VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

E a classe operária salva a humanidade


Como é natural em inícios de ano letivo, meus colaboradores andam muito ocupados, e, embora eu não esteja muito menos, a obrigação de manter este blog ativo me leva a meio que improvisar esta postagem. Não que me faltem assuntos - pelo contrário, tenho bem uns dez posts entre cogitados, planejados e iniciados -, mas este é o único que me vejo em condições de desenvolver em tempo record. E como meu post anterior ("O estranho intestino"), sobre o filme Alien, este trata de algo bastante "antigo" (como dizem os adolescentes em relação a tudo que não é desta década), aliás mais ainda que o outro, com o qual, por sinal, ele guarda muitas coisas em comum.

Mas Eles vivem é um filme que eu não consigo ver pela metade. (Há um link para ele aqui, mas se você não assistiu recomendo que não leia a postagem - a do Horror Movies, não a minha!) Se as estatísticas dizem algo, creio que o fato de tê-lo visto exatas três vezes, e nenhuma delas propriamente na infância, me obriga a incluí-lo em minha lista de preferências, caso venha um dia a editar meu "perfil". Mesmo tosco e com um final risível de tão inverossímil, trata-se de um filme de pujança excepcional, como quase tudo o que fez seu diretor e roteirista, o norte-americano John Carpenter, autor, entre outras coisas, dos "clássicos" Fuga de Nova York e Halloween (a primeira versão, de 1978), de uma adaptação sumária mas enfezada do romance Christine, de Stephen King, e do estranho e sombrio, mórbido mesmo, Vampiros (ah, chegados crepúsculos...), onde, um pouco como nos filmes de zumbis de George Romero (mas de forma ainda mais ambígua, pois aqui os caçadores são, "de fato", "heróis"), os seres ditos humanos não valem muito mais que os monstros.

Eles vivem, porém, é diferente. Em certo sentido, é o máximo de humanismo a que pode chegar um diretor ácido e, por vezes, algo cínico como Carpenter. Trata-se, afinal, de afirmar que se pode, sim, tomar partido da humanidade de forma inteiramente necessária e positiva, na velha fórmula do heroísmo salvacionista; com uma diferença, porém, dos Superomens e Batmans da vida: longe de vestir uma máscara, um uniforme e/ou um aparato tecnológico - daí a diferença, também, com a tenente Ripley - que acenem com atributos sobre-humanos, é necessário que ruam todas elas (as máscaras, eu quis dizer), já que tudo é diferente de como parece ser (e são as cenas de desvendamento ou "reconhecimento", sobretudo as finais, as mais brilhantes do filme).

Mais que isso, porém, há algo no heroísmo de John Nada - nome de sugestão muito evidente para ser gratuito - que o torna um fetiche em potencial (pois o culto fetichista é indisfarçável) para qualquer simpatizante ou militante socialista: sua origem e caracterização proletárias. E isso sem qualquer "evolução" ou "sofisticação" interna além da mera consciência dos fatos e da necessidade de agir. Nem mesmo ao amor o pobre tem direito; na situação que poderia levar a isso, o abandono, ou melhor, a traição é tão precoce - digamos que anterior, mesmo, ao "envolvimento" - que não deixa de espelhar, numa intuição sociológica tão hiperbólica quanto realista, situações que conhecemos, ou, se estamos fora dessa esfera (dos pobres), estatísticas sociais que, no mínimo, intuímos.

(Mas quem somos nós, intelectuais, para nos preocuparmos com a sorte amorosa dos proletários? Que "invasionismo" é esse? O crítico responsável precisa saber distinguir, no entanto, entre o lado emocional, "romanesco", de suas motivações empáticas (pois elas sempre o são, ainda quando levam às posições mais incompreensíveis), ou seja, aquilo que não raro se avizinha do fetichismo, e os "dados empíricos" que aferem, mais que o sentido concreto e humano dessas motivações, sua justiça do ponto de vista, ou melhor, sob o próprio crivo da responsabilidade.)

