VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Entre risos e ruínas: uma semana de teatro em Campo Grande

Nada como ter constatado, ao fim da semana em que se comemora o Dia Internacional do Teatro (dia 26 de março), que Campo Grande e Mato Grosso do Sul têm plenas condições de comemorar e honrar essa data. Foi o que demonstraram o Festival Boca de Cena, composto por nove espetáculos, e as duas montagens de textos de Plínio Marcos – o inédito O bote da loba e o consagrado Navalha na carne –, ambas no fim de semana retrasado, com a primeira reprisando no seguinte.
Oito dias de surto teatral, que infelizmente não pude acompanhar e vivenciar integralmente; do Boca de Cena, mesmo, assisti menos de 50% dos espetáculos: não teria direito sequer a certificado. Mesmo assim tentarei não só falar dessa semana especial como refletir brevemente sobre as condições atuais do teatro em Campo Grande a partir dela.
Sobre O bote da loba já escrevi esse outro post, mas aqui é um bom lugar para esclarecer algumas coisas a partir de informações que obtive junto ao grupo Mercado Cênico. Primeiro, quanto à origem do texto: trata-se de um trabalho de 1997, o último de Plínio Marcos, que pretendia escrever uma segunda parte mas abandonou a ideia. Daí certo ar de inconclusão, ou melhor, de fecho em aberto, que no fim das contas agradou ao dramaturgo.
Segundo, quanto à obtenção do texto, que se deu via contato de Carin Loro, atriz e estudiosa da obra de Plínio, com sua família. Uma verdadeira honra, como ela mesma definiu. E terceiro quanto à magnífica cena da dança, que de fato, como intuiu um amigo, é um acréscimo do grupo. E como elogiei a cena em meu texto, nada mais justo cumprimentar o grupo por ela.
Boca de Cena
Passemos, então, d’O bota da loba ao Boca de Cena. O primeiro espetáculo que vi no festival foi uma montagem de O santo e a porca, de Suassuna, pelo grupo Fulano di Tal. Várias coisas chamam a atenção nessa montagem. Em primeiro lugar sua indiscutível qualidade técnica, que no entanto reforça certas fórmulas de encenação e interpretação. Trata-se, afinal, de uma transposição do teatro popular de Suassuna para o palco italiano no contexto da nossa sociedade midiática, e é quase inevitável que o “padrão Globo” das adaptações do dramaturgo se reflita nessa proposta. A vantagem inegável é o grau de comunicação com o público.
Em segundo lugar há a questão da adaptação do texto de Suassuna. Embora, talvez, um pouco excessivos, os acréscimos humorísticos e modernizantes raramente chegam a ferir o espírito do original. Os maiores problemas, parece-me, derivam da redução deste. A dicotomia santo/porca, por exemplo, importantíssima no texto e na construção de Euricão, praticamente desapareceu na montagem. Talvez em função disso, o fim da peça foi praticamente reescrito. Quando Euricão ameaça quebrar o santo (perdoem o spoiler), aí sim é difícil reconhecer o espírito de Suassuna, tão zeloso da religiosidade popular e seus ícones. Ao mesmo tempo, o paroxismo que toma o personagem é sem dúvida um elemento dramático interessante. Além disso, em compensação, sua nova fala final inverte esse paroxismo numa tocante aceitação das “lições” do santo – o que é coerente, justamente, em função do paroxismo anterior –, enquanto o texto de Suassuna se conclui de forma aberta.
Enfim, entre perdas e ganhos, a montagem da Cia. Fulano di Tal dá uma demonstração de qualidade técnica e profissionalismo que são fundamentais na cena teatral de uma capital como Campo Grande.
Quem matou o morto?, o espetáculo seguinte a que assisti no festival, é um texto de um autor local, Breno Moroni. Trata-se, basicamente, de uma comédia circense com elementos de denúncia política, já que o morto em questão é um general da ditadura militar, cuja caveira é muito bem representada pelo crânio de uma espécie de monstro. Em contrapartida à covardia desse período tenebroso, a Cia. de Teatro e Circo M'Boitatá deu por si mesmo uma demonstração do heroísmo do teatro na figura da única atriz em cena, que não deu uma demonstração sequer das condições adversas (que não vou mencionar aqui) sob as quais atuou.  O trio, aliás, foi praticamente impecável, tanto nos diálogos quanto nas estrepolias circenses.
Só o título me pareceu um pouco fortuito. É verdade que a “resposta” (com muitas aspas) à questão que ele coloca se coaduna com o humor surreal do texto, mas a interrogação talvez pudesse ser inserida de forma mais orgânica ou explorada de forma mais criativa no interior da peça. Em todo caso, é sem dúvida um trabalho digno de Moroni, nome dos mais importantes na cena local, de quem eu já havia visto o belíssimo Os corcundas e de quem, dois dias depois, ainda vi o excelente Godgle. Mas isso merece um item à parte.
Godgle e a recriação terminal
A ideia, ou melhor, a “sacada” de Godgle é simples: reencenar a criação do mundo como instauração simultânea das mazelas e catástrofes produzidas pela humanidade ao longo da História. O Google, nesse sentido, é um mote para esse olhar retrospectivo, ao mesmo tempo que emerge como ícone máximo de um tempo em que essa acumulação ruinosa, não obstante mais visível do que nunca, se articula cada vez mais à alienação e à esquizofrenia social.
Também aqui a dramaturgia une o sério e o circense, mas agora numa espécie de equilíbrio tenso. A inspiração explícita em Esperando Godot é apenas um ponto de partida, já que Bob 1 e Bob 2 se desdobram em ações que Gogo e Didi nem sonham em executar; além disso, enquanto Godot é uma presença-ausência enigmática, que se manifesta na forma pueril de um jovem mensageiro, Godgle é uma presença-ausência, digamos, muito mais pragmática, cobrando tributos em espécie ou cartão e inspirando cultos descabelados que dão uma mostra do estado atual da religiosidade.
