VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Cidade dos Desejos




"Aqui é um lugar de desamor."
T.S. Eliot

- I -
A realidade do sonho em um mundo onde o imaginário foi colonizado pela indústria cultural do capitalismo é semelhante aos filmes de Hollywood. As pessoas são gentis, sorridentes e ingenuamete belas. Sonho e pesadelo se confundem. O real é idealizado. Existe um poder obscuro que comanda este mundo. São os poderes das trevas. As pessoas vivem narcotizadas. Alguns perdem sua identidade e a reconstroem a partir dos mitos do cinema, pois são sua única referência. Não há desconfiança entre as pessoas, elas se enganam sem o saber, são idealistas-oportunistas. Existem vários níveis de bajulação, cada um desprezando quem está abaixo e chubolando quem se encontra acima de sua classe social. O artista sente-se independente deste jogo macabro, mas não está. Ele é dependente do dinheiro de quem comanda a indústria cultura. A rebeldia do artista se limita a um terrorismo infantil e inócuo que não representa ameaça para o sistema.

Os crimes de acerto de contas entre os bandidos atingem sempre vítimas inocentes. "Vamos, será como no cinema! A gente finge ser outra pessoa". O superego não existe para as pessoas, elas traem-se com a maior tranquilidade e a culpa, se existe, é sempre do outro. "O inferno são os outros". A identidade desintegra-se e não nos reconhecemos, procuramos desesperadamente saber quem somos. É um mundo kafkiano, uma rede de poderes manipulando as pessoas de maneira invisível, enquadrando-as violentamente, às vezes explícita, outras vezes não, se tentam questionar esta lógica. Nesse mundo (não se sabe qual) a identidade sexual também se perde.

Tudo lhe é permitido, menos o essencial. No entanto, mesmo no inautêntico reside um pouco de autenticidade. Na cidade dos desejos nossos sonhos secretos se realizam ,mas como simulacro, uma imitação barata da vida real. Dissimulamos nossa experiência, nosso prazer e nosso sentimento. "Não há banda. Isto é apenas uma gravação." Nos iludimos constantemente. Como afirmava Kafka: nosso mundo tem como princípio básico a mentira universal.

- II -
O filme Cidade dos Sonhos do cineasta estadunidense David Lynch é uma obra ao mesmo tempo linda e triste. É uma síntese de boa parte de sua filmografia. Neste filme perturbador encontramos elementos de Veludo Azul, de Os Últimos Dias de Laura Palmer e A Estrada Perdida. A história nos mostra que só podemos amar plenamente e sermos verdadeiramente felizes nos sonhos. A vida desperta é um pesadelo sem esperança. Neste mundo aqueles que amam intensamente estão condenados à loucura e ao fracasso. Apenas os frios de coração,que não amam ninguém, a não ser a si mesmos, conseguem vencer. O mundo capitalista foi feito para essas pessoas e é nesta selva que eles triunfam. Aqueles que amam profundamente estão em extinção. Esse filme me deixou abalado, passei o dia seguinte possuído por essa história trágica. Foi um dia depois que consegui refletir sobre a lucidez pessimista representada nessa obra de um artista genial. Como tudo que acontece comigo, de maneira retardatária. A mensagem implícita de David Lynch é que nossa existência é um deserto, uma fantasmagoria que revela nosso desespero e solidão, onde não há lugar para compaixão. É um sociedade opressiva que enquadra de forma sutilmente violenta todos que tentem escapar da sua lógica destrutiva. Não há solidariedade entre os seres esmagados por essa estrutura monstruosa, somente nos sonhos encontramos instantes de felicidade real. É um filme radical. Lynch leva ao extremo sua visão pessimista, por isso lúcida, da sociedade estadunidense, sua reificação, perversidade, desumanidade e desolação. Os que amam com paixão e desvario estão condenados a serem coadjuvantes dos mais fortes, os sem-coração, os protagonistas deste teatro macabro em que se transformou o capitalismo tardio. Esse mundo se revela, sob o Véu de Maya, como um corpo em putrefação, uma estrada perdida, um pesadelo do qual não conseguimos despertar e que aguarda ansiosamente pela sua morte. Mais uma coisinha. O espectador, assim como a personagem principal e também todo ser humano oprimido por este sistema iníquo ,é jogado abruptamente do sonho para o pesadelo da vida real, sem nenhum aviso ou proteção. Somos simplesmente lançados na selva da cidade moderna, processo que durou séculos, sem termos tempo de reagir a esta agressão infame que nos é imposta. O ser humano é esmagado pelo peso de uma realidade asfixiante, sem um abrigo para sua alma desamparada. Neste meio alucinado o amor transforma-se também em mais um vício, numa droga poderosa. O exemplo disso é a vida da protagonista, Betty-Diane, que entra em um processo de destrutividade que a leva a encomendar o assassinato de sua amada. Consumida pela culpa, primeiro ela enlouquece e depois se mata. Uma profecia anunciada. Aqui é um lugar de desamor, nos lembra T.S. Eliot, outro grande poeta dos Estados Unidos, mais um crítico radical da modernidade.

