VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

"Operação Pinheirinho": ensaio para o fascismo?


Eu havia escrito que não podia falar muito sobre Pinheirinho porque não conhecia detalhes dos fatos, mas, pelo que eu li até agora, tudo é muito simples - e pode ser facilmente compreendido nessa síntese, postada no blog de Eugênio Ibiapino, de onde eu também extraí a "bela" foto que ilustra este post.

Vale a pena, também, assistir - e compartilhar - o vídeo "O massacre de Pinherinho: a verdade não mora ao lado". O minidocumentário pode ser visto com legendas em inglês e espanhol; para isso, basta clicar na barra CC, na barra inferior do próprio vídeo no youtube.

No fim de tudo, eu me pergunto: e quando a crise chegar, até onde iremos?

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Personas non gratas: Kim Dotcom, Julian Assange, sem-tetos do Pinheirinho etc.

Depois da detenção de Julian Assange, criador do Wikileaks, a repressão internacional organizada deu um outro passo rumo ao cerceamento da internet como espaço de distribuição de informações e produtos culturais: o fechamento do Megaupload e a prisão de seu proprietário, Kim "Dotcom" Schmitz.

Não tenho a intenção de aquilatar (sem maldade, por favor) Kim Dotcom e Assange. Este é um ativista aguerrido, decerto com suas contradições, mas admirável pela coragem com que expôs documentos importantes, entre eles testemunhos sinistros das barbáries cometidas em nome da "democracia ocidental"; o outro, um empresário que angariou lucros fabulosos com uma prática discutível - a de fornecer suporte para o armazenamento de produtos não raro protegidos por lei - mas que também exprime uma potência irrefreável da internet enquanto locus e socius virtuais: a de transcender as determinações puramente mercadológias, por mais que estas ainda a intrumentalizem e cerceiem.

A reivindicação de uma internet livre passa, necessariamente, pelo reconhecimento dessa potência e sua legitimidade, e nesse sentido trabalhos como o do Megaupload estão a serviço desse "ideal". Sem que deixe de ser verdade que o próprio Megaupload constitua, em si mesmo, um grande empreendimento capitalista. E sem que se torne imperioso reconhecer, também, que o tipo de prática propiciada e, ninguém se engana, estimulada por Dotcom prejudica muita gente - e não apenas grandes empresários mas também artistas e artesões culturais de todo tipo.

O que tudo isso expõe, no fim das contas, é uma tensão que o velho monstro SIST prefere tratar de forma maniqueísta, vitimizando-se. Num polo dessa tensão está a demanda de cultura e informação e de outro seu cerceamento político e, principalmente, econômico, em nome do sagrado direito a todo lucro possível.

Tensão semelhante à que vimos eclodir em São José dos Campos, embora de forma mais crua, com a premência do desastre social e a violência institucional explícita, tão típica de nossa tradição autoritária. Refiro-me, naturalmente, ao desmanche forçado da comunidade Pinheirinho, que ocupava, como se sabe, um terreno de propriedade do especulador Naji Nahas. Pois esses cidadãos - que eu me eximo de julgar do ponto de vista legal ou mesmo moral, mesmo porque não conheço detalhes da questão - têm em comum com Dotcom e Assange o fato de se apropriarem de propriedades ou espaços alheios e se tornarem, dessa forma, pedras no sapato de um sistema em ruínas.

Assange declarou esses dias, quando do anúncio de um programa de televisão, que a internet nunca foi ao mesmo tempo tão forte e tão ameaçada. No nosso caso, porém, essa força é muito incipiente: ainda parece longe o dia em que a sociedade brasileira se mobilizará em massa - ainda que no âmbito de nossas zonas de conforto virtualizadas - por algo mais que, digamos, aquela moça que veio do Canadá, e, ao invés de catapultar as vendas de um empresário do setor de imóveis, será capaz de exigir essa grande demanda social de nosso grande país de grandes proprietários que é uma reforma agrária de verdade.

Mas esse dia chegará, ou não chegaremos a lugar nenhum.


P.S.-
Eu sei que o plural de persona non grata é "personae non gratae", e alguém talvez censure o plural "sem tetos", mas a mim é que a gramática, "viva" ou morta, não é muito grata... O que, aliás, me serve de deixa pra recomendar a "novela linguística" - e um panfleto contra o preconceito linguístico - de Marcos Bagno, A língua de Eulália, disponível em versão digitalizada no site da UFSC e à venda, novo, no Mercado Livre e usado na Estante Virtual. Não é "alta literatura", mas uma discussão necessária.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Veja bem, brother...


