VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Raul vive!!! Veja, e ouça, e viva Raul!!!

Me desculpe quem chegou a conclusão diferente, porventura até oposta, mas de minha parte estou convencido de que o documentário Raul: o início, o fim e o meio é uma obra-prima. Não um filme “perfeito”, bem entendido – mesmo porque um filme sobre Raul não poderia ser isso (ou melhor, cultivar a ilusão de ser isso) sem ser absolutamente infiel e desrespeitoso a seu “objeto” –, mas um filme de uma grandeza inamovível, na força (não importa se “única”) com que traz à tona a grandeza e a força – mas também os dramas e contradições – do próprio Raul.

Algo como a aura de um milagre cerca esse filme, como cercou, em seus auges intermitentes (mas constantes), a vida e “o trabalho”, ou seja, o ser em curso de Raul. Em primeiro lugar, é claro, pela mera “presença” de Raul no filme, em registros tão vivos e intensos que tornam essas aspas quase ofensivas. Quando, quase no início, Raul surge em estado de graça, cantando “Loteria da Babilônia” e declamando o manifesto da Sociedade Alternativa, a energia e a vitalidade (eu quase escrevia luminosidade) que emanam de seu corpo, sua voz e suas palavras contêm algo que não se pode chamar senão de divino. São cenas que já circulam na internet, mas mesmo os fãs que as conhecem, e que sabem o que foi Raul, provavelmente se assombrarão com a imponência e altissonância dessas imagens, como que devolvidas à grandeza de seu instante-evento na ampliação da tela e do som da sala de cinema.

E, cá entre nós, esse episódio fantástico e já tão comentado da mosca na sopa de Paulo Coelho (sopa de Coelho é maldade...), a aguadíssima sopa que Mr. Paul Rabbit tentava nos fazer engolir antes que uma vivíssima (e, como ele mesmo parece sugerir inconscientemente, quiçá brasileiríssima) mosca surgisse na cena, e, como que premiando nosso espanto, se tornasse tão incômoda a ponto de silenciar o Coelho e fazê-lo tentar eliminá-la com uma patada[1]; ou essa cena verdadeiramente incrível é uma prova de que uma espécie de chiste divino cerca a própria existência – e até ex-existência – do artista de gênio ou é (sabe-se lá!) fruto de um tremendo embuste, de um “planejamento” cujo imprevisível resultado, de qualquer forma, não poderia ser mais feliz. Se não for o caso, é claro, de uma transmigração meio à Quincas Borba, de um episódio, digamos, budista-tropical em plenos Alpes suíços, em pleno castelo medievalista de um dos escritores católicos mais vendidos do mundo...

E o que dizer da beleza quase transcendente do testemunho de Vivian Seixas, entrevistada pela própria mãe, Kika, e vertendo lágrimas de saudades pelo pai mas também de felicidade plena de se sentir filha dele, e 
poder falar dele?


Vivian Seixas

A força e a genialidade de Raul se espraiam de tal forma pelo filme de Walter Carvalho – sobretudo no início – que mesmo um Pedro Bial se deixa contaminar por ela, quando registra o privilégio de ter sido sua testemunha no auge de sua explosão. Mas se essa genialidade pode animar um farsante nato (ou inato) como Bial, ela também pode preocupar outro – vide a invectiva de Paulo Coelho de que não se fale do “mito” Raul (que, no entanto, afirmava: “não sou nenhuma ficção”) –, e ainda constranger um talentoso mas Veloso Caetano, cujos olhos, ou muito me engano, deixam ler, em algum momento, a velada confissão de que aquele artista ao qual finalmente alguém resolveu fazer justiça pública é maior do que ele.