- III -
Nesta dança universal da morte nossos sentidos são estimulados até a completa exaustão. Somos programados desde crianças a desejar ansiosamente uma vida de mercadorias que agora precisa ser descartada com a nossa contribuição. Este moinho satânico destrói as vidas a uma velocidade alucinate, conforma nossa condição existencial de meras fantasmagorias que povoam as cidades. Não nos damos conta que estamos caminhando para um novo holocausto planejado para atender as necessidades de lucro do capital. Atingimos o ápice de uma sociedade desumana, com uma lógica irracional que está travestida de um sentido humano e que, no entanto, despe-se de sua ideologia humanista e mostra sua face cadavérica para o horror de alguns e a resignação da maioria. É o drama barroco moderno analisado por Walter Benjamin, que envolve todos nós em uma celebração da destruição e do caos. Deus está morto, tudo é permitido e o coração deste mundo mergulha nas profundezas da noite cósmica. A história não começou, o ser humano não nasceu e estamos encenando um teatro macabro cheio de som e de fúria que nada significa. Veja Almador! A superabundância de coisas que encontramos na cidade. Quantas maravilhas disponíveis para a fruição desinteressada: mulheres bonitas, comidas de todo o mundo, diversões, carros do ano, teatro, cinema, shows, rodeios, festas, bebidas, cocaína, zuka, prostitutas, escolas, universidades, shoppings, igrejas, etc. O tempo é pouco para aproveitar tudo isso na velocidade que o capital exige. Tempo de trabalho e tempo de consumo preenchem toda nossa existência e, no entanto,estamos sempre insatisfeitos e irritados, porque somos induzidos a pensar que merecemos mais, que podemos conseguir mais, sem nos perguntarmos a razão de todo esse frenesi consumista. É um mundo dominado pela forma-mercadoria, no qual servimos apenas de suporte para a valorização do capital, onde o que existe são relações entre coisas e relações coisificadas entre pessoas. Um ótimo antídoto contra essa cultura farisaica é a proposta do romantismo revolucionário que busca reencantar as relações interpessoais, reaproximando as pessoas dos valores místicos, coletivos e solidários. É uma espécie de religião da natureza proposta por Hölderlin e Coleridge, poetas românticos que procuraram negar a reificação capitalista em sua totalidade, tanto na economia quanto na cultura, tateando desesperadamente por uma utopia que iluminasse este tempo sombrio, vislumbrando na natureza um novo tipo de sociabilidade, uma nova consciência que libertasse o ser humano das correntes da cobiça e do individualismo.

sábado, 15 de janeiro de 2011

O estranho intestino


Reassisti ontem, em parte - até onde minha paciência permitiu -, a primeira obra-prima de ficção científica de Ridley Scott, Alien (o oitavo passageiro, segundo o subtítulo brasileiro), anterior em três anos ao mais denso e humano Blade Runner. Mas a impaciência não teve a ver apenas com os méritos do filme, que não são poucos. Ocorre que só depois que o arquivo começou a rodar descobri que se tratava de uma cópia dublada em português, e, além disso, comentada (em inglês) pelo diretor. A meia solução foi reduzir o som ao mínimo, contentando-me em compreender os diálogos por meio das legendas, também em português.

