Nada como ter constatado, ao fim da semana em que se
comemora o Dia Internacional do Teatro (dia 26 de março), que Campo Grande e
Mato Grosso do Sul têm plenas condições de comemorar e honrar essa data. Foi o
que demonstraram o Festival Boca de Cena, composto por nove espetáculos, e as
duas montagens de textos de Plínio Marcos – o inédito O bote da loba e o consagrado Navalha
na carne –, ambas no fim de semana retrasado, com a primeira reprisando no
seguinte.
Oito dias de surto teatral, que infelizmente não pude
acompanhar e vivenciar integralmente; do Boca de Cena, mesmo, assisti menos de
50% dos espetáculos: não teria direito sequer a certificado. Mesmo assim tentarei
não só falar dessa semana especial como refletir brevemente sobre as condições
atuais do teatro em Campo
Grande a partir dela.
Sobre O bote da loba
já escrevi esse outro post, mas aqui é um bom lugar para esclarecer algumas
coisas a partir de informações que obtive junto ao grupo Mercado Cênico.
Primeiro, quanto à origem do texto: trata-se de um trabalho de 1997, o
último de Plínio Marcos, que pretendia escrever uma segunda parte mas abandonou
a ideia. Daí certo ar de inconclusão, ou melhor, de fecho em aberto, que no fim
das contas agradou ao dramaturgo.
Segundo, quanto à obtenção do texto, que se deu via contato
de Carin Loro, atriz e estudiosa da obra de Plínio, com sua família. Uma
verdadeira honra, como ela mesma definiu. E terceiro quanto à magnífica cena da
dança, que de fato, como intuiu um amigo, é um acréscimo do grupo. E como
elogiei a cena em meu texto, nada mais justo cumprimentar o grupo por ela.
Boca de Cena
Passemos, então, d’O
bota da loba ao Boca de Cena. O primeiro espetáculo que vi no festival foi
uma montagem de O santo e a porca, de
Suassuna, pelo grupo Fulano di Tal. Várias coisas chamam a atenção nessa
montagem. Em primeiro lugar sua indiscutível qualidade técnica, que no entanto
reforça certas fórmulas de encenação e interpretação. Trata-se, afinal, de uma
transposição do teatro popular de Suassuna para o palco italiano no contexto da
nossa sociedade midiática, e é quase inevitável que o “padrão Globo” das
adaptações do dramaturgo se reflita nessa proposta. A vantagem inegável é o
grau de comunicação com o público.
Em segundo lugar há a questão da adaptação do texto de
Suassuna. Embora, talvez, um pouco excessivos, os acréscimos humorísticos e
modernizantes raramente chegam a ferir o espírito do original. Os maiores
problemas, parece-me, derivam da redução
deste. A dicotomia santo/porca, por exemplo, importantíssima no texto e na
construção de Euricão, praticamente desapareceu na montagem. Talvez em função
disso, o fim da peça foi praticamente reescrito. Quando Euricão ameaça quebrar
o santo (perdoem o spoiler), aí sim é
difícil reconhecer o espírito de Suassuna, tão zeloso da religiosidade popular
e seus ícones. Ao mesmo tempo, o paroxismo que toma o personagem é sem dúvida
um elemento dramático interessante. Além disso, em compensação, sua nova fala
final inverte esse paroxismo numa tocante aceitação das “lições” do santo – o
que é coerente, justamente, em função do paroxismo anterior –, enquanto o texto
de Suassuna se conclui de forma aberta.
Enfim, entre perdas e ganhos, a montagem da Cia. Fulano di
Tal dá uma demonstração de qualidade técnica e profissionalismo que são
fundamentais na cena teatral de uma capital como Campo Grande.