O fato, porém, é que nada disso importa muito, pois Eles vivem é mesmo um filme "mão na massa". Seu elogio do vigor másculo e proletário, a serviço de uma magnífica (embora também, e justamente em sua dimensão pragmática, simplória) "desconstrução", é de causar inveja ao adepto mais fervoroso do realismo socialista. Não a puerilidade de seu sacrificialismo heróico a cargo de seu Rambo lumpen e barrigudo, ou mesmo, digamos, o lado semiótico da desconstrução que realiza, pois dessas coisas até o Plekhanov mais estreito deveria desconfiar. Sem falar na trilha sonora pop e pretensamente densa, mas menos isso do que rala, assinada pelo próprio Carpenter (que suponho ter feito mais um monte de coisas no filme).

 

A verdade é que Eles vivem exige, quando menos, a aceitação tácita de um tônus muito particular, ainda que nem um pouco raro, e que é o do macho man bronco mas cheio de razão, o sujeito tão confiante em suas mãos (sobretudo fechadas, alguém poderia dizer, e é verdade) que tem-se a impressão que elas pensam - e bem - por ele. Daí o que lhe falta em amor sobrar em pancadaria, quero dizer, o que lhe falta do amor - digamos que a plenitude do contato - sobrar na porrada.

De fato, conheço poucas cenas de luta mais empolgantes e, diga-se logo, saborosas que a briga entre John e Frank , o colega quase simpático (psicossocialmente, aliás, o filme é forte e convincente, inclusive em seu retrato da pobreza e da repressão social nos EUA nos anos 80) em quem o mocinho busca um parceiro. A seu modo, trata-se mesmo, portanto, de uma cena de amor, ainda que - aliás, perfeitamente de acordo com a lógica machista ainda imperante - apenas para um deles, já que é o herói que quer forçar o outro fazer algo que ele não quer e, dessa forma, conquistá-lo... Mas mesmo essa sugestão não desmerece algo maior e bonito: trata-se, afinal, de uma luta entre irmãos - como afinal eles se reconhecerão após ela (que, aliás, registre-se ainda, é menos de tipo ultracoreografado, estilo Peckinpah ou Tarantino, do que do tipo "luta franca", à la Eastwood em Punhos de aço).

Alguém poderia me dizer que se eu zelasse estritamente por uma coerência teórica e ideológica, deveria aplicar aqui as mesmas questões que apliquei ao filme de Ridley Scott. E teria razão, até porque não faltam - de par com sua afetividade intermasculina transmutada em fraternidade a duras rinhas - elementos misóginos em Eles vivem. E se o retrato das relações de trabalho em Alien é sociologicamente leviano e simbolicamente abstraizante, o romantismo proletário de Eles vivem não é menos simplificador (aliás, com a mesma insistência etnicista, muito embora estatisticamente legitimada: a necessidade de um afrodescendente entre os dois trabalhadores), nem seu tipo particular de "revolução" menos mitologizante (em sentido barthesiano, como diria o Lúcio). Trata-se mesmo, enfim, de um filme trash e algo mal feito - como deve soar muito tosco o corte que faço aqui para encerrar este texto com este argumento miserável: que, apesar de tudo, muito mais que o filme de Scott (e mesmo muita coisa boa que tem surgido por aí, como as recentes obras-primas de David Lynch), o de Carpenter nos dá a convicção de que se eles estão vivos, nós também estamos. Quem quer que sejam "eles", é claro; ou melhor: como se fosse assim tão fácil desatá-los desse(s) "nós".