Mas também pelos testemunhos propriamente documentais que colhe e registra o documentário de Carvalho é um grande filme. Por exemplo, o testemunho de críticos e produtores musicais a respeito da novidade, qualidade e centralidade de Raul – e não de outros baianos – na contracultura musical brasileira. Não que se trate de um trabalho exaustivo nesse sentido: muito ainda há a ser esclarecido, por exemplo, a respeito das parcerias e amizades de Raul, incluindo aí sua fase realmente mais problemática, a das farras com Oscar Rasmussem. Mas o pouco que Carvalho fez – sobretudo, é claro, no que diz respeito à mais famosa dessas parcerias –, além da própria visibilidade que ele deu a certos fatos, a certos pingos que há muito demandavam ser colocados nos is, já constitui um ato de justiça à memória e à obra, para sempre vivas e indomáveis, de Raul.

O maluco e o malandro, digo, “mago”

"Ó, pousou aqui, ó."
Ninguém em sã consciência pode negar a importância de Paulo Coelho na trajetória artística e pessoal (que são uma coisa só) de Raul, mas o êxito posterior do “mago escritor” parece ter confundido um pouco as coisas a esse respeito, levando muita gente a pensar que era ele o responsável pelas “super letras” (encontrei isso num blog) dos primeiros discos solo do parceiro. É grandemente constrangido, com uma humildade um tanto envergonhada (mas, enfim, corajosa), que Rabbit admite que foi Raul quem o ensinou a fazer letras de música. Que foi Raul, na prática, quem compôs Gita, ou seja, que deu acabamento ao Bhagavad-Gita do qual Coelho deve ter feito um resumão (que, no filme, ele chama de “poesia”); assim como compôs “Metamorfose Ambulante”, que dom Paulete assevera que gostaria de ter feito com Raul, meio que sabendo que isso teria feito mais diferença para si mesmo que para a canção, pois ele seria o que sempre foi: um coadjuvante na “relação” com Raul, alguém que este literalmente levava consigo, e não o contrário. Exatamente, aliás, como em “Super-heróis”: “Chamei dom Paulo Coelho e saímos lado a lado...”.

Mas não vou me deter muito nesse terreno delicado, talvez uma dessas histórias que, não fossem certos impedimentos, seriam mais bonitas – mas também mais dolorosas – do que foram. Também não sou partidário da tese da “perda” de Raul por Coelho, o que o filme também deixa perceber que é mais uma falácia que este sustenta implicitamente, quase se vangloriando dela. Coelho pode ter conferido – para o bem e para o mal – mais “substância underground” ao parceiro, mas quando Carvalho registra, por exemplo, a presença de Edy Star no trajeto inicial de Raul (apesar da ausência quase total, e imperdoável, de Sérgio Sampaio, que Edy apenas menciona), obriga o espectador a saber que essa substância já circulava nele; em suma, que antes da Sociedade Alternativa, Raul já havia “fundado” – e, ao lado de Star, Sampaio e Miriam Batucada, honrado com 
esse impagável “manifesto” sonoro – a Sociedade da Grã Ordem Kavernista.

Os kavernosíssimos Kavernistas
A importância de Paulo Coelho (mas também, anote-se, de Marcelo Motta) na vida e na obra de Raul foi ter lhe dado densidade – uma “densidade mística” que desde cedo foi também humana –, mas como parte de uma busca do próprio Raul (que foi quem o procurou, como fica muito bem registrado). O salto da circense Grã Ordem (a rigor, pouco mais que um Mutantes mais precário e “baianizado”) para o protéico – e magnífico – Krig-Ha-Bandolo! de alguma reflete esse processo. Ainda assim, como se diz, é lindo perceber que o momento de maior grandeza do “bruxo”, e que afinal o redime no filme de Carvalho, foi aquele em que, engolindo corajosamente o constrangimento, ele admite que “o maior parceiro de Raul foi ele mesmo”.