Quem matou o morto?,
o espetáculo seguinte a que assisti no festival, é um texto de um autor local,
Breno Moroni. Trata-se, basicamente, de uma comédia circense com elementos de
denúncia política, já que o morto em questão é um general da ditadura militar,
cuja caveira é muito bem representada pelo crânio de uma espécie de monstro. Em
contrapartida à covardia desse período tenebroso, a Cia. de Teatro e Circo M'Boitatá deu por si mesmo uma demonstração do heroísmo do
teatro na figura da única atriz em cena, que não deu uma demonstração sequer
das condições adversas (que não vou mencionar aqui) sob as quais atuou. O trio, aliás, foi praticamente impecável,
tanto nos diálogos quanto nas estrepolias circenses.
Só o título me pareceu um pouco fortuito. É verdade que a
“resposta” (com muitas aspas) à questão que ele coloca se coaduna com o humor surreal
do texto, mas a interrogação talvez pudesse ser inserida de forma mais orgânica
ou explorada de forma mais criativa no interior da peça. Em todo caso, é sem
dúvida um trabalho digno de Moroni, nome dos mais importantes na cena local, de
quem eu já havia visto o belíssimo Os
corcundas e de quem, dois dias depois, ainda vi o excelente Godgle. Mas isso merece um item à parte.
Godgle e a recriação terminal
A ideia, ou melhor, a “sacada” de Godgle é simples: reencenar a criação do mundo como instauração
simultânea das mazelas e catástrofes produzidas pela humanidade ao longo da
História. O Google, nesse sentido, é um mote para esse olhar retrospectivo, ao
mesmo tempo que emerge como ícone máximo de um tempo em que essa acumulação
ruinosa, não obstante mais visível do que nunca, se articula cada vez mais à
alienação e à esquizofrenia social.
Também aqui a dramaturgia une o sério e o circense, mas
agora numa espécie de equilíbrio tenso. A inspiração explícita em Esperando
Godot é apenas um ponto de partida, já que Bob 1 e Bob 2
se desdobram em ações que Gogo e Didi nem sonham em executar; além disso,
enquanto Godot é uma presença-ausência enigmática, que se manifesta na forma
pueril de um jovem mensageiro, Godgle é uma presença-ausência, digamos, muito
mais pragmática, cobrando tributos em espécie ou cartão e inspirando cultos
descabelados que dão uma mostra do estado atual da religiosidade.
Mas a crítica de Godgle
não se dirige apenas às religiões ou mesmo às sociedades modernas. Seu alcance
é antropológico, ou melhor, psico-antropológico: por exemplo, na demonstração
de que juntamente com a propriedade privada nasce o fetiche pelo outro; e
sobretudo na encenação de uma criação do mundo na qual o elemento feminino está
ausente, e que reflete as condições deste nosso velho e podre mundo patriarcal.
É curioso, nesse sentido, o contraste de Godgle com O bote da loba, onde, inversamente, apenas duas mulheres ocupam o
palco, e onde, ao contrário do texto de Breno Moroni, produz-se um tipo de
conciliação. Para além das questões de cunho sexual, penso que esse contraste se
alia à centralidade demandada pelo feminino – não “pelas mulheres” – hoje, quem
sabe como uma etapa para a construção de um equilíbrio mais efetivo dos seres e
entre eles.
No mais, se for preciso criticar algum aspecto da peça, eu
diria apenas que ela podia ser mais curta. Alguns espisódios me pareceram
desnecessários e repetitivos, sobretudo no que tange à própria religião. É
verdade que o efeito de vertigem causado pelo acúmulo de “absurdos” alegóricos
é importante, mas por vezes a sutileza de uma crítica bem articulada ao humor,
capaz de ecoar por muito tempo na consciencia ou mesmo no subsconsciente do
espectador, se dilui a seguir numa crítica mais ostensiva. É claro que seria
preciso dar exemplos específicos, e talvez eu possa fazer isso quando assistir
a filmagem da peça. Por enquanto, fico devendo.
