundo tisperando i cê aí. Brincando de
anda no alto.
Desce que tu vai cai muleque!
se a queda fosse literal seria menos doída.


O Seu Lírico mando um e-mail
ta lá se divertindo, te deixou na mão.
Já disse pra desce daí!


Mas nós continuamos firmes cambaleando pela rosa dos ventos
agora eu os vejo por cima e reluzem ao sol suas
cabeças desmatadas pelos anos. Todos “gling-glang”.


no geral, então, sou Clarice Hilst de Andrade Pessoa?
sou aquela paria sem catálogo o vírus
que existe e complica.


Sou um profeta-pássaro tentando bater asas
e correr pro vôo. pro povo.
prum dia, quem sabe, virá categoria
pro dia que os mais novos (que verão por cima
minha brilhante clareira) serão incluídos
no que nessa se baseia um poeta em cima do muro. 


Vic Ferraz 

(Com agradecimentos do blog ao autor e à amiga e, estamos certos, futura colaboradora Dani Portela.)

quinta-feira, 10 de março de 2011

Administração para a morte


Quando Adorno nas suas críticas contundentes acerca do capitalismo avançado e das vinculações da democracia com o totalitarismo, afirma que Auschwitz é mais do que um campo de concentração, mas, sim, tornou-se uma alegoria do "capital desencantado" (ou do trabalho morto, ao contrário da máxima encontrada nos campos de concentração de que "o trabalho liberta"), isto fornece subsídios mais do que suficientes para se pensar em qualquer fenômeno contemporâneo - cultural, político, social, psicológico - que instila violência, medo, impotência e angústia nas pessoas. Se for certo que hoje, para se fazer a denúncia de situações que reforçam as condições de desumanização dos sujeitos, devemos exagerar nossas análises - "o exagero é a única forma de revelar a verdade"-, é justamente porque isto acaba por comprovar o quanto estamos acostumados com a barbarização da vida cotidiana; ou, talvez, anestesiados com o horror gerado pelo mundo administrado cujas consequências são as apatias generalizadas de grande parte de pessoas frente aos acontecimentos.

É neste sentido que o tema sobre "suicídio no trabalho", estudado recentemente por pesquisadores franceses (vide Cristophe Dejours nas pesquisas sobre "psicodinâmica do trabalho"), tem apontado para a similaridade das 'gestões de trabalho' encontradas nas grandes e médias empresas, com os princípios nazi-facistas de administração burocrática aplicados nos campos de concentração e nas fábricas de produção bélica do período entre-guerras. O suicídio do empregado no local de trabalho (o "antigo" trabalhador denominado, hoje, pelo discurso neoliberal de "operador", "empregado") cada vez mais corrente na Europa, mais do que um ato de desespero ou de "desequilíbrio psíquico" do sujeito mediante as pressões cruéis de trabalho, torna-se a expressão máxima das intrínsecas relações da razão instrumental com a destrutividade em prol da produção econômica. Esta forma de "morticínio administrado" (dentre outras formas de horror na atualidade, inclusive, campos de concentração, deportação de etnias, grupos de extermínio, etc) torna legítima as afirmações de Adorno sobre a continuidade de condições objetivas e subjetivas no capitalismo tardio que foram propícias ao clima cultural que permitiu Auschwitz que, por sua vez, desdobra-se em novos acontecimentos na contemporaneidade. Desses acontecimentos, por exemplo, pensamos na ocorrência de suicídios de sujeitos que, aparentemente, são considerados adaptados ao sistema, com seus salários e estilo de vida conformista, passíveis de causar inveja às milhares de pessoas desempregadas e excluídas do trabalho formal. Entretanto, tais sujeitos que até chegam a ocupar altos cargos nas grandes empresas (a de aço, automobilística, eletricidade, telecomunicações) atentam contra as suas próprias vidas nos locais de trabalho, assim denunciado o que se oculta por trás das novas organizações empresariais com suas fachadas limpas e higiênicas denominadas de "vitrines do progresso".