O que serve pra reafirmar que boa parte das obras-primas de Raul – por exemplo, “Ouro de tolo”, “Metamorfose ambulante”, "O trem das 7", "S.O.S.", "Para Nóia" e "É fim do mês" (pra ficar apenas nos três primeiros discos) – são de autoria mais ou menos exclusiva de Raul. Digo mais ou menos porque também é verdade que o próprio Raul praticou suas malandragens autorais: para ele, como atesta outro parceiro importante, Cláudio Roberto, os empréstimos tomados a canções estrangeiras eram casos de justiça social. Só faltou assinalar que, a despeito de assassinatos como o de “You really got me” (que, por outro lado, já pertence patrimônio universal do rock) por um estrambótico “Dá-lhe que dá”, quase todos os “plágios” de Raul foram na verdade recriações musicais extremamente bem-sucedidas, repletas de originalidade. Ou alguém vai reduzir o valor, por exemplo, de “Ave Maria da Rua” só porque seu arranjo é uma imitatio de “Bridge under troubled water”? Ou o de Eu nasci há dez mil anos atrás porque “traduz (mas também enriquece, e muito) um country rock de Elvis Presley?

Rock'n'baião

Por falar em Elvis, desde as primeiras cenas o filme insiste, via Blue Moon/Asa Branca (num clip ilustrado por imagens motorizadas, à la Easy rider, protagonizadas por um sósia de Raul), que tão importante quanto o Rei do Rock foi o Rei do Baião na formação musical de Raulzito. Segundo sua mãe (a vivíssima Maria Eugênia Seixas), ainda menino ele ouvia os discos de Luiz Gonzaga o dia inteiro o que obriga José Walter Seixas, irmão de Raul, a completar: "É, e música americana". Que foi o rock o grande "toque" do maluco metamorfo não há nenhuma dúvida, mas o depoimento de Dona Maria Eugênia serve para atestar que se é verdade que, como diz o mano Caetano, ele teve em algum momento uma vontade feladaputa de ser americano, nunca deixou de se orgulhar de ser brasileiro. Apesar dos muitos pesares.

O monstro SIST

Carvalho aborda pouco a relação de Raul com os "Atlantas colossais", ou seja, a mídia, os empresários e as gravadoras, mas o pouco que o filme mostra – sobretudo sobre o início da carreira, na CBS – é suficiente para fixar dois pontos fundamentais. Primeiro, o desconforto de Raul com os esquemas das grandes gravadoras: antes de Krig-Ha-Bandolo!, quando via suas pretensões artísticas reduzidas a uma bem-sucedida mas pouco criativa carreira de produtor, Raulzito pensava seriamente em voltar para a Bahia. Segundo, que a "facilidade" de suas letras e melodias atendia muito menos às demandas comerciais do que a uma intenção comunicativa: era com "o povo" que Raul queria falar, e ainda hoje ele fala com "o povo". Não é preciso ser ingênuo pra reconhecer que, se tivesse aberto mão de sua verve polêmica e rebelde, Raul teria transitado muito melhor pelo "sistema".

Os dois diabos

Uma das maiores virtudes do filme é abordar a relação de Raul com o misticismo de forma clara e, sem trocadilho, desmistificadora. Fica claro, em primeiro lugar, que Raul nunca foi submisso a quaisquer seitas ou ideias esotéricas, como, aliás, de qualquer tipo. É outro episódio engraçado envolvendo dom Paulete: o thelêmico Euclydes Lacerda, ao lado do idem Toninho Buda, antes ou depois de revelar que o catolicíssimo Coelho ainda não pediu desfiliação da Ordo Templi Orientis (o que, depois, causa profundo incômodo no mesmo), confirma que era Mr. Rabbit, na dupla, o principal receptáculo da doutrina, sendo aliás bastante obediente a ela... "Raul não", Euclydes completa, com um sorriso finíssimo. Vale também o testemunho de Caetano, que, visitado por Raulzito em sua fase mais “alternativa”, não conseguia evitar a postura irônica, o que, ele assevera, despertava o instinto irônico do próprio Raul...

