VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Augusta














Usando seu belo vestido comprido de seda preta Augusta que me puxa os cabelos
Augusta que urra com a minha boca sob sua saia. Augusta a bela dama de olhos néons e
9 mm preso na meia calça

Somos cobras calçando oxford rastejando nas múltiplas estampas de sua pele pálida
somos André e Gina. Párias de nariz branco e olhos pintados

Augusta que geme enrolada junto ao vicio que queimo constantemente.

Augusta que me batiza bebida que arde garganta e me faz ver Augusta pelos olhos
fluorescentes pulseiras no meu braço que dançam no escuro som dos gritos de
Augusta que nos limpa do canto da boca com língua afiada noite adentro de si.

Augusta que me fuma
Augusta que me cheira
Augusta que me bebe
Augusta que me entende e isso basta.

André

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Muito lixo, muito luxo, mas também algum sumo (inda que espectral)


Vi esses dias, num programa em família, o novo blockbuster animado da Blue Sky. Sensorialmente, é uma boa experiência: o Chico, não estivéssemos sob o teto de um templo que nos tolhia o céu (azul escuro, àquela hora), talvez saísse voando pelo mesmo. Estética e ideologicamente, é um caso a se discutir. Inclusive, a meu ver - e com o perdão do pedagogismo -, com as crianças, pelo menos a partir de certa idade.

Rio, segundo dizem - e embora o roteiro seja de Don Rhymer -, é um projeto pessoal do diretor Carlos Saldanha. Sem ser uma obra-prima, não é um mau filme. Comparado ao grande sucesso do estúdio (e de Saldanha), a série A era do gelo, é menos grandioso (sem demérito para as utraestilizadas "tomadas aéreas" da Cidade Maravilhosa), com um roteiro muito mais simples mas também menos histriônico, sem se tornar tedioso em nenhum momento. É um pouco menos sádico, também, a bem da verdade quase complacente com os "do mal", algo em que certamente entra, com o perdão da rima, alguma má consciência social.

Enquanto entidade moral-metafísica, aliás, o "mal" fica a meio caminho da naturalização e da condição propriamente social, já que seu principal representante fáunico, uma cacatua-monstro, é um pequeno refugo da indústria cultural, embora também, na velha ideologia do moralismo individualista, uma vítima de sua própria vaidade. E se aos bandidos humanos não cabe o benefício dessas explicações, de certa forma sua condição se reflete na do personagem que é o núcleo da "mensagem humanitária" (fora a "ecológica") do filme, ou seja, o menino (convenientemente, um "pretinho") a meio caminho da criminalidade, e pelo qual um dos traficantes tem particular simpatia. Ou seja, mesmo os monstros não são tão monstros assim, e podem ter sido, um dia, humanos. Muito bonito e correto, mas, na forma como é construído, francamente complacente com o grau de desumanização a que chegamos, e nem um pouco sensível aos fundamentos político-econômicos desse estado de coisas. Mas, enfim, é um filme para crianças que tenta abordar assuntos sérios de uma forma minimamente responsável.

Ou não tão responsável assim? Afinal, que dizer desse fato ao mesmo tempo grotesco e pueril que é a falsificação, digamos, ecossistêmica do enredo, ou seja, o fato de as araras que protogonizam a história estarem deslocadas do que foi um dia seu habitat natural? (Sobre isso, cf. este post.) Sem falar nesse outro, de que o filme fantasia uma salvação para um espécie já extinta sem alertar para isso. É claro, a melancolia não é um sentimento que se inculque nas crianças nas horas de lazer, mas acho que isso só torna a morbidez latente mais pulsante sob a película das conveniências - como aliás ocorre em A era do gelo, com a diferença de que neste caso o homem não desempenhou nenhum papel no processo em questão.

Quanto à questão do deslocamento geográfico, penso que, para além de nossos sempre nocivos centrismos geopolíticos (escrevo isso como carioca), estamos diante de outra demonstração de que o Brasil continua a ser visto como massa moldável às conveniências (de novo ela), no caso, evidentemente, às simbólico-mercadológicas implicadas na cor azul. Quando o casal formado pelo ambientalista brasileiro e a ex-proprietária (de um "produto" brasileiro, e ainda que "acidental") se unem na construção de uma espécie de espaço ecoutópico que abriga também o pequeno refugo humano de nossa tragédia social, tem-se a impressão de que ainda aí grassa aquela palavra-de-ordem anunciada por Raul Seixas (outro baiano, aliás, que, assim como a arara Blu, transitou de seu Estado para os EUA e daí para o Rio), segundo a qual "a solução é alugar o Brasil". E aí já soa bem mais perniciosa a justificativa com que o Ultraje a Rigor (a banda paulistana mais carioca dos anos oitenta) se consolava da censura às imagens de sexo na tevê: "Vá lá, vai ver que é pelas crianças"...