Mas a crítica de Godgle não se dirige apenas às religiões ou mesmo às sociedades modernas. Seu alcance é antropológico, ou melhor, psico-antropológico: por exemplo, na demonstração de que juntamente com a propriedade privada nasce o fetiche pelo outro; e sobretudo na encenação de uma criação do mundo na qual o elemento feminino está ausente, e que reflete as condições deste nosso velho e podre mundo patriarcal.
É curioso, nesse sentido, o contraste de Godgle com O bote da loba, onde, inversamente, apenas duas mulheres ocupam o palco, e onde, ao contrário do texto de Breno Moroni, produz-se um tipo de conciliação. Para além das questões de cunho sexual, penso que esse contraste se alia à centralidade demandada pelo feminino – não “pelas mulheres” – hoje, quem sabe como uma etapa para a construção de um equilíbrio mais efetivo dos seres e entre eles.
No mais, se for preciso criticar algum aspecto da peça, eu diria apenas que ela podia ser mais curta. Alguns espisódios me pareceram desnecessários e repetitivos, sobretudo no que tange à própria religião. É verdade que o efeito de vertigem causado pelo acúmulo de “absurdos” alegóricos é importante, mas por vezes a sutileza de uma crítica bem articulada ao humor, capaz de ecoar por muito tempo na consciencia ou mesmo no subsconsciente do espectador, se dilui a seguir numa crítica mais ostensiva. É claro que seria preciso dar exemplos específicos, e talvez eu possa fazer isso quando assistir a filmagem da peça. Por enquanto, fico devendo.
A cena e as demandas
Mas posso, nesse ponto, tentar elaborar minhas considerações gerais sobre a situação do teatro em Campo Grande, ou, talvez mais propriamente, da relação desse teatro com o público (de cuja perspectiva, na verdade, parte minha própria avaliação). Os termos da questão já foram colocados: a oscilação, dialética ou como quer que se concebam as relações entre a intenção séria e a intenção humorística, presente em todas as peças citadas; inclusive O bote da loba, que arrancou risos da plateia antes que o pudor (da própria plateia) falasse mais alto. E também, é claro, em O santo e a porca, onde o humor ganhou mais espaço que no original, por conta de inserções nas falas e na rubrica.
Breno Moroni
Mas é nas peças do próprio Moroni que a questão se coloca de forma mais interessante, já que se trata de obter equilíbrios – e tensões – mais delicados. Em Quem matou o morto?, a denúncia política intervém de forma quase pontual, mas com virulência suficiente para marcar a peça como um todo. Tanto que, à saída do espetáculo, várias rodas de conversa discutiam a questão da ditadura militar. Em Godgle, no entanto, a dialética de tensão e equilíbrio é mais difícil, e talvez reflita com mais propriedade a situação geral que tenho em mente.
Em vários momentos da peça foi possível notar manifestações de riso excessivas ou ligeiramente deslocadas na plateia. O que é natural num público diversificado – incluindo adolescentes e mesmo crianças – como, felizmente, foi o do festival; além disso, pelo menos uma vez um dos atores, Anderson Lima, afrontou diretamente a situação, voltando-se para o público e debochando de seu riso por meio de um riso “sem graça”. Esse gesto, que eu supunha programado no texto, foi um improviso do ator, como ele mesmo me revelou. E é exatamente essa situação referente à relação com o público que eu penso que deve ser encarada frontal e programaticamente pelos realizadores de teatro em Campo Grande.
Trata-se, em suma, de uma pequena – e riquíssima – encruzilhada. No estado atual de sua relação com o público, que é basicamente um público em formação, esses realizadores têm a chance de decidir entre fazer um teatro sério (em sentido amplo), eventualmente de vanguarda, ou um teatro popular. Ou, melhor ainda, de explorar conjuntamente essas possibilidades, com pesos diferentes mas levando em conta todos os elementos em jogo. Ou seja, de fazer um teatro sério que leve em conta e pense criticamente as demandas do público, incluindo aí a questão do humor.
Este, aliás, é um bom ponto para inserir um comentário sobre a montagem de Navalha da carne pelo Circo do Mato, que, como o nome indica, é ou era uma trupe circense (a mesma, aliás, que montou o já referido Os corcundas). Pois o texto visceral de Plínio foi a primeira montagem inteiramente séria do grupo. Assisti-a duas vezes, e, em que pese o desafio de personagens dificílimos, fiquei muito impactado pelo desempenho dos atores. E note-se que entre esses personagens há um, a travesti Violante, com uma forte potencial caricaturesco, que o ator Mauro Guimarães soube evitar, compondo uma figura tipificada mas nem por isso menos densa e dramática. O Circo do Mato encarou um desafio – um salto do circense para o dramático – e o venceu.
Não estou sugerindo que o humor seja inferior ao drama: Aristófanes, Shakespeare, Moliere ou mesmo Beckett e Ionesco morreriam de rir (ou me matariam a punhaladas) se eu pensasse isso. Aliás, 16 de março é não só o Dia do Teatro como o Dia do Circo, também festejado pelo Boca de Cena.
Estou me referindo, apenas, à situação da cena atual de Campo Grande e às demandas relativas ao tipo de público e de teatro ela quer construir. Aliás, aos tipos de público e teatro, pois a pluralidade é tão importante quanto a unidade – ou melhor, a união, e isso esses oito dias de surto teatral demonstraram que existe e pode se fortalecer ainda mais no Estado. Entretanto, quanto mais isso se der numa dialética viva e crítica (ou seja, não meramente comercial) com o público mais amplo possível, é óbvio que todos só têm a ganhar. A perder, só os grilhões.Merda!