Toninho Buda

Mas também é importante o esclarecimento – e não há palavra melhor – a respeito do conteúdo do esoterismo de Raul. O gesto fundamental, nesse caso, pertence a Toninho Buda, que, devidamente caracterizado, lembra distinção, em "Rock do diabo", entre o diabo dos toques e o do exorcista, o demônio grego e o católico, para afirmar o disparate que é a redução de um ao outro, assim como a da imagem de Lúcifer enquanto iluminado à figura chifruda e ridícula da iconografia católica. E Euclydes ainda lembra que “faz o que tu queres” não quer dizer simplesmente “faz o que quiseres”, deixando implícito que aquele “tu” remete a uma vontade interior autêntica e profunda.

Não que isso tenha valido o tempo todo para o próprio Raul. O fato, porém, é que todo o filme de Carvalho – e mesmo nos momentos mais dolorosos –, transpira o panteísmo raulseixista, ou aquilo que de bom grado eu chamaria seu egoísmo-panteísmo. Aliás, não sei se eu devo ficar muito grato ou muito puto com Carvalho, pois tenho a impressão de que seu filme diz, indireta mas suficientemente, tudo o que eu gostaria de dizer sobre Raul, e que eu arrolaria sob sua divisa, a meu ver, mais importante: "O amor de todos os mortais".

As mulheres

Um mérito indiscutível de Carvalho foi ter conseguido colher entrevistas de todas as ex-mulheres mais ou menos oficiais de Raul – à exceção da primeira delas, a sempre esquiva Edith Wisner, mas mesmo nesse caso as cenas e fotos (sobretudo do casamento), de uma beleza tão tocante quanto a da própria Edith, de alguma forma suprem a lacuna. Ou melhor, não suprem, mas é até melhor que seja assim, tudo apenas tocado, em se tratando da que foi, provavelmente, a relação mais “romântica” de Raul.

Edith e Raul
Nos outros casos, principalmente de Kika e Gloria Vaquer, fica o testemunho do quão apaixonante foi Raul, o que transpira na orgulhosa reivindicação dessas mulheres belas e fortes de terem sido amadas por ele; e também, no caso de Gloria, no abatimento, ainda presente mas não reduzido à mágoa, de ter sido preterida em algum momento. A certa altura, aliás, Gloria explica o fato de Raul ter tido amantes como um fato relacionado à cultura brasileira, na qual a fidelidade conjugal geraria a suspeita de homossexualismo – o que naturalmente faz pouca justiça à filosofia libertária do próprio Raul, esta sim, à qual ele nunca deixou de ser fiel.

Por outro lado, é pena que Carvalho não tenha chegado a explorar um dos aspectos mais interessantes das relações amorosas de Raul, que é sua imbricação com o trabalho artístico, por meio de parcerias, por exemplo, em obras-primas como as delicadíssimas “Sunseed” e “Mata virgem” e a enfezadíssima "Pagando brabo", a primeira com Gloria Vaquer e as outras duas com Tânia Menna Barreto (ambas do excelente Mata virgem), ou as, digamos, transcendentais "DDI (Discagem Direta Interplanetária)", "O segredo da luz" e "Nuit", todas  e várias outras  com Kika Seixas; a última, com uma "participação especial" de Schopenhauer.

 
“E quão longa é a noite...”

Outro registro importante: a declaração de, salvo engano, Gloria Vaquer de que foi o álcool e a cocaína, não a maconha, que esvaíram as forças – e a beleza – do Maluco Beleza. É chocante, aliás, a percepção de como foi abrupto o início da decadência de Raul, cujo primeiro sintoma inequívoco, no filme, é justamente um registro de “Maluco Beleza”, realizado, provavelmente, em estado de semiembriaguez. É comovente ver Raul, a certa altura, tentando interpolar um pequeno discurso sobre si mesmo no meio da canção e obrigando-se a calar, ao perceber que a pausa da letra não era suficiente. É comovente ver as fotos e imagens do ídolo combalido, com os olhos mortiços e o rosto inchado, em contraste com as performances vigorosas de poucos anos antes.

