VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

E a classe operária salva a humanidade


Como é natural em inícios de ano letivo, meus colaboradores andam muito ocupados, e, embora eu não esteja muito menos, a obrigação de manter este blog ativo me leva a meio que improvisar esta postagem. Não que me faltem assuntos - pelo contrário, tenho bem uns dez posts entre cogitados, planejados e iniciados -, mas este é o único que me vejo em condições de desenvolver em tempo record. E como meu post anterior ("O estranho intestino"), sobre o filme Alien, este trata de algo bastante "antigo" (como dizem os adolescentes em relação a tudo que não é desta década), aliás mais ainda que o outro, com o qual, por sinal, ele guarda muitas coisas em comum.

Mas Eles vivem é um filme que eu não consigo ver pela metade. (Há um link para ele aqui, mas se você não assistiu recomendo que não leia a postagem - a do Horror Movies, não a minha!) Se as estatísticas dizem algo, creio que o fato de tê-lo visto exatas três vezes, e nenhuma delas propriamente na infância, me obriga a incluí-lo em minha lista de preferências, caso venha um dia a editar meu "perfil". Mesmo tosco e com um final risível de tão inverossímil, trata-se de um filme de pujança excepcional, como quase tudo o que fez seu diretor e roteirista, o norte-americano John Carpenter, autor, entre outras coisas, dos "clássicos" Fuga de Nova York e Halloween (a primeira versão, de 1978), de uma adaptação sumária mas enfezada do romance Christine, de Stephen King, e do estranho e sombrio, mórbido mesmo, Vampiros (ah, chegados crepúsculos...), onde, um pouco como nos filmes de zumbis de George Romero (mas de forma ainda mais ambígua, pois aqui os caçadores são, "de fato", "heróis"), os seres ditos humanos não valem muito mais que os monstros.

Eles vivem, porém, é diferente. Em certo sentido, é o máximo de humanismo a que pode chegar um diretor ácido e, por vezes, algo cínico como Carpenter. Trata-se, afinal, de afirmar que se pode, sim, tomar partido da humanidade de forma inteiramente necessária e positiva, na velha fórmula do heroísmo salvacionista; com uma diferença, porém, dos Superomens e Batmans da vida: longe de vestir uma máscara, um uniforme e/ou um aparato tecnológico - daí a diferença, também, com a tenente Ripley - que acenem com atributos sobre-humanos, é necessário que ruam todas elas (as máscaras, eu quis dizer), já que tudo é diferente de como parece ser (e são as cenas de desvendamento ou "reconhecimento", sobretudo as finais, as mais brilhantes do filme).

Mais que isso, porém, há algo no heroísmo de John Nada - nome de sugestão muito evidente para ser gratuito - que o torna um fetiche em potencial (pois o culto fetichista é indisfarçável) para qualquer simpatizante ou militante socialista: sua origem e caracterização proletárias. E isso sem qualquer "evolução" ou "sofisticação" interna além da mera consciência dos fatos e da necessidade de agir. Nem mesmo ao amor o pobre tem direito; na situação que poderia levar a isso, o abandono, ou melhor, a traição é tão precoce - digamos que anterior, mesmo, ao "envolvimento" - que não deixa de espelhar, numa intuição sociológica tão hiperbólica quanto realista, situações que conhecemos, ou, se estamos fora dessa esfera (dos pobres), estatísticas sociais que, no mínimo, intuímos.

(Mas quem somos nós, intelectuais, para nos preocuparmos com a sorte amorosa dos proletários? Que "invasionismo" é esse? O crítico responsável precisa saber distinguir, no entanto, entre o lado emocional, "romanesco", de suas motivações empáticas (pois elas sempre o são, ainda quando levam às posições mais incompreensíveis), ou seja, aquilo que não raro se avizinha do fetichismo, e os "dados empíricos" que aferem, mais que o sentido concreto e humano dessas motivações, sua justiça do ponto de vista, ou melhor, sob o próprio crivo da responsabilidade.)

O fato, porém, é que nada disso importa muito, pois Eles vivem é mesmo um filme "mão na massa". Seu elogio do vigor másculo e proletário, a serviço de uma magnífica (embora também, e justamente em sua dimensão pragmática, simplória) "desconstrução", é de causar inveja ao adepto mais fervoroso do realismo socialista. Não a puerilidade de seu sacrificialismo heróico a cargo de seu Rambo lumpen e barrigudo, ou mesmo, digamos, o lado semiótico da desconstrução que realiza, pois dessas coisas até o Plekhanov mais estreito deveria desconfiar. Sem falar na trilha sonora pop e pretensamente densa, mas menos isso do que rala, assinada pelo próprio Carpenter (que suponho ter feito mais um monte de coisas no filme).

 

A verdade é que Eles vivem exige, quando menos, a aceitação tácita de um tônus muito particular, ainda que nem um pouco raro, e que é o do macho man bronco mas cheio de razão, o sujeito tão confiante em suas mãos (sobretudo fechadas, alguém poderia dizer, e é verdade) que tem-se a impressão que elas pensam - e bem - por ele. Daí o que lhe falta em amor sobrar em pancadaria, quero dizer, o que lhe falta do amor - digamos que a plenitude do contato - sobrar na porrada.