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Rolê, rolezinho ou rolezaço, tamo junto


Hoje, em Campo Grande, acontece algo que, se não for inédito, talvez seja quase: um evento que reúne expressões do rap e do rock da cidade. É muito provável que eu esteja enganado – tomara que esteja –, mas o que eu vi mais perto disso, até agora, foi a noite (na verdade houve mais de uma) em que o Holandês Voador abriu as portas para a galera do rap e hip-hop. Foi uma noite exclusivamente deles, mas na qual assuntos como o parentesco do rap com o rock e o punk, a necessidade de união das tribos etc., circularam em mais de uma roda. Afinal, o Holandês Voador é (ainda é, mesmo temporariamente naufragado) o templo do rock de Campão.

Hoje, porém, a 6ª edição do Rolê Rolista tem expressamente esse objetivo: unir o rock e o rap de Campo Grande. Entre os artistas, estará presente o rapper Dumatu, que recentemente apareceu nos noticiários do Estado denunciando tortura sofrida por policiais, após ser detido devido a uma infração que não negou, pelo contrário, assumiu completamente. Esse sujeito de rara coragem – de peitar o poder, de assumir seus erros e de se engajar em causas válidas (confiram aqui o clipe de “Kaiowá Guarani”) – abre esse evento igualmente corajoso.