Mas é comovente constatar, também, que esse vigor nunca arrefeceu totalmente, e nesse sentido as imagens dos derradeiros shows com Marcelo Nova já redimem, por si sós, o que quer que eles possam ter significado de ruim em termos de saúde para Raul. O fato fundamental a esse respeito é muito simples, e perceptível no filme: Marcelo proporcionou a Raul a chance de continuar vivo e ativo, além de produzir com ele sua última obra-prima discográfica, não menos irregular mas não menos vigorosa que a maioria delas, a caudalosa A panela do diabo.

Marcelo e Raul, + ou novos
Só pra terminar

Eu já disse, e repito, que Raul: o início, o fim e o meio não é filme "perfeito" – eis aí, aliás, uma bela e espúria palavra. Pelo contrário, é um filme tão irregular quanto foi a vida e a obra de Raul, e não poderia ser diferente, se Carvalho decidiu ser fiel à vida de Raul, não só a seus fatos mas, principalmente, a seu espírito. É um tipo de “respeito pelo objeto” que nos obriga a assistir e até nos saturar com cenas mais ou menos ridículas – mas sempre, também, seu quê de poesia. Como Carvalho poderia ser fiel ao espírito de Raul se, por exemplo, não concedesse o espaço reivindicado por seus amigos de infância, com suas demandas de publicidade ou suas “performances” tão risíveis quanto, às vezes, admiráveis? É verdade que às vezes o excesso de edição incrementa (ou até determina) o kitsch da situação[2], mas nem o kitsck – e, claro, o brega – era estranho a Raul nem Carvalho se furta ao outro lado, digo, um dos outros lados de Raul, a acidez irônica, permitindo-se, por exemplo, acentuar o ranço autoritário de um desses tipos impagáveis que encarrega-se, ele mesmo, de mandar cortar a cena – o que é impagavelmente mantido na edição.

Trazer à tona o espírito de Raul significa ouvir seus espíritos, os que emergiram dele e os que o rondaram, os que se comunicaram com ele, incluindo aí aqueles de onde ele adveio (por exemplo, Élvis, Gonzaga etc.). Ouvi-los e respeitá-los, menos, porém, no sentido de uma atitude formal ou servil que no de atender ao que eles demandam – de responder-lhes, de dialogar com eles. Às vezes, talvez, de formas meio abusivas, como me parece ser pelo menos um caso: o da inclusão da mensagem que uma das filhas de Raul lê pela internet recusando-se a conceder entrevista sobre o pai – inclusão algo birrenta e perfeitamente desnecessária, mesmo porque a moça acabou concedendo a entrevista, que aliás tinha acabado de ser mostrada. Se também uma pequena baixeza como essa pode ser tributada ao “espírito de Raul” (por exemplo, em “Você roubou meu videocassete”), este seria um caso, talvez, em que o diretor poderia evitar esse “contágio”...

Mas são detalhes, embora detalhes importantes, como tudo o que diz respeito a Raul para seus fãs inesgotáveis. Pois Raul é eterno, e sempre vai haver um maluco para gritar, em alguma "cover night" de rock inglês: TOCA RAUL!!! Sempe vai haver uma criança que, distraída ou atentamente, ouvirá Raul e se encantará, no mesmo instante e para sempre, com sua verve, seu ritmo, seus toques e seu canto.


[1] Não fica claro se ele conseguiu, o que aliás é bem possível: acertar na mosca, como mostra outra cena (também, aliás, algo impressionante), é uma especialidade de Coelho. Mas é claro que, a despeito disso, Carvalho não deixaria de dar a última palavra a Raul: “Porque cê mata uma e vem outra em meu lugar!”.

[2] Numa cena, um dos amigos – o, digamos, mais “maluco beleza” – de Raul canta “Blue suede shoes”, em cenas intercaladas com as de um registro ao vivo de Elvis, cenas e registro que – é o pior de tudo – se fundem no fim.

