VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

sábado, 21 de janeiro de 2017

Uma nau de dor e salvação

Nau dos Amoucos é o primeiro romance de Isloany Machado, que já nos deu dois belos volumes de contos e crônicas sobre literatura e psicanálise, Costurando palavras e Em defesa dos avessos humanos. Mas enquanto esses livros são marcados pela leveza e a aparente despretensão, tornando a leitura amena ainda quando os temas são fortes, o début ficcional de Isloany tem como grande marca a ousadia, valendo-se, por vezes, de uma estética de extremos para tratar de um tema, aliás, dois temas igualmente extremos: o amor e a loucura.

A isso alude, naturalmente, o estranho título do romance. “Amoucos” não é, como cheguei a pensar – e a própria autora me corrigiu, me obrigando a recorrer ao Google –, um neologismo alusivo a essas duas palavras-chave, amor e loucura, mas a sugestão semântica certamente participou da escolha (até porque a referência direta parece ser a nau dos loucos de Foucault). “Cheio de fúria, votado à morte; desesperadamente obcecado”: de fato, um amouco não difere muito de um amante louco, de um louco que ama ou quer amar desesperadamente.

E é esse o caso de Inácio, o protagonista do romance, e mais ainda o de sua mãe, Custódia. Em linhas gerais, Nau dos Amoucos se compõe do entrelaçamento das histórias desses dois personagens, e embora ela, a feminina, ocupe muito menos espaço que ele, sua importância não é menos capital: não tanto, talvez, na trama quanto no “espírito” da narrativa, com o detalhe de que é à dimensão subjetiva dos acontecimentos que a autora dedica a maior parte de seu empenho.

Ao mesmo tempo, é a história de Custódia, com sua pequena mas tumultuada sucessão de fatos dramáticos, que mais se investe de um conteúdo fabulístico no romance. Naturalmente, seria um desserviço revelar esse conteúdo ao leitor; basta saber que justamente aí, nessa cruel fábula moderna com ares naturalistas, amor e loucura se enredam de forma mais trágica. E é a efetiva loucura de Custódia que permite a Isloany abordar um assunto muito real e que, por sua formação psicanalítica, certamente lhe é caro: o do horror dos manicômios. A autora não se furta a descrever a mórbida existência da personagem na triste “montanha mágica”, uma irônica alusão ao romance de Thomas Mann, em que é internada: “Moscas insistentes, que se atraem, doentiamente, por cheiro de carne podre, eram os inquilinos que mais movimentavam cada canto. As pessoas eram restos humanos ainda vivos”.

No entanto, é em seu pertencimento ao conjunto da trama que a história de Custódia se revela em toda a sua importância. Pois é nesse desdobramento que Isloany trabalha a “loucura”, com aspas ou sem, dos ditos “normais”, certamente com aspas. “O louco é quem grita o meu sufoco”, diz a sabedoria empírica dos pichadores, enquanto um cantor vira e mexe tido como louco ou “alienado” complementa: “A certeza da certeza faz o louco gritar”.

Em linhas gerais, a trama de Nau dos Amoucos gira em torno das escolhas amorosas de Inácio, e de como as consequências dessas escolhas afetam seu estado emocional. Ao abrir mão da livre afirmação de seu desejo, mais que isso, da própria evidência da felicidade que se revelava a seus sentidos e sua consciência, Inácio se vê envolto por um crescente abismo de solidão e desamparo. A ânsia de resgatar um ideal amoroso da infância remete a uma ânsia e um desamparo mais fundamentais, onde a loucura da mãe certamente marca presença. E é justamente no ato de encarar essa chaga viva que se abre a possibilidade de superação para o personagem. Como isso se dá, e com quais consequências, também é melhor o leitor descobrir por si mesmo.