Mas este não é mais de meus posts sobre a cena musical de Campo Grande. Minha ideia é propor uma reflexão antecipada sobre um evento que ainda está por ocorrer, mais exatamente sobre suas motivações. Acredito que já existisse essa demanda, de criar eventos unindo o rock e o rap na cidade. Mas é curioso que ela se concretize agora, quase paralelamente, além dos fatos envolvendo Dumatu (e, antes dele, outro rapper e ativista da cena musical de Campo Grande, o multi-artista Dudu Miranda), aos chamados “rolezinhos”.

Não estou supondo que a galera do rap seja a mesma dos rolezinhos. O rap e o hip-hop são exercícios de consciência crítica e de expressão musical-corporal. Os rolezinhos são curtições em shopping-centers, que muita gente “crítica” de classe-média não demorou a taxar de coisa de alienados. O que pode até ser verdade (embora eu me pergunte quantas dessas pessoas “críticas” não vão ao shopping), mas não desmente o mérito que os rolezinhos tiveram de colocar em pauta o anseio de diversão dos jovens da periferia. Sim: diversão, às vezes, é solução sim, como diziam os Titãs. Provisória que seja, mas quem entre nós, roqueiros “brancos” e remediados, abre mão de nossas válvulas de escape?

Deve chegar o dia em que não serão mais necessários rolezinhos, em que rolezaços como o que deve acontecer hoje à tarde se espalharão pelo Brasil. Mas esse vai ser o dia, provavelmente, em que nunca mais se amarrarão negros pobres no poste ou na calçada, e talvez ele ainda demore um pouco. Até lá, vamo que vamo... sempre em frente porque não temos tempo a perder.

Já disse, num post anterior (justamente sobre a noite rapper do Holandês), que o rock tem muito o que aprender com a galera do rap. Disse isso como diletante metido a roqueiro, e congratulo, agora, a galera do rock que promove o Rolê Rolista pelo espaço que abrem para o rap. Suponho que o pessoal do rap também tenha o que aprender com o rock, mas não conheço a realidade deles o suficiente para dizer exatamente o quê.

Pra fechar, registro que esse evento tem como patrocinador um novo estúdio musical de Campo Grande, que, acredito, tem como proposta a mesma do evento, ou seja, ser um canal para o rock e o rap da cidade e do Estado. Tomara que ele seja fiel a essa proposta, tornando-a realmente viável.

Digo isso porque outro dia um amigo de nome sonoro, Jorge Ostemberg, me pediu para que escrevesse algo sobre empreendedorismo, uma questão que tem me interessado mas sobre a qual descobri que não tenho nada a dizer, a não ser isso: que há empreendimentos que podem valer a pena não pela alta rentabilidade que extraem ou prometem, mas pela importância e coragem do que realizam.

Vida longa ao rock, ao rap e à musica de Campo Grande!

domingo, 12 de janeiro de 2014

Batateogonia




Ao amigo Wellington Fernandes


I - GÊNESIS


“Em verdade, no princípio, tudo eram batatas, mas depois veio Elma Chips, de amplos seios, e Pepsi, o deus das trevas e dos gases. Da união de Elma e Pepsi, fez-se a Luz, que iluminou as batatas. Elma contemplou a Luz e disse: ‘comam-se as batatas’. E as batatas foram comidas.


Em seguida, Pepsi, que tudo vê, vendo que as batatas eram boas, disse: ‘crescei e multiplicai-vos’. Então as batatas ocuparam todo Universo. Elma chamou a isso de Batatais.

Sob as folhagens dos imensos pés de batata, surgiu Penumbra, filha do onisciente Pepsi e da onipotente Elma.


No segundo dia, Elma teve sede e conheceu o sofrimento. Dos seus olhos então brotaram lágrimas, que molharam os Batatais. Pepsi, bebendo das lágrimas, viu que elas eram boas e disse: ‘faça-se a água’. Foi quando, dos olhos de Elma, criou-se o Oceano, inundando grande parte dos Batatais.

"Sob as folhagens dos imensos pés de batata surgiu Penumbra..."
O Sol surgiu no terceiro dia, o Oceano ferveu e cozinharam-se as batatas. Pepsi provou das batatas e do caldo, dando a este último o nome de Água de Batata.

Tudo ainda era desabitado. E assim, da Água de Batata, surgiram Darwin e todos os seres vivos que povoam o Universo.