Nota póstuma:
Além do esclarecimento de Joba Tridente, nos comentários, a respeito da pequena "baixaria"  que eu identifiquei erroneamente, há outros erros neste post, conforme eu só descobri quando vi o filme pela segunda vez. Por exemplo, não é "Blue suede shoes" que o amigo de Raul canta "em dueto" com Elvis, mas "Trouble" ("If you're looking for trouble..."), e foi em "Al Capone", não em "Gita", que Raul ensinou Coelho (segundo este) a fazer letra de música. Mas o que recomendo, mesmo, é que vejam o filme.

domingo, 22 de abril de 2012

"... de união Brasil-Portugal"


Essa aí é a capa da edição especial do Zé Carioca dedicada aos 500 anos do "descobrimento" do Brasil, uma postagem do blog Quadrinhos Antigos em comemoração a este 22 de abril com a qual eu tive a honra de colaborar. Mesmo sem ser lá muito crítica, a historinha é irônica, bonita e divertida. Confiram!

http://quadrinhosantigos.blogspot.com.br/2012/04/ze-carioca-especial-brasil-500-anos.html

sexta-feira, 20 de abril de 2012

Santa Inocência, ou o terror afegão e a gula imperialista (e a atualidade de Eça)

Um dias desses eu li em algum lugar uma manchete - numa dessas revistas "inteligentes" da Abril - onde o Afeganistão era denominado, além de "berço de Osama Bin Laden", o "Vietnã soviético".

Muito bem, a essas alturas do campeonato já não vejo grandeza alguma (como, confesso, já vi um dia) na política expansionista do então império soviético, mas este não foi, nem de longe, o início do caos em que se transformou o Afeganistão, e nem é por acaso que ele assombra, agora, outro império - o capitalista, claro.

Ainda no final do século XIX, Eça de Queirós - que eu não parei de ler desde que o "descobri", conforme relato nessa postagem -, realiza uma análise implacável da "política" (as aspas são do próprio Eça) do colonialismo inglês para a região, diretamente ligada aos interesses capitalistas na Índia.

Abaixo, colo apenas a parte do texto - que se chama "Afeganistão e Irlanda" -, referente apenas ao assunto em questão, mas quem quiser lê-lo na íntegra - o que vale a pena, e muito - pode baixá-lo aqui.

Com, vocês, então, o Afeganistão no "distante" século XIX na visão de Eça de Queirós:


Os Ingleses estão experimentando, no seu atribulado império da Índia, a verdade desse humorístico lugar-comum do século XVIII: 

«A história é uma velhota que se repete sem cessar.»

 

O fado ou a Providência, ou a entidade qualquer que lá de cima dirige os episódios da campanha do Afeganistão, em 1847, está fazendo simplesmente uma cópia servil, revelando assim uma imaginação exausta.

Em 1847, os Ingleses – «por uma razão de estado, uma necessidade de fronteiras científicas, a segurança do império, uma barreira ao domínio russo da Ásia...» e outras coisas vagas que os políticos da Índia rosnam sombriamente retorcendo os bigodes – invadem o Afeganistão, e aí vão aniquilando tribos seculares, desmantelando vilas, assolando searas e vinhas: apossam-se, por fim, da santa cidade de Cabul; sacodem do serralho um velho emir apavorado; colocam lá outro de raça mais submissa, que já trazem preparado nas bagagens, com escravas e tapetes; e logo que os correspondentes dos jornais têm telegrafado a vitória, o exército, acampado à beira dos arroios e nos vergéis de Cabul, desaperta o correame e fuma o cachimbo da paz... Assim é exactamente em 1880.

No nosso tempo, precisamente em 1847, chefes enérgicos, messias indígenas, vão percorrendo o território, e com grandes nomes de pátria, de religião, pregam a guerra santa: as tribos reúnem-se, as famílias feudais correm com os seus troços de cavalaria, príncipes rivais juntam-se no ódio hereditário contra o estrangeiro, o homem vermelho, e em pouco tempo é todo um rebrilhar de fogos de acampamento nos altos das serranias, dominando os desfiladeiros que são o caminho, a entrada da Índia... E quan6o por ali aparecer, enfim, o grosso do exército inglês, à volta de Cabul, atravancado de artilharia, escoando-se espessamente por entre as gargantas das serras, no leito seco das torrentes, com as suas longas caravanas de camelos, aquela massa bárbara rola-lhe em cima e aniquila-o.