E que dizer, ainda, dos maquinhos batedores de carteira? Se há, de fato, macacos furtadores, não creio que se associem, pelo menos espontaneamente, a marginais humanos como os do filme (salvo engano, aliás, todos "morenos"). Nesse caso, a naturalização e os processos sociais se enlançam na forma do clichê mais pernicioso, e tanto mais porquanto perfeitamente consagrado.

Mas não quero ser injusto. Rio é um belo filme, que não vai muito além mas também não se esgota na plasticidade viva, na musicalidade envolvente e no enredo simples mas engenhoso. Disso tudo, emana (vejam que sublimo a coisa) pelo menos um sumo moral: a confiança, sentimento mais do que valioso em tempos sombrios como estes. Fosse um pouquinho mais sério (um pouco mais paulistano, talvez), poderíamos ouvrir em sua trilha sonora os versos de "Para ser humano", do Ira!:

Olhe para o ser humano
E tente nele confiar
Porque esse é um mundo injusto
A se autodetonar
Porque esse é um mundo incerto
Que seus filhos vão habitar

Esse gesto, afinal, é o que o casal de protagonistas (humanos) concede ao menino-tipo, síntese puerilmente positiva do herói-bandido que habita nosso imaginário, muito embora ela, a ex-proprietária da arara e futura tutora do menino, a certa altura se arrependa desse gesto, exigindo dele, o menino, a ação necessária para reconquistá-la - a confiança e o direito a uma vida melhor, quiçá "de primeiro mundo", em solo, águas e espaço aéreo nacionais. Tudo muito bonito e esperançoso, mas não menos suspeito, a própria esperança se deixando assimilar pela lógica ideológico-espectral. Trata-se, afinal, de uma semente viva ou de um detrito a ser reciclado por mãos hábeis o bastante?

Enfim, se é o caso de escolher uma imagem que sintetiza os méritos e deméritos desse filme, eu escolheria - naturalmente inspirado pela postagem de meu amigo e colega Ademir Luiz (ver aqui) - as do episódio em que os bandidos se inserem (convenientissimamente, para eles e para eventuais fins "turísticos") no desfile da Sapucaí, a fim de escamotear e consumar seu tráfico antiecológico. Antes que o verdadeiro e esculhambadíssimo carro alegórico forjado por eles apareça, vemos um outro, luxuosíssimo, com o mesmo tema. Mas o engano do chefe dura pouco, e o nosso também... pelo menos nesse quesito.

Mas não, não sejamos injustos. Afinal, essa imagem sugestiva e divertida me lembra outra: a da censurada alegoria do Cristo de lixo que, em algum ano do milênio passado, Joãozinho Trinta tentou exibir ao fim de um desfile da Beija-Flor. Mas é claro que isso não caberia aqui (como, salvo engano, não cabe sequer um singelo beija-flor). Não nesse Rio em itálico e de molde a provocar risadas. O Cristo que vemos aí, em "panorâmicas" formidáveis, é limpo de tudo: chagas, lágrimas e pichações. Mas "tudo bem": em filmes assim a "natureza" e a fantasia sempre falam mais alto que nós, seres ditos humanos. Pelo menos os moreninhos e terceiromundistas.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Líbia, Japão, Golfo do México: o óbvio ululante e o surdismo sistêmico


Esta não é a primeira vez que inicio a redação desta postagem. Na verdade, já a havia começado duas vezes, sendo que da primeira ela seria um comentário sobre o acidente, desastre ou  como quer que se denomine o "pequeno" horror nuclear no Japão, esse evento cujo desenrolar na verdade ainda acompanhamos, e de caráter tão assustador - sobretudo em sua possibilidade de se tornar algo muito maior - que torna banal e cotidiano um paradoxo como este, de se enunciar diminutivamente algo a rigor muito terrível, ou ainda esse outro, de sobrepô-lo à, a rigor, não menor tragédia mais propriamente natural, ou seja, o conjunto da devastação causada pelo abalo sísmico.