Por outro lado, é natural que, diante da tortuosa magnitude de Custódia, a figura de Inácio se descolora um pouco. O protagonista parece, às vezes, um trapalhão a quem a autora leva um pouco mais a sério do que ele merece. Ainda assim, para além mesmo das intenções ou afetos que enformam a narrativa, ou até porque esses afetos como que invocam os nossos no trato com o personagem, este tem o grande mérito de nos parecer vivo; e esta, certamente, é pelo menos metade da arte do ficcionista. Mesmo as passagens que parecem um pouco forçadas ou de verossimilhança duvidosa, como a de certa reação fisiológica ao fim de um ato sexual, têm uma força caracterizadora no mínimo provocadora.

Resta sublinhar a importância das outras duas personagens que, constituindo os objetos de desejo, cristalizam também as atitudes existenciais básicas de Inácio. Pois se Fabíola representa o retorno irrefletido, a aposta ilusória no mito de origem, Diana se alia à chance de escolha consciente, de reescritura do destino rasurado. Por via de uma, o passado de Inácio se fecha em si mesmo; pela outra, abre-se – sem dissolver-se, simplesmente – para o futuro.

Também a solução em que se configura essa abertura pode parecer frágil, no sentido de uma concessão excessiva ao personagem, mas ela comporta algo, também, de uma aposta, de um voto de confiança no humano – ou, mais especificamente, talvez, nos homens, enquanto, digamos (e complicações à parte), metade da espécie. Marcada por uma escrita eminentemente feminina, a ficção de Isloany se investe de uma potência desconstrutora face às contradições da masculinidade, ao mesmo tempo que as absorve a uma espécie de ritualística expiatória. Nesse impasse entre a radicalidade crítica e uma demanda redentora, mais ou menos correspondente à oscilação entre a crueza naturalista e o sentimentalismo romântico, talvez resida a principal aresta a ser trabalhada pela autoconsciência ético-estética da autora.

No mais, o estudo das técnicas narrativas e de construção do enredo e do espaço diegético, a atenção às mudanças de registro estilístico – por exemplo, no trânsito entre a voz sentenciosa do narrador (ou narradora?) e as falas mais prosaicas dos personagens – e ao ritmo da narração certamente ajudarão a lapidar o talento da jovem ficcionista, que já de início se arrisca a um salto tão ousado. Quem embarcar nessa nau certamente ficará ansioso por outras viagens de sua brava condutora.

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

Selvagens alquimias no Rock MS (Parte I)