P.S. - Como esse texto foi feito realmente às pressas, na ânsia de manter a periodicidade do blog e de dar continuidade a outras tarefas, fui obrigado a fazer algumas correções e esclarecimentos posteriores à postagem inicial. Além disso, deve ter ficado a impressão de que eu gosto menos do filme do que gosto realmente. Pelo que me lembro agora, só vi quatro filmes mais de três vezes: aqueles do Simbad que passavam na Sessão da Tarde (eram pelo menos dois, um "melhor" que o outro), que eu vi umas mil vezes; Conan, o Bárbaro, que eu vi umas seis vezes no cinema, mas também ainda na infância (senão biológica, pelo menos moral), e, esses tempos, Elefante, do Gus Van Sant, sobre o qual estou escrevendo um artigo. Além deste, depois de velho, vi três vezes Cidade dos Sonhos, do Lynch, Poderosa Afrodite, do Woody Allen, e O Desprezo, do Godard, mas este, quando tentei assistir pela quarta vez dormi na metade. Eles Vivem eu veria de novo, de boa.

P.S.2 - Também não quis dar a entender que é um defeito do filme ter um Rambo lumpen e barrigudo, apenas um limite na representação da realidade a partir da seleção de certos modelos. Na verdade, esse dado é um dos méritos do filme: um herói simplório mas autêntico, decidido a salvar o mundo não por princípios abstratos, mas pelo sentimento de uma espécie de missão ou destinação biológica, para não escrever simplesmente "instinto". No fim das contas, talvez o argumento desse parágrafo, que aliás já foi retocado mais de uma vez, seja mesmo incoerente com o que eu penso e até com outras coisas do texto. É o que dá escrever com pressa. Fica a lição.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Sacrifícios Humanos e Sociedade Ocidental

A Legitimação da Dominação na Sociedade Ocidental: Lúcifer e a Besta


Toda a história do Ocidente pode-se resumir num lema: a vítima tem a culpa, o vitimador é inocente. O Ocidente é o vitimador do mundo inteiro, um mundo inteiro é sua vítima. Mas, para o Ocidente, o mundo inteiro tem a culpa, ele é um vitimador heróico e inocente.
O sangue que o Ocidente produz não deixa manchas. Derramando esse sangue, têm-se as mãos limpas. A história do Ocidente passa de um genocídio a outro. Colonialismo, racismo, trabalho forçado em todas as suas formas, até por escravidão, aniquilamento de povos e países inteiros, destruição de culturas, extermínios, torturas e desaparecimentos em massa estão onipresentes na história do Ocidente. Todavia, o Ocidente tem as mãos limpas, nenhuma mancha de sangue se vê. Pelo contrário, o Ocidente acusa e denuncia todo o mundo,vigiando pelo respeito aos direitos humanos.

Na recente guerra do Iraque, Hussein sai com as mãos cheias de sangue. Não obstante, o presidente Bush, o general Schwarzkopf e o general Powell, também o primeiro ministro Major e o presidente Mitterand, todos têm as mãos limpas. Não se nota nenhuma mancha de sangue. Provavelmente derramaram mais sangue que o próprio Hussein, mas produziram um sangue que não deixa nenhuma manchas. Estão limpos.
Assisti uma vez na década de 60 no Chile a uma conversa entre alguns atores de teatro sobre o sangue que precisam muitas vezes nas sessões de teatro. Um afirmava ao outro: o melhor sangue é produzido em Hamburgo, na Alemanha. Lava-se só com água e não fica nenhuma mancha.

Todo o sangue que o Ocidente produz é deste tipo. Muitas vezes nem sequer é preciso lavá-lo com água. Simplesmente não se vê.

A história do Ocidente é uma longa sequência de sacrifícios humanos, que parecem ser o contrário do que são. Parecem ser castigos merecidos pelo desrespeito aos direitos humanos da parte de todos os outros. O Ocidente tem uma torre alta, da qual contempla todo o mundo para intervir onde se violam os direitos humanos. Intervém com força, com crueldade infinita, contra todos os que os violam. Nas intervenções que o Ocidente faz desde essa torre, violam-se os direitos humanos como jamais foram violados. Fazem-se guerras que jamais foram feitas; usam-se armas que não se conheciam. O resultado dessas intervenções é sempre, e sem variação, a apropriação das riquezas e dos bens, assim como também da força de trabalho, dos povos invadidos. O Ocidente conquistou o mundo e o está destruindo. No entanto, segundo a imagem que tem de si mesmo, tudo o que fez foi intervir contra os muitos violadores dos direitos humanos no mundo inteiro. A apropriação dos bens destes não passa de recompensa bem merecida por essa obra, a reparação dos danos que estes violadores tinham ocasiondo.