Darwin disse: ‘dessa água jamais beberei’. Foi o quarto dia.

No quinto dia, Darwin foi dar um rolê, pra descolar umas mina, mas só encontrou batatas. Depois de andar muito, o homem deitou-se à sombra dos batateiros e adormeceu. Primeiro, sonhou que era Newton e que uma maçã caía sobre sua cabeça; depois, sonhando que era um sábio chinês, que sonhava que era uma borboleta, que sonhava que era Raul Seixas, sonhou que uma serpente de sete cabeças enroscava-se sete vezes em torno de um pé de batata.

– Não quis assustar-te! – disse a serpente – Meu intuito era fazer-te a Grande Revelação.

E a revelação foi feita:

– Se queres descolar umas mina, rouba o fogo dos deuses! – aconselhou a serpente.


Quando Darwin acordou, viu que a serpente era o deus Brahma e os dois saíram para tomar uma Skol. Isso foi no sexto dia.


Embriagado, Darwin subiu aos céus e roubou a caixa de Fiat Lux de Elma Chips. Mas o homem, não sabendo dominar o fogo, acabou incendiando os Batatais. Daí, fez-se o Caos que perdura até hoje”.


II - OS ESTADOS DA MATÉRIA


Na natureza, a Água de Batata pode ser encontrada em três estados: São Paulo, Paraná e Bahia. Em Minas, decretou-se a moratória, e o governo federal cortou o fornecimento do fluido vital. Entretanto, como se diz por aí, nada se cria, nada se perde, tudo se transporta. Assim também é com a Água de Batata que, quando transportada pelos vários estados da natureza, adquire diferentes coloração, densidade, textura, brilho, viscosidade, maciez e volume.

"Na natureza, a Água de Batata pode ser encontrada em três estados..."
Deste modo, toda matéria – do chumbo ao ar, da verruga da sogra às curvas da vizinha – tudo é composto pela mesma substância: a Água de Batata, em suas incontáveis formas de manifestação. Por isso, os textos sagrados afirmam que somos Água de Batata e à Água de Batata retornaremos.

III - UNIPUNK

Naquele tempo, éramos apenas estudantes latino-americanos, sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e habitantes da cidade universitária Severino Faz – editor da revista Gente que Vaz e criador de toda a Universidade.

No sétimo dia, Darwin estava numa puta ressaca animal: dormiu o domingo inteiro e só foi acordar na manhã seguinte. Era uma segunda-feira e, como já se aproximava a hora do almoço, caminhamos a pé, da moradia à Unipunk. O mundo era então um interminável campus de batata, um verdadeiro Éden Batatal. Quando chovia, levávamos quarenta dias e quarenta noites para percorrer o caminho. Naquela segunda, porém, como fazia sol, chegamos ao bandejão por volta do meio-dia. A fila era uma serpente que dava volta ao mundo e mordia a própria cauda. E, por não termos outra opção, resolvemos enfrentá-la assim mesmo.


Logo à nossa frente, encontramos Don Juan, velho índio feiticeiro, que veio puxando conversa conosco. Ele era um sujeito muito estranho, mas já estávamos acostumados e deixamos o velho falar.

"Logo à nossa frente, encontramos Don Juan..."
Tomamos a refeição, conversando banalidades, como, por exemplo, sobre o que poderia ser aquela sobremesa do dia, uma espécie de doce que nunca se vira antes. Cada um deu uma resposta diferente, sem que chegássemos a uma conclusão. Era um manjar dos deuses, uma gelatina ou um tipo de pudim?

Foi então que Dom Juan interrompeu a discussão:

– Isso é feito de água de batata!

Rimos todos, com exceção do próprio Don Juan. Como é que aquele doce marrom meio gelado, com gosto de maizena, consistência de escargot e cheiro de remédio poderia ser de água de batata?!?


Don Juan permaneceu sério, olhou firmemente para cada um de nós e disse:


– Quando sairmos daqui, peguem um desses doces dentro de um só copo por pessoa e vamos até o Ciclo Básico!


Seguimos as instruções do velho índio.

"...enquanto o velho entoava uma canção monotônica, rouca..."
Quase às duas horas, estávamos sentados no chão, em círculo, cada um com um pequeno pedaço de doce na mão direita, em volta de Dom Juan.

– Agora – disse ele – esfreguem o doce nas têmporas e fechem os olhos.


