VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

domingo, 19 de maio de 2013

Um Renato muito macho – e o que mais?


Assisti ontem Somos tão jovens, reconstituição cinematográfica da vida de Renato Russo. Não sabendo até que ponto se trata de uma reconstrução menos ou mais "fiel" (seja como for, as aspas são obviamente necessárias) da vida desse ícone eterno do rock brasileiro, não sei também até que ponto o filme merece as críticas – no sentido mais vulgar de expressão de uma insatisfação – que lhe dirigirei. Mas, mesmo com o desconto que se deve conceder às pequenezas da "vida real", acho que não serei totalmente injusto.

Mesmo porque os grandes problemas do filme são de forma, a começar pelo constrangedor artificialismo de grande parte das interpretações. (A pior de todas é, de longe, a de Edu Moraes como Herbert Vianna, cujo ar notoriamente blasé serve de pretexto para a completa caricatura.) Felizmente – e esse, afinal, é um mérito importante – não é este o caso de Thiago Mendonça, que interpreta Renato, mas mesmo esse mérito cede à bancarrota por outro problema: Mendonça só é convincente até certo ponto do filme, pois nem ele nem o roteiro conseguem acompanhar a evolução que inferimos ou intuímos – sobretudo pelas letras das canções – na trajetória de Manfredini. Usei essa palavra suspeita, "evolução", porque é evidente que Renato, na faixa etária recortada no filme, passa de uma pós-adolescência mal resolvida para uma maturidade igualmente problemática mas ainda assim extremamente densa, profunda.

Mas já que eu estou sopesando as "culpas", talvez cumpra perguntar: de quem é a maior delas? De Mendonça ou do roteiro? De minha parte, não tenho dúvidas: o infantilismo que Mendonça ostenta o filme inteiro – e que parece que foi mesmo constitutivo da personalidade egocêntrica de Renato, mas temperada por uma densidade humana que não vemos ali – é uma redução programada. Um sintoma disso é que a maquiagem praticamente não se esforça em registrar mudanças fisionômicas perceptíveis, num período de tempo que não é tão curto assim (de, salvo engano, 1976 a 1985, ano de lançamento do primeiro disco da Legião.) E essa redução tem muito a ver com a assexuação de Renato; pois nada mais estranho do que isso: não o vemos, no filme, dar um único beijo em outro homem.

Há uma coisa particularmente bonita na relação, digamos, afetivoexistencial que todos nós estabelecemos com a Legião Urbana: é o fato de sabermos ou intuirmos, ainda que a contragosto, que a grandeza das letras de Renato Russo tem a ver com seu homossexualismo (ou bi, ou pansexualismo, como ele disse certa vez, salvo engano nessa mesma Bigfield em que pastamos), com a situação de embate com o mundo e consigo mesmo que essa opção, condição ou como quer que pretendam definir a situação da sexualidade de alguém, lhe trouxe.
 
Certamente é bonito saber que a juventude de Renato foi marcada por uma relação heteroafetiva (mais isso, pelo que o filme mostra, que propriamente heterossexual), confusa mas importante, ou seja, a que se desenrola com a bela Ana. Quem quer que ame a beleza feminina e seja fã de Renato Russo há de se sentir feliz em saber que ele teve a chance de vivenciá-la, ainda que sem muito entusiasmo. Ainda assim – aliás, por isso mesmo – parece estranho fazer dessa relação o núcleo do roteiro do filme, que se inicia com os cuidados de Ana com o acidentado Renato e termina com o gesto de reconhecimento dele, já à beira da fama, a ela nos versos de "Ainda é cedo".

Enquanto isso, a homossexualidade de Renato é reduzida – se me permitem continuar brincando com esses termos – à higiênica homoafetividade com Flávio Lemos e um certo Carlos (que, suponho, não tem nada a ver com o Trilha).
Laila "Ana" Zaid

Não se trata, acredito, de um detalhe, mas de um procedimento que se liga à extirpação de algo fundamental numa vitalidade que é tão literária e musical quanto existencial, de modo que nos deparamos com uma vida-inquietação que, fornecendo o mais das vezes fatos menos inquietantes (a relação do jovem Renato com as drogas, incluindo o álcool, parece igualmente mais simples do que provavelmente foi), se torna bem merecedora das risadas da platéia.

Fico pensando nos motivos disso – se relativos a ânsias globalizantes ou outras pressões – mas não me sinto em condições de julgar. Só acho que, malgrado seu título, Somos tão jovens é um filme que parece nascer velho, já pedindo revisão. Seu maior mérito talvez seja revelar, num grande e luminoso flash, que felizmente se estende por dois ou três minutos, o que foi a grandeza humana chamada Renato Russo, ao substituir, no fim do filme, a caricata representação pelo magnífico registro de um show verdadeiro da Legião. No mero contraste entre a profundidade do olhar de Renato e o arremedo de rebelde que permitiram Mendonça encenar escancara-se tudo o que filme não conseguiu – nem tentou – ser. Malgrado seu título, eu dizia, Somos tão jovens provavelmente faz mais jus à memória dos pais de Renato a respeito dele que propriamente à sua.

Salvam-se algumas boas interpretações – além da de Mendonça, a de Laila Zaid como Ana –, o registro, suponho, relativamente fidedigno de alguns detalhes curiosos, como as brigas de Renato com Fê e a excelente direção musical de Carlos Trilha. Mas, enfim, se alguém quer saber se recomendo ou não esse filme, minha resposta é não: quem quiser conhecer a história de Renato Russo e/ou da Legião Urbana, procure as biografias escritas: parciais que sejam, a maioria delas é provavelmente melhor que essa encenação meia boca.


P.s. - Incorporei essa expressão, "homoafetividade", ao meu vocabulário por obra de um grande e velho amigo, mas acho que ele prefere não ser citado a respeito, hehe.

Outro p. s. - E esse mesmo amigo me diz que a Ana, na verdade nunca existiu. E um outro que ela, na verdade, condensa várias namoradas de Renato. Ok, mas a pergunta permanece: e o "resto"? Se era para transforma o Russo num personagem sem angústias reais, era melhor não ter feito nada.