Essa torre de vigia que o Ocidente construiu, e que é mais alta que qualquer torre jamais construída, chega hoje até os céus. Desde essa torre se escuta o grito que faz tremer o mundo: a vítima tem a culpa, o vitimador é inocente.


FRANZ J. HINKELAMMERT, doutor em Economia pela Universidade Livre de Berlim,é nome familiar aos cientistas sociais da América Latina. De 1963 a 1973:professor da Universidade Católica do Chile. De 1973-1976:professor convidado da Universidade Livre de Berlim. De 1978 a 1982:diretor de pós-graduação em Política Econômica da Universidade Autônoma de Honduras. Atualmente coordenador da área de pesquisas do DEI, San José, Costa Rica.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Nem Lixo, Nem Extraordinário

“É bondade sua me explicar, com tanta determinação /
Exatamente o que sinto, como penso e como sou /
Eu realmente não sabia que eu pensava assim.”
(Legião Urbana, “Mais do Mesmo”)

Certa vez, do alto de sua sabedoria de Buda etílico, o grande Tim Maia afirmou que o Brasil é o único país do mundo onde cafetão sente ciúme, prostituta sente prazer e pobre é de Direita. Piada tão sociologicamente correta quanto politicamente incorreta. Paradoxalmente, quase a totalidade de nossa elite intelectual e parte considerável da elite financeira simpatizam com a Esquerda. Essa proximidade ideológica concretizou-se enquanto projeto em 2002, com a eleição de Lula, o que pode ser percebido nas reuniões de bastidores de campanha registradas no ótimo documentário “Entreatos” (2004), de João Moreira Salles.

Ação e reação. Uma vez eleito, Lula passou de aposta partidária para mito vivo e líder carismático weberiano. A mesma massa que não votava em Lula por ele ter sido pobre passou a idolatrá-lo por ele ter sido pobre e se tornado presidente. Daí para o culto a personalidade foi um passo. O filme “Lula, o Filho do Brasil” (2010), de Fábio Barreto, deveria ser o principal subproduto desse culto. Porém, sem ritmo, mal escrito, mal-dirigido e interpretado com insegurança, o melodrama fracassou nas bilheterias. Mesmo assim, apostando no prestígio internacional do operário-presidente, uma comissão do Ministério da Cultura resolveu indicá-lo como candidato nacional a uma vaga entre os finalistas ao Oscar de Filme Estrangeiro. Não deu certo. Se a inexplicável parceria de Lula com o insano presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad lhe tirou o Nobel da Paz, a qualidade duvidosa do filme de Barreto lhe tirou o Oscar. E quase tirou o Brasil do Oscar.

Quase porque a co-produção brasileira / britânica “Lixo Extraordinário”, dirigida pelo trio Lucy Walker, Karen Harley e João Jardim, registrando os dois anos em que o artista plástico carioca Vik Muniz trabalhou com catadores do aterro sanitário do Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro, foi indicado ao Oscar de Melhor Documentário. Acredito que tem chances reais de vencer, já que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood é mais parecida com a Academia Sueca do que se imagina. Filmes bem intencionados e edificantes são sempre bem-vindos. Além de aliviar o espírito, são bons para os negócios.