No entanto, essa perda irreparável também me obrigou a um providencial distanciamento bretchiano; e o que esse distanciamento me permitiu perceber com toda a clareza é que Alien é um filme que envelheceu. Sem dúvida, a quase supressão da opressiva trilha sonora, aliada à perda das vozes originais, ajudou a atenuar o suspense e o impacto dramático das cenas iniciais; mas, com isso, o primado das imagens e dos efeitos especiais tornou-se ainda maior, e é fácil perceber que exatamente na dependência deles o filme se torna - justamente a partir de sua intensificação dramática, com a aparição do monstro - quase enfadonho, passados tantos monstros mais sofisticados e tenebrosos que se seguiram ao seu (em boa parte, aliás, estimulados por ele). O que é uma pena, porque, de um ponto de vista imanente ao filme, seus efeitos e sua cenografia são de qualidade ímpar, inclusive superando quaisquer funções meramente técnicas e sensoriais e participando de sua construção propriamente artística.

Vide, por exemplo, a sequência inicial, na qual a câmera percorre o interior a nave com um vagar - dir-se-ia uma atenção - que visa, muito mais do que ostentar a boa aplicação do orçamento, criar uma espécie de familiaridade intestina do espectador com o ambiente. (Não é a primeira vez que uso, com a ambiguidade que usarei aqui, a palavra intestino, e me permito remeter à primeira dessas vezes: http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/034/RAVEL_PAZ.pdf). Penso que essa minha impressão é confirmada pela cena que fecha a sequência, uma tomada com efeitos de luz e uma orquestração maquínica que fazem lembrar uma espécie de gênese, ou, melhor ainda, de desabrochar, pois, plasticamente, a maquinaria em questão lembra mesmo uma flor. Maquinaria esta que abriga os corpos inanimados dos tripulantes da gigantesca Nostromo (nome bastante sugestivo, para quem conhece o livro de Conrad, ainda mais em se tratando de uma nave comercial), e da qual logo vemos um deles - justamente o que será o primeiro hospedeiro do monstro - se erguer parcialmente, desentorpecendo-se aos poucos e com igual lentidão à da câmera, selando uma intenção e um processo sinestésicos que são também significantes.

Pois é evidente que toda a construção significacional do filme se pauta nessa entranhização de corpos estranhos, e que a estranheza desses corpos - sobretudo, é claro, do mais aterrador deles - tem a ver com certa indefinição entre as condições de ser e de coisa. Aliás, a nave, ou o computador que a comanda ou orienta, é chamado de "Mãe" pelos tripulantes. Momento intermediário entre a abertura e a assunção do monstro, a sequência da exploração da nave alienígena da qual ele advirá também cristaliza essa ambiguidade. Vista de fora, essa nave - aparentemente abatida ou abandonada em um planeta semelhante a Saturno - lembra um gigantesco ser caído (os próprios astronautas a definem como indescritível), e por dentro, por vezes, temos a impressão de distinguir o esqueleto de um organismo biológico. Não é o caso, mas no desenrolar da sequência nos depararemos com duas espécies de organismos, e do primeiro deles - o tripulante morto, com características humanas mas muito maior, e que servira de hospedeiro a um monstro - um dos astronautas dirá que "parece que cresceu da cadeira".

A outra espécie de organismo presente na nave são justamente os ovos botados, ao que tudo indica, pelo monstro oriundo das entranhas do tripulante morto (não podemos chamá-lo de alienígena, pois não é impossível que aquele seja seu planeta de origem), e entre os quais o oficial Kane terá a infelicidade de encontrar o "oitavo passageiro" de sua própria nave. Ou melhor, não propriamente ele mas uma espécie de mãe, pai, ou, seja como for, primeiro hospedeiro seu, e que precisará encontrar - aliás, encontrará em Kane - um hospedeiro para abrigá-lo até o amadurecimento de sua forma final: o bichinho hoje já não tão aterrador que vemos surgir lá pelos 50 minutos do filme.

Note-se que essa complexidade procriativa encontra correspondência na complexidade maquínica que não só compõe visualmente a diegese do filme como configura sua espécie de espacialidade viva, com a qual os personagens interagem o tempo todo; como o próprio Alien se afigura muito claramente a uma máquina, com sua cabeça interna retrátil e seu sangue semelhante a "ácido molecular" que chega a corroer a maquinaria da nave.