No filme "O Corte", de Costa Gravas, o personagem central - um engenheiro chamado Bruno Darvert - ao ser demitido após 15 anos de trabalho numa empresa de papéis não se mata, mas torna-se assassino de seus possíveis concorrentes (também desempregados) no mercado de trabalho. O filme ilustra bem o modelo econômico mundial no qual vivemos e elucida a temática aqui colocada: as pessoas sob o capitalismo tardio, em face das condições desumanas e de "darwinismo social" suscitado pelo modelo econômico neoliberal, têm eliminado umas às outras para garantir a autoconservação desenfreada pelo capital. E aquelas que não agüentam as pressões de uma racionalidade (de modelos administrativos e de uma totalidade social) que é, em si, irracional, acabam atentando contra suas próprias vidas, significando uma situação na qual as organizações sindicais tornaram-se inócuas, e na qual o sacrifício individual – princípio que rege nossas vidas no sistema capitalista -, ao lado do enfraquecimento de instituições sociais formadoras, tornou-se norma ao ponto do sacrifício ser a própria vida do sujeito. No filme, o desemprego é mostrado como fator também determinante do modo de funcionamento capitalista - as pessoas são descartáveis e somente úteis quando, contraditoriamente, passam a integrar o exército industrial de reserva.

A reestruturação das novas formas de trabalho tem ocasionado efeitos funestos na psicodinâmica dos sujeitos, assim validando as teses dos frankfurtianos (Adorno, Horkheimer e Marcuse) acerca do mundo administrado, ou da sociedade unidimensional. Ao contrário do que Marcuse pressupôs acerca da automação do trabalho e suas conseqüências positivas para o tempo livre, o homem não acabou sendo liberado para o “jogo das livres pulsões eróticas”; ao contrário, a vida da classe trabalhadora tem se tornado pior, pois tem aumentado a intensificação do trabalho associada, agora, às novas formas de controle sobre o trabalhador, assim liberando suas pulsões destrutivas e mortais. Não à toa, lembramos do aforismo de Adorno “A saúde para a morte”, em que ele fala sobre como a “velha injustiça” ainda continua sob o véu tecnológico e sob a racionalização do trabalho. A dor corporal, a dor física, sob o trabalho alienado ainda subsiste; os mecanismos psicológicos de defesa do trabalhador têm falhado mediante tais situações de crueldade e de desumanização que se escondem por trás da fachada de um ambiente “limpo”, “democrático” e altamente gerenciado por especialistas competentes do mundo do trabalho (administradores, psicólogos organizacionais, gestores). Os recursos científicos e administrativos aplicados nas empresas encobrem e esterilizam a dor e o sofrimento psicológico dos sujeitos no ambiente de trabalho, assim acirrando a competição entre as pessoas e extinguindo qualquer tipo de pensamento crítico – ou você se adapta (às custas do adoecimento psíquico) ou você morre. Eis Auschwitz como “alegoria do capital”.

Matadouros de Anjos

Recentemente, observando a semelhança entre dois textos, resolvi recolher as duas violentas pérolas e me debruçar sobre elas. Uma é de Eustáquio Gorgone de Oliveira, e outra de Luiz Alberto Brandão Santos. A primeira é Matadouros:

Matar! Matar! Matar!
Panças e bexigas floridas
Nas paredes, no chão.
Chifres serrados se tornam
Genuflexórios da dor.
E os punhais vão separando
A língua, os olhos.
Orquídeas roxas de sangue
Brotam nos ladrilhos
Do corredor.
(O sol é uma lâmpada
Que ilumina pela janela
As correntes de ferro.)
Matar! Matar! Matar!
Dentro das veias secam
Rios de violetas.
Algumas flores fogem para os intestinos.
Mas os punhais vão procurando
As raízes da vida.
Até o músculo é um vento
Que os homens retalham. (Jornal Poiesis, ano V, número 45, março de 1997)

Nesta elegia sem adeus, Eustáquio insiste em olhar para o mundo como um grande matadouro, onde a morte é organizada que o ser humano orquestra. O humanismo é o grande ausente deste texto. O ego se vê diante da contingência, sente a finitude da carne, descobre que o ser é o ser para a morte, e o texto fixa as evidências obsessivas, claramente densas e já repisadas, da extinção da vida.