O pequeno público brasileiro que assiste documentários cinematográficos também deve adorar. Eles são a nata da nata de nossos cinéfilos. Os mais cultos, os mais sofisticados e donos da maior paciência. Não se importam de assistir longos longas-metragens repletos de longuíssimos planos seqüência de paisagens quase imóveis. A experiência estética, que emula a observação de uma tela, somada ao impacto emocional e o valor da mensagem intelectual impressa nas imagens, é o que importa. Nesse sentido, “Lixo Extraordinário” é um prato cheio, ou melhor, citando Raul Seixas, é um banquete de lixo. O filme é belo, é comovente, é socialmente responsável, é um mosaico de lições de vida. Sim, é tudo isso, mas também é proselitista e condescendente.

Nas últimas décadas houve o crescimento de um subgênero dentro do universo dos documentários: o filme denúncia. Esse tipo de produção procura mostrar as mazelas do mundo, com intenção de denunciá-las e, se possível, ajudar a mudá-las. Pobreza, violência, discriminação, superação de situações limite, recuperação de excluídos sociais etc, são sua matéria-prima. Alguns dos exemplos mais importantes são “Cabra Marcado Para Morrer” (1984), de Eduardo Coutinho, “Ilha das Flores” (1989), de Jorge Furtado, e “Ônibus 174” (2002), de José Padilha.  

Apesar da excelência técnica e das claras boas intenções dos cineastas responsáveis por essas obras, é possível perceber que, em muitos casos, eles transformam-se em disseminadores de estereótipos acerca dos assuntos que pretendem denunciar. Segundo o crítico Jean-Claude Bernardet, professor de cinema da USP, em seu livro “Cineastas e Imagens do Povo”, os documentários que retratam as classes sociais menos favorecidas tendem a salientar um autoritarismo velado de quem filma sob àquele que é filmado. Para Bernardet, esses documentaristas procuram revelar a verdade do “outro”, sem, contudo, mostrar a própria. A complexidade da situação é escamoteada pelo discurso politicamente correto.

Com certo exagero, mas não sem alguma razão, Paulo Francis escreveu que “nenhum filme brasileiro dá certo porque todos os cineastas tentam demagogicamente se colocar na posição dos humildes. É falso, visceralmente. Sempre que vejo algum favelado em filme brasileiro tenho vontade de sair gritando: ‘É um santo! É um santo’”. Infelizmente, Francis não viveu para assistir o genial “Cidade de Deus”, que provou que não precisava ser sempre assim. Mas a exceção representada pela obra-prima de Fernando Meirelles continuou sendo a confirmação da regra.

A despeito das louváveis intenções da equipe de produção em geral e de Vik Muniz em particular, salta aos olhos a artificialidade de suas relações com os catadores de lixo. A edição do filme parece milimetricamente planejada para comover: desde as imagens do lixão, as sub-reptícias mensagens de encorajamento, as crises de consciência, a trilha sonora de Moby e até mesmo as lembranças da infância pobre do artista. A cena na qual a equipe discute paralelamente em inglês e português, sobre o mal que podem estar provocando àquelas pessoas, interferindo em suas vidas, mostrando-lhes um mundo diferente para depois abandoná-las à própria sorte, é sintomática.

Nada disso seria problema se a proposta não fosse ser o mais genuíno possível, se a intenção não fosse mostrar a realidade, a vida como ela é. Não que haja ingenuidade aqui. Do grande teatro nazista de Leni Riefenstahl até as denúncias tragicômicas de Michael Moore está mais do que claro que o gênero documentário não é tanto Cinema Verdade quanto é a Verdade do Cinema, ou do cineasta. “Lixo Extraordinário” pretende ser o primeiro e acaba sendo o segundo. Contava-se, talvez inconscientemente, com a conivência da platéia, uma vez que o filme não se furta em revelar que nem mesmo as fotos tiradas por Muniz, que geraram as obras da série “Imagens do Lixo”, foram flagrantes espontâneos. Algumas imagens foram detalhadamente produzidas em estúdio. A opção por realizar releituras de obras de arte clássicas não foi por acaso. Na prática, Muniz não retratou a realidade dos catadores de lixo, mas a reconstruiu segundo sua visão de artista cosmopolita. Afinal, versões feitas de lixo do “Narciso”, de Caravaggio, e do “Marat”, de David, revelam mais sobre Muniz ou sobre Tião e Zumbi, seus modelos? 