Foi assim em 1847, é assim em 1880. Então os restos debandados do exército refugiam-se em alguma das cidades da fronteira, que ora é Gasnat ora Candaar: os Afegãs, correm, põem o cerco, cerco lento, cerco de vagares orientais: o general sitiado, que nessas guerras asiáticas pode sempre comunicar, telegrafa para o vice-rei da Índia, reclamando com furor «reforços e chá e açúcar!» (Isto é textual; foi o general Roberts que soltou há dias este grito de gulodice britânica; o Inglês, sem chá, bate-se frouxamente.) Então o governo da Índia, gastando milhões de libras como quem gasta água, manda a toda a pressa fardos disformes de chá reparador, brancas colinas de açúcar e dez ou quinze mil homens. De Inglaterra partem esses negros e monstruosos transportes de guerra, arcas de Noé a vapor, levando acampamentos, rebanhos de cavalos, parques de artilharia, toda uma invasão temerosa... Foi assim em 47, assim é em 1880.

Esta hoste desembarca no Indostão, junta-se a outras colunas de tropa hindu e é dirigida dia e noite sobre a fronteira em expressos a quarenta milhas por hora; daí começa uma marcha assoladora, com cinquenta mil camelos de bagagens, telégrafos, máquinas hidráulicas e uma cavalgada eloquente de correspondentes de jornais. Uma manhã avista-se Candaar ou Gasnat – e num momento é aniquilado, disperso no pó da planície, o pobre exército afegã com as suas cimitarras de melodrama e as suas veneráveis colubrinas de modelo das que outrora fizeram fogo em Diu. Gasnat está livre! Candaar está livre! Hurra! Faz-se imediatamente disto uma canção patriótica; e a façanha é por toda a Inglaterra popularizada numa estampa, em que se vê o general libertador e o general sitiado apertando-se a mão com veemência, no primeiro plano, entre cavalos empinados e granadeiros belos como Apoios, que expiram em atitude nobre! Foi assim em 1847; há-de ser assim em 1880.

No entanto, em desfiladeiro e monte, milhares de homens, que ou defendiam a pátria ou morriam pela fronteira científica, lá ficam, pasto de corvos o que não é, no Afeganistão, uma respeitável imagem de retórica: aí, são os corvos que nas cidades fazem a limpeza das ruas, comendo as imundícies, e em campos de batalha purificam o ar, devorando os restos das derrotas.

E de tanto sangue, tanta agonia, tanto luto, que resta por fim? Uma canção patriótica, uma estampa idiota, nas salas de jantar, mais tarde uma linha de prosa numa página de crónica...

Consoladora filosofia das guerras!

No entanto a Inglaterra goza por algum tempo a «grande vitória do Afeganistão» com a certeza de ter de recomeçar daqui a dez anos ou quinze anos; porque nem pode conquistar e anexar um vasto reino, que é grande como a França, nem pode consentir, colados à sua ilharga, uns poucos de milhões de homens fanáticos, batalhadores e hostis. A «política», portanto, é debilitá-los periodicamente, com uma invasão arruinadora. São as fortes necessidades de um grande império. Antes possuir apenas um quintalejo, com uma vaca para o leite e dois pés de alface para as merendas de Verão...



Uma observação pertinente: essa imagem final, de "um quintalejo, com uma vaca para o leite e dois pés de alface", pode sugerir a ideia de um "imperialismo miúdo", mas a meu ver ela se relaciona muito mais com o anticivilizacionismo do "último Eça", com sua afirmação das serras e dos sítios (os "casais") em oposição à cidade; da temperança "naturalista" (não no sentido literário) em oposição à gula, à sanha insaciável do homem moderno e seu sistema de vida.