VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

A propósito das desventuras de uns meninos e sua narração


Por Geraldo Vicente Martins (UFMS)

Confessional desde o início, a narrativa de “Os meninos da colina”, livro com que o professor e crítico de literatura Ravel Giordano Paz adentra o terreno da ficção, busca estabelecer um diálogo próximo com seus leitores, revelado na interpelação direta ao interlocutor com que se inicia. A partir desse viés subjetivo, todos nos encontramos convocados a recordarmos de nossos dias de adolescência (“dias de luta”, diria a letra da canção de uma das bandas de rock brasileiro não citadas no texto), bastante reconhecíveis no cotidiano do menino Jean e seus amigos. 

Da perspectiva do conteúdo, a trama conduzida pelo narrador-protagonista cativa por sua simplicidade, em que se relatam as (a)venturas e desventuras de um grupo de adolescentes que, aos poucos, descobre as vicissitudes da jornada humana, com seus infortúnios e mazelas, advindos, sobretudo, da visada com que os adultos, munidos de sua peculiar autoridade, a direcionam. Nesse sentido, o tom leve e divertido que o narrador imprime à história permite que se acompanhem as artes da turma com interesse e prazer, fruindo-se, com facilidade, do jogo ficcional que a obra propõe.

Acompanhar o processo de amadurecimento de Jean, em meio às descobertas que se descortinam no comportamento dos parceiros de turma, seja na escola ou fora dela, revelando a ele a complexidade dos homens, não importa se jovens ou adultos, passando pelos grandes temas que afetam a todos nós, como amizade, amor, liberdade, justiça e responsabilidade (para citar apenas alguns), constitui-se como um exercício de descoberta também para o leitor, valorizando o seu percurso de leitura e construção de sentidos a partir da narrativa.

No que concerne a alguns elementos que compõem a história, alguns pequenos deslizes podem vir a ser corrigidos em edições futuras, com vistas a evitar qualquer desvalorização, por conta disso, do enredo bem contado nas páginas do livro. A título de exemplo, mencionem-se apenas duas ocorrências dessa natureza: na página 12, “2º B” (em vez de 1º), e na página 15, “The Grandfather” (em vez de The Godfather).

Considerando a estruturação narrativa do texto e os procedimentos empregados pelo autor, três ressalvas devem ser apontadas. A primeira vai para a presença de certos anacronismos ao longo da história; dois exemplos, um mais explícito e outro menos, ajudam a entender o senão: em determinado episódio, um dos personagens se refere ao roqueiro Lobão como “coxinha” (expressão cuja conotação política é bem própria dos nossos dias, mas não do final dos anos 1980); em outro, alude-se aos grandes protestos da juventude, duvidando que pudessem encontrar ressonância em momentos posteriores da história do país. Ainda que se revistam tais menções com traços de ironia, elas acabam trazendo ao texto resquícios de um exercício de futurologia que acabam por não condizer com sua totalidade.

A segunda ressalva que se pode apontar diz respeito ao apêndice que se apresenta ao final do livro, o qual, problematizando ficcionalmente a criação fictícia do próprio romance, provoca, por vezes, certo desconforto no leitor, decorrente de algum exagero em sua composição, tal é o modo com que insiste em “desmerecer” o valor da própria ficção. Aliás, essa desconfiança é alimentada também em outros momentos do texto, como no início da página 64, em que o narrador questiona a veracidade de seu relato por meio da expressão “Por incrível que pareça”...

Finalmente, a terceira objeção dirige-se para a organização temporal dos eventos narrados; tendo em vista que o autor é bastante enfático com relação a esse ponto, espalhando índices marcadores de tempo por todo o texto – às vezes, inclusive, em curto intervalo da trama –, torna-se necessária uma atenção maior para a questão, pois, em diversos momentos, a impressão que se tem é a de um descompasso entre a passagem do tempo e sua marcação – em linguagem ordinária, diríamos que “parece acontecerem muitas coisas em pouco tempo”.

Com relação às duas primeiras ressalvas, pelo controle que demonstra em sua escrita, não parece haver grande dificuldade para Ravel resolvê-las em obras futuras. A nosso ver, o grande desafio que a ele se apresenta é o de trabalhar o domínio do tempo e, mais ainda, do ritmo da narrativa, elemento essencial para que sua prosa possa alcançar patamares mais altos, uma vez que a matéria para seus textos ficcionais ele já encontrou: histórias de gente comum transfiguradas pelo poder da linguagem que emana de sua escrita.

Não deixa de ser um ótimo começo.

Prof. Geraldo Martins