“Lixo Extraordinário” apresenta-se, é vendido e tem sido comprado como um colosso emocional. O desnudar de um artista diante do público em função de seu mergulho visceral no cotidiano de uma comunidade humilde. A realidade por trás da câmera pode bem ser isso mesmo. Faço votos que seja. Deve ter sido uma extraordinária experiência de vida para todos os envolvidos. Contudo, infelizmente, o filme, numa analise desapaixonada, não é. Possui muitos e notáveis méritos, quase todos de natureza técnica, mas a espontaneidade não é um deles. Os personagens parecem desconcertados, intimidados pela câmera, não há o realismo cru presente em “O Prisioneiro da Grade de Ferro” (2003), de Paulo Sacramento. A abordagem dos catadores de lixo é piegas, longe da objetividade jornalística de Eduardo Coutinho em “Boca do Lixo” (2007). Essa tentativa desesperada de excluir qualquer tipo de juízo de valor retirou o impacto da denúncia, diferentemente de “Meninas” (2005), de Sandra Werneck, ou “Falcão – Meninos do Tráfico” (2006), de MV Bill e Celso Athayde. Nem mesmo sua utilização da tradicional estratégia de estetizar a miséria é particularmente interessante, ficando longe da criatividade arrebatadora de “Estamira” (2005), de Marcos Prado.

Em “Lixo Extraordinário” tudo parece pasteurizado: as emoções, as personagens, a paisagem, a denúncia do desperdício burguês, a mensagem pró-reciclagem. Perfeito para o consumo de nossa elite letrada, repleta de responsabilidade social. É saboroso e não engorda. Está longe de ser um lixo, tampouco de ser extraordinário. 

Ademir Luiz

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A Vida Alheia: e se Adorno tivesse um celular?


Essa postagem busca apenas pontuar algumas questões para os brasileiros que estudam Adorno e a teoria crítica. Siderados pela crítica de Adorno a Stravinski e ao jazz, trocando confidências em alemão, deslumbrados com Schoenberg, eles não têm criticado as novas tecnologias representadas pelos celulares e a internet e os produtos da indústria cultural tais como as telenovelas. A recepção de Adorno tem deixado de lado contribuições de teóricos e pesquisadores tais como José Ramos Tinhorão, Gilberto Vasconcellos e Glauber Rocha. E sem isso, o estudo da indústria cultural tem sido mero jogo aristocrático de elite restrito às universidades.

O celular ou telefone móvel generaliza-se na era do capital também móvel pelo mundo e na voga da razão comunicativa. Embora favoreça a razão comunicativa, o celular provoca um retrocesso nas boas maneiras, assim como favorece o seu uso invasivo ou irracional. Por fim, com a proliferação dos celulares, o diálogo fica praticamente impossível. O diálogo é interrompido pela chamada insistente dessas pequenas sereias do inferno.

Embora a terceira geração do Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt, hoje em dia, escute Bob Dylan após o corte com a razão negativa realizada por Habermas, mesmo Dylan é insuportável uma vez transformado em música de fundo para um celular. E, se antigamente utilizava-se músicas para fundo no celular, cada vez mais o celular é que determina os rumos da canção popular, com as canções de massa reiterando sem cessar: “beijo, me liga”, “amor, por favor, não desligue o telefone”. Não se vende mais um telefone, mas sim a luxuriante troca de mensagens que se pode fazer através do telefone. No entanto, essa troca torna a vida dos próximos insuportável, pois se dá dentro do cinema, no teatro, no trabalho, durante uma palestra, etc. E o pior é que, nesse mundo idílico do sexo verbalizado, irrompeu há alguns anos o telelumpen: o trabalhador degradado pelo liberalismo que cai no submundo do crime e, a partir do presídio, comete crimes através do celular. E os crimes através do telelumpen são justamente a perversão da linguagem do amor telefônico: o bandido afirma que seu filho foi seqüestrado e logo em seguida ouve-se a voz de um outro deles que dramatiza, claramente influenciado pelas telenovelas: “pai, eu te amo”. Se o padrão da Globo é classe média, então a classe média está sendo vítima, através do celular, de crimes inspirados em sua própria estética de classe.