Não que me agrade falar desses fatos vis (citando, pela primeira vez, os Hermanos), ainda mais logo no início do ano, mas o fenômeno do obscurantismo explícito cresce tanto, e a olhos tão vistos, que deve marcar época. Aliás, não suponho que a Época escape deles: experimente o leitor digitar "Privataria Tucana" no site dessa revista global e veja (sic) o que (não) aparece.

Ainda assim, o fato histórico mais saliente é a omissão da revista que lançou a candidatura de um certo "caçador de marajás" (segundo uma manchete sua) ao Planalto. Desde sua publicação, a Privataria só apareceu na edição impressa da Veja em um lugar: na lista de livros mais vendidos, e mesmo assim, de acordo com essa matéria do R7 Notícias, depois de uma sutil censura interna, que o substituiu, inicialmente, e não por acaso, pelo novo manual da direita jovem brasileira: um livro que, sob o chamariz "inteligente" do "politicamente incorreto", fragmenta a história do Brasil para readequá-la à visão dos vencedores. Bem ao estilo Veja, diga-se de passagem.

O fato, no entanto, é que o livro de Amaury Ribeiro Jr. já é o mais vendido do país, e esse fato, que mesmo a Veja é obrigada a registrar em suas páginas (em letras bem miúdas), só torna o silêncio mais gritante: pelo menos como "fenômeno literário" o trabalho deveria ser analisado. Mas a Veja (e a Globo, e etc.) conhece bem o mote infalível: "falem mal mas falem de mim"... Acontece que as mídias impressa e televisiva deixaram de ser os únicos canais de informação neste país e em qualquer outro, e essas tentativas de ignorar algo a que a internet deu ampla visibilidade certamente marcam o início do fim de um reinado: um reino de posse, seleção e manipulação das informações. Parodiando Marcelo Nova e Raulzito, é muito sol pra pouca peneira.

Aliás, a Veja não pôde deixar de "tratar" da questão em seu espaço on line; ou melhor, seus blogueiros paus-mandados o fizeram. Mas pra quê? Pra fugir do assunto, declarando que Amaury Jr. "tem que se explicar antes de denunciar outros", sem rebater concretamente uma denúncia sequer do livro, ou então pra lançar uma nova acusação contra o mesmo Amaury: a de que ele compôs uma canção intitulada "Marli meu travesti". Ou, ainda, pra heroicizar um dos agentes da privatização tucana: "Vivi dias terríveis. Mas disse a mim mesmo que não iria me abater. Agora terminou". Terminou mesmo? (Confira o leitor, se tiver estômago, o primeiro, o segundo e o terceiro textos citados.)

É por isso que, citando de novo o Nova, eu acho geniais esse verso do Camisa de Vênus: "Disfarça suas mágoas entre as páginas da Veja". É pra isso mesmo que serve essa droga: tapar o sol com a peneira. Função idêntica, é claro, à da televisão comercial (e não só esta), principalmente sua grande e, pelo visto, perene merda chamada BBB (não vou declinar essa sigla porque ela contém um nome apesar de tudo amado). Não que eu assista o big bosther boçal (taí uma tradução mais exata), mas não é por isso que vou fingir que o que acontece em seus domínios não espelha de alguma forma o que vivemos aqui fora.

E pensar que eu já escrevi que Pedro Bial pode ser um cara "do bem". Mas não depois disso que eu li nessa matéria do Correio do Brasil: que, no dia seguinte à noite em que se cogita ter ocorrido um caso de abuso sexual na "casa" do BBB 12, ele abriu o programa com essas belas palavras: "O amor é lindo". É mesmo, mas a minha vontade, a essas alturas, é citar o Nova novamente: "Não vai haver amor nesse mundo nunca mais". "Mundo" que o público do show registrado no disco Viva trocou por outra coisa, obrigando o roqueiro, acreditem, a rezar o Pai Nosso, e reafirmar: "mundo". Porque é desse mundo mesmo, em que vivemos, que se trata.

É... veja bem, brother! Mas tape o nariz, porque a coisa tá podre.


P.S. - Pra não parecer maniqueísta, reconheço uma dívida impagável com a Veja: as crônicas de Luís Fernando Verissimo, há tempos publicadas em suas páginas, foram um de meus primeiros estímulos à leitura. E pra refrescar o clima (mas não muito, porque haja climatizador), deixo abaixo minhas citações musicais:

"Veja vem, meu bem", com Los Hermanos

"Muita estrela, pouca constelação", com Camisa de Vênus e Raul Seixas

"Pronto pro suicídio", com Camisa de Vênus

"O adventista", com Camisa de Vênus (ao vivo)

"Esse mundo que eu vivo", com Lobão

O Nova, de novo, e o eterno Raul

sábado, 7 de janeiro de 2012

É tão estranho...