Eu não queria ter terminado 2016 sem ter publicado alguns posts. Mas fazer o quê, enquanto eu não puder dizer “antes cedo do que tarde”, “antes tarde do que nunca” vai continuar sendo meu lema.
Enfim, este post é um deles. Pior que o atraso só tornou as coisas mais complicadas, pois o que deveria ser um texto sobre duas bandas, agora deve ser sobre quatro, já que as duas por assim dizer se duplicaram. E se antes eu não sabia muito bem o que dizer, já que sou um “crítico musical” totalmente desabilitado, pois não sou músico, agora sei muito menos. Mas vamos lá. No fim das contas, isso vai acabar sendo mais um texto nada crítico em louvor ao underground do Estado – agora, não só de Campo Grande mas também de Corumbá.
Este é o momento, aliás, de eu declarar que, desde que escrevi pela última vez sobre o rock da capital, pouca coisa tem me sido mais grata do que a descoberta do vigor e da qualidade que, embora obviamente em números menores, também viceja no da Cidade Branca. E mais gratificante ainda foi descobrir que esse vigor deve muito à cena que mal se esboçava quando saí de lá, no comecinho da década de 90; que amigos da época não só persistiram na cena como a enriqueceram com projetos de qualidade indiscutível, como a Resistência Suicida e a Sacrifício (que teve o Diogo Zarate da Jennifer Magnética nas baquetas), respectivamente dos camaradas velhos de guerra Lorenzo e Dição.
Resistência Suicida
E aqui eu me permito um parágrafo à parte pra registrar a surpresa e a gratidão por descobrir, já há alguns anos, que a minha “Arquivo de guerra” (minha entre aspas, porque a parte musical é fruto de uma costura coletiva) ocupa lugar de honra no repertório da Resistência, que por sinal resiste cada vez mais firme.
Capitaneadas pelo guitarrista e vocalista Gabriel Omar Postigliatti, as bandas corumbaenses de que vou falar (e já vou avisando que essa primeira parte deve ficar exclusivamente nelas) emergem diretamente dessa cena. Não por acaso, até outro dia Gabriel segurava o baixo na segunda formação da Resistência. Foi, aliás, o próprio Lorenzo o primeiro a me falar, com o entusiasmo de um verdadeiro apoiador, da primeira banda do Gabriel.
A velha carne, cujos primórdios datam de 2009, é um power trio formado pelos hermanos Gabriel (guitarra e voz), Rafael Omar Postigliatti (ex-baixo, atual bateria) e Ian Vitor (baixo). Uma referência que desde o começo me pareceu muito marcante na banda é a do grunge, principalmente Nirvana e Alice in Chains, mas a esse respeito Gabriel me esclareceu que há uma concomitância e certa afinidade entre a banda e movimento pós-grunge Stoner Rock. Outra vez, ele a descreveu como uma espécie de The Doors (de fato, vide versos como “E o céu serve de leito / Pra transa do dia com a noite”, que remetem aos de “Break on through”, de ) com uma pegada punk.
Mas com certeza as peculiaridades dA velha carne também se devem a outras vivências e influências. Entre estas, um pouco de atenção às letras e ao próprio nome da banda (mas não vou entrar em detalhes) revela ecos de ninguém menos que os Titãs; os velhos Titãs, bem entendido, dos anos 80 e começo dos 90, apesar da roupagem pop que envolve as canções mesmo dessas fases áureas. Por outro lado, as performances de Gabriel às vezes me lembram as de Paulo Miklos (apesar dos tons, timbres e estilos muito diferentes), que, como ele (por exemplo, em “Diversão”), tenta extrair o máximo de sua voz.
A velha carne (formação atual)
E se eu brinquei com a palavra “hermanos”, não foi por acaso: em que pese todas as broncas que já levei dos irmãos Omar por causa disso, em que pese a sonoridade muito mais suave (pelo menos a partir do segundo álbum), as inflexões ultradelicadas dos vocais de Marcelo Camelo, etc., eu sustento que há ressonâncias diretas da banda carioca na corumbanse. Algo, aliás, que se coaduna com os vínculos quase umbilicais entre Corumbá e o Rio. Não que A velha tenha algo a ver com o samba, mas confira o leitor, por exemplo, a introdução de “Coração nobre, espírio podre”, a faixa que abre a demo gravada em 2015 (ver os “anexos” abaixo), e me diga se não há um swing meio los hermanístico aí. E pelo menos uma letra, a de “Conselho”, me remete diretamente a algumas dos Hermanos:

O problema que você apresenta nos pertence também
Eu ouvirei um pouco, tentarei ajudar
Nós andamos rumo ao fim da estrada sem saída

Muito mais que as influências, porém, são propriamente as vivências que fazem d’A velha carne uma banda única, e uma das melhores do underground brasileiro. O que há de mais forte e singular nas canções, sobretudo nas letras, de Gabriel Omar é a forma como elas, mais que espelhar, exalam as carnes, as almas, o sol e os chãos calcinantes da velha Cidade Branca, como se o som pesado e distorcido da banda emanasse diretamente de seu asfalto tórrido. Eu mesmo já fiz versos não muito distantes destes de “Corpo líquido”, a última faixa da demo (e essas afinidades me deixam tão feliz que me permiti incluir a versão “punkacústica” da minha “Agonia” nos anexos):

Derretido pelo calor do sol
Tornou-se um líquido no asfalto
As rodas dos carro te esparramam
O salto da moça te perfura
O sapato do cara te esmaga

Mais que isso, ainda, é admirável como as canções d’A velha extraem desse lugar tão aparentemente isolado algo de universal. A província deformada, como eu já quis chamá-la, com suas quebradas sujas, seus labirintos físicos e mentais povoados de fantasmas. Não por acaso, “Tudo que se sente” é a canção-chave da banda:


Tão profundo era o sono que
Pesadelos e sonhos pareciam reais
Através de desejos secretos e obscenos
Lembranças remotas quase esquecidas
Tudo que se sente embutido na velha carne

Em outras letras, as agruras psicológicas se desdobram em imagens metafísicas, que na voz meio operística de Gabriel compõem espécies de hinos antievangélicos. Além de “Coração nobre, espírito podre”, é o caso de “Tema da descida”, também da fase inicial da banda:


Descendo a escada até tocar o chão
Apertei a mão do diabo
A velha carne, em seus floridos primórdios
Ouvi o sussurro de Deus
Olhos e punhos fechados
Até onde posso descer?
Encontre-me embaixo
Na terra dos anjos sem asas

Um aparte pra dizer que o ar dantesco desses versos me lembra os do poeta campograndense Jânder Baltazar Rodrigues, autor do Campo Grande do Inferno; com a diferença, é claro, de que nos de Gabriel Omar o sopro “metafísico” convive com figurações não só carnais como libidinais.
O fato é que pelo nível e atualidade das letras, pela densidade e vigor sonoros, com uma qualidade que aumentou com a ida de Rafael para a bateria (na demo, as baquetas são de um tal de o que a demo não registra, mas o vídeo ao vivo de “Corpo líquido” sim), A velha carne tem tudo para ocupar um lugar de destaque, mais que no underground local ou mesmo nacional, na cena musical brasileira: nesses anos temerários, em que as farras (ricas e pobres) do populismo finalmente acabaram, talvez não seja de espantar se o rock brasileiro finalmente renascer das cinzas.
Se a alma punk está presente n’A velha carne, A cidade e o selvagem tem a alma e a carne punks. Fundamental quanto a isso é a presença de dois músicos oriundos da excelente Alcoólatras, que há poucos dias impressionava com a autenticidade de seus covers raivosos de Cólera, The Clash, Dead Kennedy e Ramones e agora trabalha suas próprias criações: Felipo Ronaldo, nas baquetas, e no baixo Rodrigo Daltro, vocalista dos Alcoólatras.
A cidade e o selvagem
Mas a sonoridade d’A cidade, projeto bem mais recente, não deixa de conter elementos experimentais (principalmente quando um charango, de João Carlos Ibanhez, se soma à banda), assim como as letras, de cunho muito mais político e social (há, inclusive, uma sobre os sem terra), não deixam de conter elementos existenciais. E certamente é algo importante que esses elementos se casem tão bem, por exemplo, em “Escravo da rotina”, não só pela qualidade que isso atesta como porque faz perguntar se os trabalhadores brasileiros já não estariam prontos pra esse tipo de percepção.


Aos berros um olhar
Tentava acalmar o mundo
Estava no lugar errado
Para se tentar sozinho
Então, os olhos ficaram cegos
Pelo brilho das correntes
Correntes, correntes
(Não deixam suas ideias desabrocharem)
São os ferros que prendem o cérebro ancorado
Do escravo da rotina
Depois de um dia exaustivo de trabalho
Basta refletir um pouco mais
Saia do seu leito
Olhe para fora


Mais estranha e dissonante, “Sistema de suor” volta a encenar a fusão de coisas dos mundos com visões quase transcendentais:


No buraco do mundo
A carniça fede e os urubus se excitam
O clima é pesado, o coração martela
Um medo compartilhado
Alimenta a fome dos patrões
Num olhar para o alto
Vê-se o pano de fundo, o céu
A fumaça passeia e se une às nuvens carregadas sobre todos


Sem mais o que dizer. Na minha humilde opinião, essas bandas, assim como os Alquimistas e a Sexyburger, das quais vou falar na continuação deste post, merecem figurar na proa do cenário underground nacional. Essa cena que, volto a insistir, nos próximos anos talvez se revele mais forte e importante do que se pensa. Nossos dias de Seattle hão de chegar.
Anexos”