O celular opera, então, com o fetiche: compra-se um celular para possibilitar o sexo verbal. As telenovelas operam com um esquema semelhante. Elas nascem e se apropriam da teorização de esquerda do realismo crítico enquanto intervenção na realidade, tornando-o realismo reacionário. Assim, as “pegadinhas” da TV mostram atores encenando e os passantes têm suas reações à situação, que tomam como real, registradas e exibidas para criar constrangimento; ao mesmo tempo, as telenovelas recriam a realidade através de amplos painéis sociais, reduzindo qualquer conflito de classe a um conflito entre “pobres” e “ricos”.

O principal assunto da novela é o dinheiro, em torno do qual tudo gira. A solução para a desigualdade social e a luta de classes é casar com um homem ou mulher rica. Os defeitos de um homem ou de uma mulher são facilmente compensados pelo acesso à sua conta bancária, na verdade bem mais cobiçada do que sua cama. Na ética prostituta da telenovela, uma aula de violino é desculpa para um encontro sexual extraconjugal. Por trás desse tipo de situação está a disposição estrutural para colocar toda a cultura para render dinheiro, desprezando tudo aquilo que, nela, não servir para esse propósito. Quem não se puder prostituir é “múmia”, no entender desse tipo de programa televisivo. Como diz o grande jornalista Laerte Braga, que deve ser urgentemente estudado pelos teóricos da indústria cultural brasileira, o lema das telenovelas e do BBB é “o bordel em sua casa”.

A apresentação realista e naturalista, assim como todo o esforço mercadológico em torno delas convida a tomarmos a representação enquanto espelho de nossas vidas. A telenovela mobiliza as fantasias das massas, exercendo enorme impacto sobre a vida cultural do País. Aliás, a telenovela praticamente destruiu o cinema e o teatro do Brasil, arrasando, através do mercado, com todas as tradições e linguagens que não a dela. Mesmo as leis de incentivo à cultura do estado subvencionam abertamente produtos com essa estética.

Nos últimos anos, com o surgimento de novas mídias, a telenovela perdeu parte de seu impacto cultural. O seu lucro é baseado na venda não só dos produtos nos comerciais, mas na venda de produtos dentro da ficção: vende-se produtos apresentados durante as cenas quanto nos intervalos comerciais, por isso a televisão dá tanto lucro. Para isso, nessa ficção cada vez mais os objetos ganham uma presença mais viva que os atores. Uma vez num restaurante, ganha enorme destaque o nome do restaurante, suas mesas e cadeiras e a refeição. Aliás, as telenovelas operam de forma gastronômica: tanto as refeições são apresentadas de forma bem atraente de forma a produzir o desejo de comer, como os atores e atrizes ganham também uma apresentação semelhante, mas apelando para fantasias sexuais e masturbatórias. O nome de um galã como Gianechinni torna-se, mais do que um nome, um adjetivo que é sinônimo de “bonito”: “ele não é Gianechinni”. Como quem trabalha em televisão é glamourizado, nasceu ao redor das televisões toda uma indústria de revistas repugnantes que se ocupam, sem nem um escrúpulo, da vida alheia, mas em especial da vida dos famosos, roubando e invadindo, de forma altamente predatória, sua vida privada, infernizando suas vidas com uma punição que resposta ao fato de ter dinheiro e fama numa sociedade como essa. E utilizando o slogan: “a vida alheia é mais interessante do que a sua”, um verdadeiro lema da alienação. Os atores que fazem a novela e todos que aparecem na televisão passam a dispor de um enorme capital simbólico, passam a ser “celebridades”, ou seja, alguém que dispõe de capital simbólico devido à sua visibilidade.