A dupla de postagens que se segue deveria incluir uma terceira, sobre outra perda relevante e, como a do Redson, recente: a de Daniel Piza. Li poucos de seus textos, pelo simples motivo de que meus caminhos virtuais são outros. Mas os poucos que li - além de trechos de sua biografia de Machado - me deixaram a certeza de um espírito lúcido, sadio e, por isso mesmo, inquieto. E penso comigo se não foi essa inquietação - política, social, humanística -, mais do que isso que se chama genericamente "estresse", que o levou tão cedo.

Daniel Piza
Como talvez tenha ocorrido, conforme aventou meu amigo e irmão espiritual Sebastião, com o Redson, vítima de uma úlcera que pode ter evoluído de uma gastrite nervosa. E, no entanto, a inquietação era parte da saúde espiritual desses grandes caras, como era de Tagore, como era do nosso Sócrates. Nem sempre a divisa "Mens sana in corpore sano" é verdadeira. Mais verdadeiro, infelizmente, é o verso que completa o que intitula este post suplementar: "Os bons morrem jovens".

Versos do mesmo poeta, Renato Russo, que também denunciou que "há tempos são os jovens que adoecem". Mas são esses mesmos jovens, incluindo Renato, incluindo Jim Morrison e tantos outros, que permanecem sempre jovens. Não porque morreram cedo, mas porque, embora às vezes ao preço da autodestruição (Renato Russo, como se sabe, praticamente se entregou ao HIV), permaneceram íntegros: permaneceram bons. Quem sabe um dia seja diferente, e os melhores não partam tão cedo.

Como Tagore (e Sócrates), meu pai, Antônio Heleno Carbonel Paz, morreu vítima do alcoolismo, e, como Redson, aos 49 anos. (Jovem ainda, acreditem: somos quase todos muitos jovens, pois os homens poderiam - e deveriam - viver muito mais.) Por isso dedico essa pequena sequência de textos à sua memória.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

O incendiador de palavras

Tenho evitado, por uma precaução meio instintiva, escrever posts ligados a datas de nascimentos que considero importantes, ou mesmo datas significativas em geral (o fato de ter escrito vários sobre o Natal certamente diz algo sobre mim e minhas demandas), principalmente porque isso me exigiria o comprometimento de um tempo de que não disponho. Cheguei a engavetar um ou dois posts já prontos, um deles sobre Raul Seixas – do que, aliás, me arrependo, de modo que na próxima oportunidade, ou seja, na própria data simbólica, o publico.

Do presente post, em todo caso, eu não vou abrir mão, em parte devido ao entusiasmo – digamos, “científico” – da hora, mas também porque ele envolve uma lembrança afetiva muito forte.

No dia seis de janeiro de 1958, em Olho d'Água, antigo distrito de Anicuns-GO, nascia o poeta e jornalista Tagore Biram, oficialmente Ubiratan Moreira. Tagore - uma homenagem ao poeta indiano Rabindranatah Tagore - se iniciou nas letras em Goiânia, onde publicou três livros de poesia, antes de residiir por vários anos em Campo Grande-MS. Aí, quando eu trabalhava na revisão do extinto Jornal do Brasil Central (o “jBc”, um dos semanários nada independentes da cidade mas que, pelo menos, era provavelmente o menos pior deles), tive a sorte de tê-lo, por um curto período, como editor.

Como meu pai, Tagore morreu, ao que tudo indica, em decorrência do alcoolismo. Um motivo a mais, é claro, para a forte empatia, já do tempo do jBc, onde ele chegava não raro atrasado, com a cara lavada e inchada, não sei se daquelas noites ou das já eternas noitadas (deixa eu quebrar essa rima involuntária) – às vezes, com certeza, as duas coisas.

Foi o editor mais camarada e deslocado com que já trabalhei, tanto que, salvo engano – e apesar da qualidade dos editoriais e das longas e brilhantes crônicas que ele escrevia –, não ficou muito tempo no jornal (mas eu saí antes, em busca de melhores cifrões). Lembro que, ainda às vésperas de minha saída, e quando ele começava a me ver como algo mais que um revisor boçal, falávamos em fazer uma página sobre Kafka para o caderno B. Ele – também para minha surpresa – se propunha a escrever sobre a “Carta ao pai”.