Fizemos isso, enquanto o velho entoava uma canção monotônica, rouca, de efeito hipnótico...


IV- SEGUNDA-FEIRA

“Conheci a vigília, o sono, os sonhos,
a ignorância, a carne, os torpes labirintos da razão,
 
a amizade dos homens, 
a misteriosa devoção dos cães.”
(Jorge Luis Borges - João, I, 14)

...de repente, minha visão tornou-se esfumaçada. A voz de Don Juan deu cambalhotas no ar, metamorfoseando-se em Pablo Milanés, Mercedes Soza e o time titular quase completo do Cerro Porteño.

Maya surgiu em minha frente e disse: “Tudo é ilusão! Tudo são batatas!”

O tempo, correndo em todas as direções, era um animal em fuga, impedido pelas quatro paredes. Não sei como explicar o que houve, mas ainda estávamos no Bandejão e, de repente, tive uma clareza absoluta das coisas, como se só agora, enfim, despertasse: o doce, cuja natureza discutíamos, sem dúvida era feito mesmo de Água de Batata; o frango frito, o feijão, o arroz, a salada, tudo era Água de Batata; as colunas, o teto, as mesas e o chão eram Água de Batata; a bandeja era Água de Batata. A Água de Batata era uma espécie de fluido energético que se infiltrava em toda matéria. Mais do que isso, compunha toda matéria!

Olhei para Dom Juan e meus colegas. Eles também não passavam de Água de Batata, transformados em gente pelo poder de Maya. Eu próprio era Água de Batata.  Pelas veias do meu corpo inteiro, senti correr o líquido onipresente, pulsando com a mesma energia iniciada desde o Big-Bang. Havia algo, por trás da aparência de tudo, que igualava e unia os seres e as coisas. A mesma substância adquiria os mais diversos aspectos, mas, em essência, tudo era o mesmo.

Tudo era Água de Batata!!! Tudo, absolutamente tudo!!!


"...sonhando que era Darwin que sonhava que era Newton que sonhava..."
Até os pensamentos que eu tinha...

Saí do bandejão e caminhei pelos intermináveis campos de batata, durante quarenta dias.

Quarenta dias mais permaneci sob a sombra de um Batateiro Sagrado, sonhando que era Darwin que sonhava que era Newton que sonhava que era um sábio chinês que sonhava que era uma borboleta que sonhava que era Raul Seixas que sonhava que era eu, dormindo à sombra de um batateiro. Os séculos descreveram uma espiral e continuei sonhando, a percorrer infinitamente o traçado em direção ao centro: fui um dos vinte mil arqueiros de um dos vinte mil exércitos derrotados por Buda; fui um cangaceiro, um cavaleiro andante, um metalúrgico do ABC; conheci os deuses do amor, do pecado e da morte; amei Guinevere, Beatriz e Macabéa.


Passei fome no deserto, também conheci o luxo e o desperdício. Desfrutei dos prazeres da carne, tive os membros mutilados e matei até o arrependimento. Atingido por uma bala perdida no morro onde morava, fui a própria bala, invadindo apressada meu próprio cérebro. Caí na calçada e meu corpo foi jogado de um barranco. Sangrei e conheci a dor. Nasci outras milhares de vezes, outras milhares de vezes morri.

Na última dessas mortes, toda história da Unipunk passou pela minha mente, num relâmpago – desde quando tudo eram batatas, até aquele momento em que esfregávamos o doce nas têmporas. Senti que não estava só, que era forte e que jamais esqueceria... depois, vi apenas a escuridão absoluta, o silêncio, a imobilidade, o vazio, o nada....




... quando dei por mim novamente, estava no Bandejão, no ano passado, conversando com o Wellington sobre o que seria a sobremesa misteriosa daquela segunda-feira. Pareceu até que não sabíamos. E talvez nem soubéssemos mesmo...


Talvez simplesmente não quiséssemos nos lembrar ou talvez também tudo não passasse de Água de Batata!

Fabio Dobashi

Desenhos feitos especialmente para esta postagem por Muriel Vieira a meu pedido, com o objetivo, também, de comemorar os três anos de vida dos arquivos críticos. Obrigado, Muriel! Obrigado, Fabio!

Pra fechar, vale a pena conferir o vídeo de Ricardo Botini para a primeira parte do conto do Fabio no link abaixo.