Mas, enfim, logo me dei conta de que não poderia tratar de um assunto tão grave sem tratar de outros. Que havia algo de profundamente errado, mentiroso mesmo, em tratar as graves ocorrências que têm se acumulado com uma velocidade algo espantosa da forma dissociada como tem feito a mídia, como se elas não participassem de uma totalidade. Sem dúvida que favorece isso a "diversidade geográfica" desses eventos, isso, no entanto, que também exige perguntar se não é, justamente, de uma amplitude que se trata.

Desnorteado como fiquei pelo noticiário a respeito do "primeiro" - e, queira Deus, último - "Columbine" brasileiro, era inevitável que minha primeira racionalização desse atordoamento fosse ver aí mais um (pois não é, nem de longe, o único) corolário  espiritual desse estado de coisas; desse estado do mundo que não posso deixar de ver refletido nesses eventos que se sucedem, e que nos são dados a engolir misturados a um pequeno coquetel de engodos, meias verdades e, mais do que tudo, hipocrisias.

Insistir no caráter acidental do que houve no Golfo do México e ainda há no Japão é quase tão esquivo (para não dizer equívoco) quanto tomar tais eventos e as convulsões (e intervenções) belicosas na África muçulmana como coisas passadas em "outro mundo". Não há apenas acidente quando tantos interesses favorecem a configuração das estruturas, dos planejamentos, das políticas, decisões e implementações das coisas. Da implementação, no caso - ou seja, de alguma forma enfeixando os três casos em questão - de toda uma política de exploração dos seres e das coisas, de erigimento e sustentação de toda uma construção "civilizacional".

Afinal, tanto quanto a usina de Fukushima (que todos sentimos, a despeito das distâncias efetivas, como bem mais próxima de nós do que Chernobyl, cujo horror nos foi apresentado como mais um entre outros atestados da falência do estado soviético) e as explorações petrolíferas da British Petroleum, também a economia da África do Norte integra um mesmo complexo produtivo votado ao atendimento de um mesmo conjunto de demandas "civilizatórias", que não podem ser seccionadas em função da localização geográfica ou dos regimes político-econômicos que compõem suas realidades particulares.

E não só o fato de as "políticas energéticas" implementadas sob a égide (mas é apenas isto: uma égide) do desenvolvimento capitalista determinarem as condições de existência contra as quais se soergueram os rebeldes na Turquia e no Egito, como também este outro, de ser cada vez mais transparente o quanto elas estão em jogo na intervenção dita internacional na Líbia (cf. aqui uma boa análise dos interesses em jogo aí), são dados que os aparelhos de agenciamento da opinião pública insistem em manter no providencial lusco-fusco das discussões - e motivações - humanitárias e regionalistas.

Elide-se, assim, algo pelo menos tão gritante e escandaloso quanto os horrores impetrados nas guerras ditas domésticas: a teia de contradições em que se enredam essas justificativas, e com elas, é claro, as ações impetradas. E, mais, elide-se o fato de que é algo muito próximo a um desespero logístico que move tudo isso, ligado ao reconhecimento implícito de um estado de crise, da condição emergencial de um estado de enorme fragilidade sistêmica. Nisso, a afoiteza do "socorro" à Líbia e os "acidentes" nos empreendimentos industriais da British Petroleum e da Tepco se igualam: no desvelmento de quão precárias são as bases materiais mais elementares - as "matrizes energéticas" - do estado do mundo que compramos e aceitamos como nosso.

De alguma forma, também Belo Monte figura nesse quadro. Por mais que isso que por enquanto é um projeto engatilhado deva ser distinto dos dolorosos eventos em curso (mesmo o derramamento de petróleo no Golfo do México continua a produzir graves consequências, ditas - como se designando algo à parte de nós - ambientais), o conluio sistêmico, ou seja, a legitimação ancorada na mesma "lógica produtiva" (que sabemos perfeitamente destrutiva) por trás desses empreendimentos é evidente, e não há retórica ou pragmática nacional-desenvolvimentista que elida isso (ainda que as questões referentes à soberania nacional tenham aí o seu peso).

De qualquer forma, sempre foi claro que também nisso Dilma Rousseff continua o governo Lula: na adoção de uma política econômica consumista-desenvolvimentista, se não inteiramente atrelada à expansão do "capitalismo internacional" (outra expressão altamente sinuosa: onde fica aí, por exemplo, a China?), certamente ligada às mesmas bases antropossociológicas, as mesmíssimas bases das sociedades de exploração e dominação do homem e da natureza que encontram não sua gênese, mas sua glorificação na predação capitalista.