Certa vez, ele me pôs nas mãos, ou na minha enfadonha mesa de revisor, uma preciosidade cuja sobrevivência eu não tive, talvez por empáfia, o menor interesse de assegurar: uma ou, se não me engano, duas entrevistas datilografadas com Manoel de Barros, de cuja amizade ele se gabava abertamente. Eram diálogos recheado de elementos ou, quando menos, intenções poéticas, da parte de ambos. Não me entusiasmei com o muito pouco que li, com certeza principalmente por empáfia, e eles devem ter ficado na gaveta que eu abandonei às traças; nem sei se Tagore os recuperou.

Pouco antes ou depois de me casar com a Josy aqui “no Goiás”, tive a enorme surpresa de saber que Tagore não só é goiano como foi colega, mesmo amigo, de meu sogro, o também jornalista e escritor José Faria Nunes, que foi, aliás, quem me emprestou o primeiro livro que li de meu ex-chefe, Flauta noturna. O que fiz já decidido a escrever sobre o poeta – o que, exatamente, eu ainda não sabia, a não ser que teria a ver com o nomadismo que é uma das marcas de Tagore, o qual, saindo de Campo Grande, foi publicar outro livro e morrer no Chile em 1998, com apenas quarenta anos.

Tudo isso, ainda, muito tempo após uma pequena mas importante viagem – quando ainda morador em Goiânia – à então União Soviética, para participar de um encontro de escritores socialistas e declamar, no começo de um longo “Prólogo”, que

       Chegou a hora de incendiar as palavras
              e atiçar fogo na noite escura.

Clichês e emocionalismo – forte, às vezes mesmo barato, mas, à semelhança do “Amor barato” do Chico, nunca falso – são parte, mesmo, da poesia desse admirador de Neruda, desse pequeno grande cantor da vida, do amor, do desespero e das utopias. Pois é sensível como do primeiro para o terceiro livro – ou seja, de Flauta noturna para O anjo desafinado (vencedor do Prêmio Cora Coralina de 1987), sendo o segundo, Poemas do amor e da ausência, um curto intermezzo – a pena de Tagore se embebe de um fogo mais vivo, nessa sóbria e ébria arte incendiária que também Raulzito cantou, no forró-rock Movido a álcool (aliás, um protesto avant gard contra o etanol).

É desse entusiasmo que eu bebo agora, e devo muito dele a um grande amigo de Tagore, o também escritor Valdivino Braz, que prepara uma reunião dos poemas do Alfenim cerradense e me fez a enorme gentileza de adiantar a digitação d’O anjo desafinado – e além disso raríssimo – para que eu pudesse lê-lo, aliás, entorná-lo. Também a primeira foto deste post eu devo ao Braz, que a utilizou neste belo ensaio para a revista Bula.

Pois, então, um abraço no Faria e no Braz – e um brinde sadio, como igualmente raro se tornou ultimamente, à memória e à poesia de Tagore!

O eternamente jovem Tagore, em
foto de Flauta noturna

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Adeus ao Filho Vermelho


Somente hoje eu soube dessa perda irreparável, ocorrida no dia 28 de setembro do ano passado: a morte, tristemente precoce (aos 49 anos), de Edson - ou melhor, Redson - Lopes Pozzi, guitarrista e vocalista do Cólera. Mais do que uma banda "histórica", com mais de três décadas de estrada, o Cólera deixou canções memoráveis, repletas de uma energia visceral - testemunhei isso em um show inesquecível, em Campinas -, e cujas letras aliavam rebeldia e pacifismo de forma consequente. Seu primeiro disco, Tente mudar o amanhã, é em minha opinião o melhor do punk rock brasileiro.

Não bastasse isso, Redson foi um dos maiores realizadores do underground brazuca: produziu, por exemplo, o disco dos Kães Vadius que eu postei há alguns dias, e uma das coletâneas punk mais ricas de todos os tempos, a Ataque sonoro.

É claro que quem não se interessa por cultura underground (ou sub-subcultura, mas sub com muito orgulho) dificilmente pode compreender ou reconhecer a importância desses nomes, Redson e Cólera, na cultura jovem deste país, aliás via de regra ingrato com seus melhores filhos. Mas não sou eu que vou me meter a dar uma aula sobre isso. Passo a palavra para um fã que teve um privilégio que eu, analfabeto musical, nunca tive: o de tocar músicas do Cólera. Mas antes deixo falar - e soar - o próprio Filho Vermelho, em primeiro lugar nesse grito condoreiro em nome da dignidade e da coragem que ele soube encarnar:





        "Não me importa, eu vou em frente!"