O poema encena também o genuflexório onde o autor se senta para orar depois da experiência excruciante do negativo. O próprio ritual da comunhão é uma antropofagia ritual; como um apóstolo descrente, o poeta constata a profundidade do corte que atingiu a civilização definida por Jesus, e para transcrever essa medusina experiência em palavras, recorre à observação da morte em escala industrial nos matadouros de animais. Luiz Alberto Brandão narra experiência semelhante, construindo, para transmiti-la, uma poética de anjos, que segundo ele “constitui-se de dogmas absolutamente escorregadios. Deve ser, sobretudo, rigorosamente impalpável.” Novamente, uma espécie de Judas sincero arranca a carne e a devora com sofreguidão, bebe o vinho e, pândego, se embriaga ao Comer Um Anjo: “Pelo faro/ Come-se um anjo/ Minuciosamente/ Mastiga-se a fibrosa/ Textura do seu nada/ Lentamente o oco azulado dos seus pântanos de asas/ A alimentar abstrações/ E descuidos/ Basta engolir aquele ar rarefeito/ Movediço./ Com o gosto úmido de galhos altos/ De diamantes em fatias luminosas./ Sabor caudaloso de minúsculas nostalgias/ Tempera-se somente o calafrio/ Do seu imponderável sexo de rosas./ O gosto de ângulos/ Somente/ Tosta-se o puro movimento/ Que se desprende dos músculos/ Tem gosto de silvos/ De silvos e cabelos/ Granulados/ em camadas levíssimas/ Basta inebriar/ Para que sejam insaciáveis as fomes/ Mas atenção:/ Ao comer um anjo/ Prepare seu sorriso/ Mais tosco/ Mesmo gargalhe/ Pois o corpo corrói-se/ Com a absurda delicadeza dos vácuos/ Estranhezas/ Trepidações/ A estufar todas/ As têmporas e linfas/ Suspira-se granito/ Arrota-se uma infinidade de cacos vazios/ E finalmente dorme-se/ Primitivo sono de nuvens/ Ou então/ Para aqueles de paladar intratável/ Vomita-se uma canção bizarra/ Uma canção bizarra e docemente longínqua.” (Revista Literária, ano XXVII, número 25, dez.93, jan. 94)

Como no poema de Eustáquio, a experiência do eu lírico simula a aventura de Perseu, a de olhar no rosto das Górgones; é como se o eu do poeta, ao invés de decapitar a Medusa, devorasse o monstro. Daí talvez Perseu também saísse suspirando granito e arrotando cacos da cultura clássica greco-romana.

Completando a idéia de que Matadouros e Comer um Anjo são poemas de beira-abismo, são fragmentos que observam o impasse de uma civilização, diante da qual o abismo se abriu, cito Walter Benjamin, que comenta em seu texto Sobre o Conceito de História:

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. (Magia e Técnica, Arte e Política, Walter Benjamin, p. 226, Ed. Brasiliense)

O anjo da história citado acima enfrenta o progresso, que, enfim, se mostrou algo diferente do previsto por Hegel e Marx. O principal alvo de Walter Benjamin, a meu ver, é o materialismo histórico, e para tanto dispõe de uma figura mística para o desmistificar.

O poeta, ao descrever a receita de como se come um anjo, voluntariamente equaciona comer com copular, e de fato, é comum em várias línguas esta semelhança entre os dois vocábulos. É de profanação, dessacralização que de fato estamos falando. Tanto no poema de Eustáquio como no de Luiz Alberto, o eu devorador, matador, sádico, glutão, goza ao se entregar aos instintos de morte. O anjo é o mediador entre Deus e os homens. Na Bíblia é ele quem anuncia a chegada de Jesus. Matar o anjo e deleitar-se com sua carne, como se fosse carne de frango, é bruta negação de Deus. Na ausência de Deus, não há culpa, piedade, má consciência. A subjetividade de um, em Matadouros, busca a beleza na destruição do outro, desafia Deus em seu sadismo, saboreia e deglute o sexo do seu mensageiro, pois crê que Deus, se existe, é um proprietário desleixado e pode ser desafiado.

Lúcio Jr.

Nota póstuma: como me informa seu autor, o texto acima já foi publicado na web; entretanto, sua afinidade com o espírito do arquivos críticos justifica sua republicação aqui.