A telenovela, ao entrar em crise, produziu um subproduto diretamente articulado ao celular: o show de realidade, Big Brother Brasil. Nele, telefona-se para eliminar participante. O reality show encena o drama de um “campo de concentração”, um drama nacional. O drama de um Auschwitz onde o cárcere possibilita a lazeira do consumismo e onde se tem de falar alto para que sua voz possa ser captada pelos microfones. O microfone manda na voz do participante e a edição da realidade com a estética da telenovela, as ligações de celular e o veneno de Bial modelam seu destino, sua vida e sua morte dentro do “campo”. Cada cidadão, despido de culpa coletiva, liga para eliminar um “judeu”, ou melhor, um participante, que então vai para a câmara de gás da realidade. Lá fora, o aguarda a sentinela kafkiana e caucasóide chamada Pedro “Bial”, cujo nome é uma variação alemã de “azul”. É o “kapo” Pedro “Blau” que destila o seu azul da Prússia verbal e traz de volta os participantes para a câmara de gás do mundo real. A grande diversão, após a novela, é reencenar um dos grandes acontecimentos de nossa era, torna-se agora um mito exaustivamente explorado pelo cinema norte-americano: Auschwitz. Aos sobreviventes do BBB e de Auschwitz sempre se faz a mesma pergunta: “o que você aprendeu?” Respeitarei muitíssimo mais o deputado federal Jean Wyllys quando ele tiver a coragem de, como uma personagem do filme O Leitor, dizer: “Não aprendi nada, os campos (e o BBB) não eram terapia. Se quiser aprender alguma coisa, não vá aos campos (e não veja o BBB)”.

Após a decadência das novelas, se seguirá a decadência do formato reality show e isso se dará rapidez maior do que se deu com o produto “telenovela”. Será necessária, no futuro, uma campanha para que a sociedade se “destelevise”, assim como os estudos de Foucault produziram a luta antimanicomial. Aliás, os foucauldianos e deleuzianos precisam dizer que a grande lição do Big Brother é que uma grande empresa de televisão é hoje também uma das instituições que buscam o controle total, até mais do que escola, o presídio e o hospício. Faltou a Foucault o insight de que a prisão onde tudo se podia ver, o panóplio holandês, deu nos campos de concentração nazistas e, na atualidade, na prisão de consumo do Big Brother Brasil.

Lúcio Jr.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Anjo Negro

O Anjo Negro desceu
No Reino das Sombras e
Visitou as ruínas do mundo
As belas coisas que viu
Aterrorizaram-no até as lágrimas
Ele recolheu os restos das almas
As mais feridas e deformadas
Apaixonaram seu coração dolorido
Chorou no ventre da menina
Existe algo mais frio do que o
Coração de uma prostituta?
Pobres criaturas sagradas
A catástrofe cintilou
Na aura dos seus olhos
A Cidade de Açúcar
Cheirava a esgoto
O Príncipe Encantado das Trevas
Revelou o horror de nossa beleza.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Santo Esquadrão da Morte

Os comerciantes que eram simples seres imorais
Tornaram-se,para nossa segurança,assassinos sociais
E nós vamos convivendo muito bem com a podridão
Na condição de vermes desesperados por proteção
Tentamos negar o lamaçal abusando da embriaguez
Mas toda nossa santidade postiça não acaba
Ou redime a nossa brutal sordidez.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Cidade de Açúcar

O cão sarnento
E a loira perfumada
Traem meu olhar
Na cidade imaginária


Os velhos e as crianças
Que não servem mais
Engordam as piranhas
Do Rio Paraguai


Cidade Imaginária
Bigfield Centenária
Índia estuprada
Pelo pau do Capital