VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Dudu e o absurdo

Sou professor universitário há mais de dez anos. Sou formado em Letras pela UFMS, tenho mestrado em Teoria e História da Literatura pela Unicamp, doutorado em Letras Clássicas e Vernáculas pela USP e concluí recentemente meu pós-doutorado na Unicamp. Não sou nenhum gênio, mas me considero razoavelmente - digamos, medianamente - inteligente, e me esforço, às vezes muito, para entender tudo o que ouço, vejo e leio.

É mais ou menos assim, com exceção da última oração, que me apresento em meu currículo Lattes, mas nunca havia cogitado em registrar nada disso neste blog, até porque meu objetivo é dialogar com quem quer que se disponha a isso. Acontece que, infelizmente, há situações em que é preciso demonstrar, como diz o chavão popular, que não se é ninguém, e esta é uma delas. Tudo para dizer o seguinte:

A ideia de que Eduardo Miranda Martins pudesse estar portando mais de vinte papelotes de cocaína na segunda noite de protesto em Campo Grande (aliás, uma noite de chuva intensa), sendo ele um dos manifestantes mais ativos e visados do movimento no município, é um acinte à minha inteligência. Um acinte, acredito, à inteligência de qualquer cidadão minimamente sensato.

Eduardo Miranda Martins, o Dudu, é um músico e ativista político e cultural de Campo Grande. Conversei algumas vezes com ele - a mais demorada delas foi durante um ato em defesa da luta dos índios Terena -, e tenho a convicção de que se trata de alguém em pleno uso de suas faculdades mentais. E também uma excelente pessoa; apenas idealista, aguerrido e sincero o bastante para que alguns o considerem um "porra louca".

Negro, pobre, autodidata, extremamente lúcido e corajoso: não tenho como deixar de admirar o Dudu.

Lembro de tê-lo visto na noite de 20 de junho, o primeiro dia de protestos em Campo Grande. Eu fotografava os cartazes e ele passou gritando alguma palavra de ordem, sem me ver. No dia seguinte, marcado por ações mais radicais que tive a sorte ou o azar de não acompanhar de perto, Dudu foi preso pela guarda municipal. A primeira notícia que circulou na Praça do Rádio, onde eu estava, foi a de que, depois de ter sido abordado pelos guardas, seu paradeiro era desconhecido. Só um tempo depois - uma hora ou mais - é que soubemos da prisão.

Detalhe: Eduardo tem um histórico de enfrentamento político com a guarda municipal, ou melhor, contra a autorização, hoje concedida, para os guardas portarem armas de fogo. Já discursou na Câmara Municipal a esse respeito, e essa foi uma de suas bandeiras quando concorreu para vereador em 2012. Mais ainda: Dudu move um processo, anterior à sua prisão, contra guardas municipais que, segundo ele, o agrediram na Orla Morena.

Feito esse resumo, peço licença para dizer e sublinhar novamente:

A ideia de que Dudu pudesse estar portando mais de vinte papelotes de cocaína na segunda noite de protesto em Campo Grande (aliás, uma noite de chuva intensa), sendo ele um dos manifestantes mais ativos e visados do movimento no município, é um acinte à minha inteligência. Um acinte, acredito, à inteligência de qualquer cidadão minimamente sensato.

Usei a palavra "absurdo" no título dessa postagem, criando uma eufonia com "Dudu", e pensei muito se manteria ou não esse recurso literário. Mas não há outra palavra. A permanência de Dudu na prisão beira o absurdo kafkiano. A esperança é que, ao contrário do que acontece n'O Processo de Kafka, a Justiça deste País e deste Estado seja - ou comece a se tornar - mais cega no bom do que no mau sentido: o da isenção, e não o da falta de bom senso.

Uma nota que pode soar como um gesto covarde, mas não é: não tenho nada contra os guardas municipais, embora também seja contra o porte de armas de fogo por eles. Mas respeito-os como cidadãos e trabalhadores. Conheço pessoalmente ao menos um deles, a quem admiro como pessoa e como músico. Na mesma noite em que o Dudu foi preso, vi uma jovem dirigir-se, indignada, aos guardas que protegiam a Prefeitura Municipal, chamando-os de covardes e coisas do gênero. Quando ela se retirou, eu disse a eles que nem todos pensavam daquela forma, que havia manifestantes que entendiam a situação deles etc. Lembro de dois ou três terem agradecido com a cabeça. O respeito e o bom senso podem estar em qualquer lugar.

Não costumo assinar minhas postagens (o nome já aparece aí embaixo), mas esse caso é mesmo uma exceção.

Ravel Giordano Paz