E o óbvio que se tornou gritante demais para não lhe darmos ouvidos é que são essas bases que se tornaram insustentáveis; que o pouco que elas nos prometiam em troca da vida reprimida, regulada e alienada - ou seja, "conforto", "padrão de vida" e "segurança" - se assentava nas bases de um grande engodo. Fukushima é apenas a demonstração mais gritante disso; pois mesmo às consciências mais alienadas se tornou evidente que um acontecimento como o japonês lança uma sombra muito assustadora sobre essas enormes monstruosidades chamadas usinas nucleares com que se minou o planeta. Nada assim tão novo, nada que os "ecochatos" não alardeiem há décadas com enfadonha insistência, atrapalhando nossas ruminações sobre coisas tão mais complexas quanto, no fundo, inessenciais - pelo menos quando dissociadas das coisas de fato, ou seja, elementarmente essenciais.
 
E o fato é que, por mais que se clame contra o alarmismo, os alarmes têm soado por si mesmos. Nesse sentido, Fukushima é uma das peças de um quebra-cabeças muito maior mas muito fácil de se montar, e em cujo frontispício se anuncia, em letras claras o bastante para quem não quiser deixar de ver, uma falência verdadeiramente sistêmica.

Sem dúvida, a necessidade de "optar" (como se fosse assim tão simples) entre a barbárie em curso e uma outra coisa quiçá um pouco ou um tanto melhor - "socialismo" a designa, ainda? - é mais imperiosa do que nunca; mas tão imperioso quanto isso é assumir em todas as suas consequências o que isso significa na prática. Pois é evidente que os "discursos revolucionários" se tornaram pouco mais do que um substituto para a assunção de algo muito mais árduo de se conquistar ou construir.

Nenhum horizonte novo se tornará minimamente palpável enquanto a necessidade de zelar por nossas "bases civilizacionais", com todas as "conquistas" do conforto, da medicina e, claro, da nutrição - que, não obstante, incluem as doenças emergentes e as sociopatias -, enquanto essas "necessidades", eu dizia, se impuserem com a força que todos sabemos ser muito semelhante à dos vícios mais miseráveis.

Tanto mais quando essas "necessidades" se impõem tão frequemente mesmo às ditas consciências esclarecidas. É uma atitude padrão e disseminada, ligada à reivindicação de uma espécie de foro existencial privilegiado para o trabalho intelectual, o não reconhecimento cabal de que a raiz dos problemas pelos quais "nos interessamos" (não é bem o jargão acadêmico?) está ligada ao que nos consititui não apenas como partícipes dos espaços sociais e coletivos, ou seja, ao que se chama, tão objetiva quanto vagamente, a "estrutura social" (sem que, geralmente, se precise do quê: um país, uma cidade, a existência?), mas também com o que nos constitui, de forma ao mesmo tempo muito mais ampla (ou seja, coletiva) e completamente individual, como seres humanos. Não há possibilidade de um passo firme em direção a qualquer melhora efetiva se não for por aí, e na decisão de fazer do compromisso com isso um lastro ético-decisório para todo o "resto", ou seja, tudo o que nos constitui na prática, ou seja, na existência efetiva.

E, cá entre nós, há poucas coisas mais constrangedoras para a classe dos intelectuais do que a frequente aliança, dentro dela, de "consciência" e  discursos indignados com a participação ativa na pragmática destrutivo-consumista, leia-se consumidora, do mundo. Deste mundo que, de fato, se consome nas orgias cotidianas com que celebramos nosso dito ascendente "padrão de vida" - e talvez seja a última palavra, aí, que mais mereça as aspas.

domingo, 10 de abril de 2011

Dedico esse instantâneo de um fugaz gesto de ternura – uma cena ficcional com menos de um segundo, mas nem por isso menos real – à memória das crianças que não tiveram (e também às que tiveram) a sorte desses personagens fixados no cartaz do filme Elefante, de Gus Van Sant. 
Que ao menos o alento de gestos como esse se torne um dia universal.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

O horror vive

Ainda é cedo para se pensar no que houve - aliás ainda há.
Por enquanto, apenas o que se sabe, novamente
(impondo-se à consciência arrefecida dos horrores de todos os dias, inclusive aqueles impetrados pelas "forças legalmente constituídas"),
é que o horror vive.

(e disso saberemos, quem sabe, até que outras notícias nos tornem banais os rostos que serão estampados, como os de tantos horrores recentes da tragédia brasil)

E agora não há sequer o consolo dos clamores de vingança...
Apenas isto:
o horror vive.

(no meu rio de desesperos, em 07/04/2011)

(que ao menos o esquecimento - ou, quiçá, algo melhor que isto - seja pleno,
e lave tantas tantas almas tão feridas)