O que me interessa nisso tudo é sugerir a espécie de lugar de intersecção que o conceito de máquina assume aí. Para ir direto ao ponto, creio que a atenção a esse dado permite uma leitura que desloque um pouco a interpretação usual do Alien como figuração de um Outro extremo ou absoluto, um Inteiramente Outro de assimilação impossível pelos padrões da sociabilidade humana. Sem dúvida que essa leitura é pertinente e valiosa; seus termos exigem, inclusive, a análise das relações - de classe, gênero e etnia - que, antes mesmo do abalo antropológico que o Alien produzirá na Nostromo, já grassam dentro dela.

No entanto, também no que tange à forma como o Alien espelha essas relações é um dado relevante que sua entranhização se produza tão intimamente ligada a esse terreno partilhado que é o das experiências e/ou existências maquínicas. Esse terreno institui uma esfera em si mesma marcada pela estranheza, a reificação etc., mas que, enfim, é também a esfera de uma espécie de solidariedade orgânica, ou maquínico-orgânica.

Nesse sentido, o que se entrevê em Alien é algo semelhante ao germe de uma utopia, de um mundo de pertencimento mútuo entre os seres; um mundo, naturalmente, que se esboça sob o signo do feminino, pois é a imagística (tão biotecnológica quanto arquetípica) das entranhas vivas, por onde perambulam seres vivos, que congrega os seres e as coisas (na própria Nostromo, além da Mãe e da flor-dormitório, vemos por vezes imagens que lembram entranhas).

Mas é claro que essa utopia é, já em sua raiz, corrompida por um espírito infernal que a transforma em ameaça distópica. Isso se cristaliza principalmente na própria figura do Alien, máquina andrógina, unidade monstruosa do masculino com o feminino enformada pelo aparato biomaquínico, com seu falo dentado e assassino que emerge de uma boca-vulva igualmente dentada. Não é à toa que será uma personagem feminina tornada aparato bélico a oponente (e contrapartida) humana do monstro.

Isso tudo reflete contradições básicas do cinema de ação hollywoodiano, mas é preciso analisar essas contradições de um ponto de vista que leve em conta o fundamento das relações sociais, ou seja, o trabalho; e, nesse sentido, a inversão da práxis humana em fetichismo biotecnológico é um dado signfiicativo. O que mais se assemelha ao trabalho produtivo, na Nostromo (em sua condição de nave comercial, quase um símbolo da expansão da sociedade de consumo a níveis interplanetários), se reduz à manutenção ou reparo da nave, ou então ganha uma espécie de caráter mágico, por exemplo nos artefatos criados para deter o monstro quase imediatamente após sua aparição. O resto (inclusive fartas refeições) a Mãe máquina suprirá, com exceção, é claro, da proteção diante do que ameaça destruir seus filhos e suas próprias entranhas. Como se vê, este é mesmo um mundo em que os seres, humanos ou assemelhados, parecem nascer das cadeiras, e não o contrário. A mesma ânsia e fetichista que pesa sobre o feminino pesa sobre o trabalho.

Enfim, corrompido em fetichismo biotecnológico, o cerne potencialmente utópico ou a antevisão panteísta de Alien - a entranhada unidade de seres e coisas - redundam em retorno monstruoso do recalcado, e com tal virulência que sua forma maquínico-intrumental - leia-se belicosa - incide diretamente sobre a própria imagem do feminino (ao mesmo tempo que se afirma, nisso, que não se pode prescindir dele, o feminino, que ao mesmo tempo legitima o aparato, e assim por diante). A face bela e endurecida da tenente Ripley é um contraponto exato ao rosto frágil e humano - o mais humano do filme - de Kane, e entre eles, mediando-os, há o rosto radicalmente desumano (o prolongado close da primeira aparição reafirma isso) do monstro. Ou não tão radicalmente assim?

Sem ser a recusa da condição maquínica, no entanto, o filme de Ridley Scott deixa entrever, nessa própria condição, um germe de esperança de ir além dela. Mas para que essa semente benigna viessa à tona, seria preciso que, um pouco como a baba ácida do Alien, ela furasse as camadas de nossa constituição, práticas e produtos maquínico-instrumentais para trazer à tona uma face, não direi mais humana, mas mais benévola que a do monstro que vive em nossas entranhas.