A cena e as demandas
Mas posso, nesse ponto, tentar elaborar minhas considerações
gerais sobre a situação do teatro em Campo Grande , ou, talvez mais propriamente, da
relação desse teatro com o público (de cuja perspectiva, na verdade, parte
minha própria avaliação). Os termos da questão já foram colocados: a oscilação,
dialética ou como quer que se concebam as relações entre a intenção séria e a
intenção humorística, presente em todas as peças citadas; inclusive O bote da loba, que arrancou risos da
plateia antes que o pudor (da própria plateia) falasse mais alto. E também, é
claro, em O santo e a porca, onde o
humor ganhou mais espaço que no original, por conta de inserções nas falas e na
rubrica.
Breno Moroni |
Mas é nas peças do próprio Moroni que a questão se coloca de
forma mais interessante, já que se trata de obter equilíbrios – e tensões –
mais delicados. Em Quem matou o morto?,
a denúncia política intervém de forma quase pontual, mas com virulência
suficiente para marcar a peça como um todo. Tanto que, à saída do espetáculo,
várias rodas de conversa discutiam a questão da ditadura militar. Em Godgle, no entanto, a dialética de
tensão e equilíbrio é mais difícil, e talvez reflita com mais propriedade a
situação geral que tenho em mente.
Em vários momentos da peça foi possível notar manifestações
de riso excessivas ou ligeiramente deslocadas na plateia. O que é natural num
público diversificado – incluindo adolescentes e mesmo crianças – como,
felizmente, foi o do festival; além disso, pelo menos uma vez um dos atores,
Anderson Lima, afrontou diretamente a situação, voltando-se para o público e
debochando de seu riso por meio de um riso “sem graça”. Esse gesto, que eu
supunha programado no texto, foi um improviso do ator, como ele mesmo me
revelou. E é exatamente essa situação referente à relação com o público que eu
penso que deve ser encarada frontal e programaticamente pelos realizadores de
teatro em Campo Grande.
Trata-se, em suma, de uma pequena – e riquíssima –
encruzilhada. No estado atual de sua relação com o público, que é basicamente
um público em formação, esses realizadores têm a chance de decidir entre fazer
um teatro sério (em sentido amplo), eventualmente de vanguarda, ou um teatro
popular. Ou, melhor ainda, de explorar conjuntamente essas possibilidades, com
pesos diferentes mas levando em conta todos os elementos em jogo. Ou seja, de fazer
um teatro sério que leve em conta e pense criticamente as demandas do público,
incluindo aí a questão do humor.
Este, aliás, é um bom ponto para inserir um comentário sobre
a montagem de Navalha da carne pelo
Circo do Mato, que, como o nome indica, é ou era uma trupe circense (a mesma,
aliás, que montou o já referido Os corcundas).
Pois o texto visceral de Plínio foi a primeira montagem inteiramente séria do
grupo. Assisti-a duas vezes, e, em que pese o desafio de personagens
dificílimos, fiquei muito impactado pelo desempenho dos atores. E note-se que
entre esses personagens há um, a travesti Violante, com uma forte potencial
caricaturesco, que o ator Mauro Guimarães soube evitar, compondo uma figura
tipificada mas nem por isso menos densa e dramática. O Circo do Mato encarou um
desafio – um salto do circense para o dramático – e o venceu.
Não estou sugerindo que o humor seja inferior ao drama:
Aristófanes, Shakespeare, Moliere ou mesmo Beckett e Ionesco morreriam de rir
(ou me matariam a punhaladas) se eu pensasse isso. Aliás, 16 de março é não só
o Dia do Teatro como o Dia do Circo, também festejado pelo Boca de Cena.
Estou me referindo, apenas, à situação da cena atual de
Campo Grande e às demandas relativas ao tipo de público e de teatro ela quer
construir. Aliás, aos tipos de
público e teatro, pois a pluralidade é tão importante quanto a unidade – ou
melhor, a união, e isso esses oito
dias de surto teatral demonstraram que existe e pode se fortalecer ainda mais
no Estado. Entretanto, quanto mais isso se der numa dialética viva e crítica
(ou seja, não meramente comercial) com o público mais amplo possível, é óbvio
que todos só têm a ganhar. A perder, só os grilhões.Merda!
Nenhum comentário:
Postar um comentário