De fato, conheço poucas cenas de luta mais empolgantes e, diga-se logo, saborosas que a briga entre John e Frank , o colega quase simpático (psicossocialmente, aliás, o filme é forte e convincente, inclusive em seu retrato da pobreza e da repressão social nos EUA nos anos 80) em quem o mocinho busca um parceiro. A seu modo, trata-se mesmo, portanto, de uma cena de amor, ainda que - aliás, perfeitamente de acordo com a lógica machista ainda imperante - apenas para um deles, já que é o herói que quer forçar o outro fazer algo que ele não quer e, dessa forma, conquistá-lo... Mas mesmo essa sugestão não desmerece algo maior e bonito: trata-se, afinal, de uma luta entre irmãos - como afinal eles se reconhecerão após ela (que, aliás, registre-se ainda, é menos de tipo ultracoreografado, estilo Peckinpah ou Tarantino, do que do tipo "luta franca", à la Eastwood em Punhos de aço).

Alguém poderia me dizer que se eu zelasse estritamente por uma coerência teórica e ideológica, deveria aplicar aqui as mesmas questões que apliquei ao filme de Ridley Scott. E teria razão, até porque não faltam - de par com sua afetividade intermasculina transmutada em fraternidade a duras rinhas - elementos misóginos em Eles vivem. E se o retrato das relações de trabalho em Alien é sociologicamente leviano e simbolicamente abstraizante, o romantismo proletário de Eles vivem não é menos simplificador (aliás, com a mesma insistência etnicista, muito embora estatisticamente legitimada: a necessidade de um afrodescendente entre os dois trabalhadores), nem seu tipo particular de "revolução" menos mitologizante (em sentido barthesiano, como diria o Lúcio). Trata-se mesmo, enfim, de um filme trash e algo mal feito - como deve soar muito tosco o corte que faço aqui para encerrar este texto com este argumento miserável: que, apesar de tudo, muito mais que o filme de Scott (e mesmo muita coisa boa que tem surgido por aí, como as recentes obras-primas de David Lynch), o de Carpenter nos dá a convicção de que se eles estão vivos, nós também estamos. Quem quer que sejam "eles", é claro; ou melhor: como se fosse assim tão fácil desatá-los desse(s) "nós".

P.S. - Como esse texto foi feito realmente às pressas, na ânsia de manter a periodicidade do blog e de dar continuidade a outras tarefas, fui obrigado a fazer algumas correções e esclarecimentos posteriores à postagem inicial. Além disso, deve ter ficado a impressão de que eu gosto menos do filme do que gosto realmente. Pelo que me lembro agora, só vi quatro filmes mais de três vezes: aqueles do Simbad que passavam na Sessão da Tarde (eram pelo menos dois, um "melhor" que o outro), que eu vi umas mil vezes; Conan, o Bárbaro, que eu vi umas seis vezes no cinema, mas também ainda na infância (senão biológica, pelo menos moral), e, esses tempos, Elefante, do Gus Van Sant, sobre o qual estou escrevendo um artigo. Além deste, depois de velho, vi três vezes Cidade dos Sonhos, do Lynch, Poderosa Afrodite, do Woody Allen, e O Desprezo, do Godard, mas este, quando tentei assistir pela quarta vez dormi na metade. Eles Vivem eu veria de novo, de boa.

P.S.2 - Também não quis dar a entender que é um defeito do filme ter um Rambo lumpen e barrigudo, apenas um limite na representação da realidade a partir da seleção de certos modelos. Na verdade, esse dado é um dos méritos do filme: um herói simplório mas autêntico, decidido a salvar o mundo não por princípios abstratos, mas pelo sentimento de uma espécie de missão ou destinação biológica, para não escrever simplesmente "instinto". No fim das contas, talvez o argumento desse parágrafo, que aliás já foi retocado mais de uma vez, seja mesmo incoerente com o que eu penso e até com outras coisas do texto. É o que dá escrever com pressa. Fica a lição.

8 comentários:

  1. Tem aí uma receita de bolo vegetariano?

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  2. Tem sim. É sempre um prazer ajudar quem precisa. Se você tem braços musculosos como o do Nada, sugiro que substitua o liquidificador por eles. Mas tem que bater pra valer, viu?

    Bolinhos de tofu

    Ingredientes:
    250g de tofu esfarelado
    1 chávena de água
    2 batatas cozidas
    1/2 chávena de água
    1 colher de sopa de molho de sija
    1 chávena de molho de trigo
    2 colheres de óleo

    Bata o tofu, a batata e a água. Adicione o molho de soja, o alho e a farinha integral até formar uma MASSA DURA. Faça os bolinhos e passe-os pelo gérmen de trigo. Frite-os levemente numa frigideira até ficarem dourados. Coma com seu benzinho.

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  3. Valeu pela receita, Ravengar

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  4. De nada, seu judeu-paraguayo hayuasqueiro e carniceiro. E barrigudo.

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  5. E vê se contribui com um artigo sobre a história oculta do MS, do Brasil, do mundo, da Galáxia ou dos Infinitos Multiversos.

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  6. O Ravel comentou o clássico trash do Carpenter no espírito do recente "Os Mercenários", do Stallone: é tão ruim que é bom! É precisa entrar no clima. Filmes assim, muitas vezes, carregam mensagens bastante interessantes. Como é o caso desse. Parabéns, lord Paz!!! Bom texto!!!

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  7. Salve, ó da Luz! Valeu o comentário.
    Então, é quase isso: o filme é bom e ruim, mas o fato de ser ruim o torna melhor ainda. Mar tem que sê macho!!!
    Agora, esse post é uma bomba!
    Fétido abraço!
    R.

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  8. Inverno, 2012.

    Ravel,
    sinto orgulho de ter amigos geniais como você!

    Lu Tanno.

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