Em outros termos, seria preciso que Alien fosse um filme que se desconstruísse, ao invés de se reiterar em sequências cada vez mais zelosas de sua engenharia biotecnomonstruosa. E agora, quando Scott anuncia um novo produto fílmico, segundo dizem inicialmente planejado para dar continuidade à saga do monstro, é inevitável a curiosidade, ainda mais diante de seu nome (Prometheus), quanto a saber por quais caminhos ele irá aquém e/ou além do humano.

Citei:

Theodor-W Adorno. "Engagement", em Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Arquivo e crítica

Não sou capaz, agora, de dizer o quanto de inspiração e de transpiração contribuiu no ato ou processo mental que resultou nesse nome: arquivos críticos. Mas sei perfeitamente que essas duas palavras advêm de regiões distintas, quase opostas - ainda que também muito próximas -, de meu pequeno universo de interesses intelectuais. Mais propriamente, de dois nomes diferentes: respectivamente, os de Jacques Derrida e T.-W. Adorno.

Seria muito, para uma postagem inaugural, tentar uma comparação entre esses filósofos (mas remeto a uma excelente: http://www.apario.com.br/forumdeutsch/revistas/vol9/adornofabio1.pdf); basta, por enquanto, registrar esse dado elementar: o tipo de desconstrução que Derrida faz do conceito de arquivo (no ensaio Mal de arquivo) não é muito diferente do que ele faz do de crítica (por exemplo em Espectros de Marx). Na economia da desconstrução derridiana, portanto, ambos os termos possuem sinal em certa - ou boa - medida negativo. Para Adorno, pelo contrário, o conceito de crítica é fundamental, como atesta, aliás, o projeto de uma Teoria Crítica da sociedade.

No entanto, este não é um blog de filiação estrita ou exclusivamente adorniana. Ele se pretende aberto a um leque de discussões e proposições que não exclui os pontos de vista e postulados da desconstrução; aliás, encontra neles um de seus interesses fundamentais - embora não se confine a eles -, e é justamente isso, e não um espírito meramente polemista, que me leva a tomar emprestado essa palavra, arquivo, do discurso de Derrida. Não se trata, portanto, de acolhê-la reinstaurando a positividade que este lhe recusa, não obstante a evidência do sentido fundamentalmente positivo que ela possui aqui.

Mas esse é um paradoxo em boa medida aparente: não apenas a leitura derridiana do arquivo não resvala para o maniqueísmo - postulando, pelo contrário, um tipo de duplicidade (ou heterogeneidade) de sentido que é constitutiva da desconstrução -, como a crítica adorniana é de espírito declaradamente negativo, ou seja, encontra no próprio seio da negatividade o precário lugar de encontro - não direi conciliação - do pensamento com a vida contraditória.

O que a expressão "arquivos críticos" postula, portanto, é uma aproximação assumidamente dúplice e problemática, mas, espero, prolífica. Ela guarda a esperança de que essa aproximação engendre um tipo de relação na qual tanto essas noções quanto as próprias práticas ligadas a elas tensionem mútua e incessantemente seus limites.

Nisso, evidentemente, o suporte blog é fundamental, pois o arquivo, em um blog, só é morto na medida de seu desinteresse. Mas este não é o único desafio que ele deve assumir, como exigência mesmo de sua pretensão crítica: se o desinteresse pode confiná-lo ao esquecimento, a comunicabilidade a qualquer preço o confinaria à esterildade. É o caso, então, de cultivar uma potência crítica cuja destinação ou pragmática arquivística institua os riscos imprescindíveis para torná-la não autossuficiente, mas, no âmago mesmo de sua precariedade, fiel a si mesma.

O que mais eu pudesse dizer agora soaria desnecessário e redundante. O gesto que deve suceder essas palavras precisa ser mais humilde e, espero, eficaz que o de um blá blá blá filosófico ou pseudoisso: o de convite ao exercício crítico-arquivístico. E que nenhum arquivo jaza morto; que nenhum gesto crítico fique imune a outros crivos críticos.

Citei:

Jacques Derrida. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Relume-Dumará, 2001.

Jacques Derrida. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Relume-Dumará, 1994.