Nau
dos Amoucos
é o primeiro romance de Isloany Machado, que já nos deu dois belos
volumes de contos e crônicas sobre literatura e psicanálise,
Costurando
palavras
e Em
defesa dos avessos humanos.
Mas enquanto esses livros são marcados pela leveza e a aparente
despretensão, tornando a leitura amena ainda quando os temas são
fortes, o début
ficcional de Isloany tem como grande marca a ousadia, valendo-se, por
vezes, de uma estética de extremos para tratar de um tema, aliás,
dois temas igualmente extremos: o amor e a loucura.
A
isso alude, naturalmente, o estranho título do romance. “Amoucos”
não é, como cheguei a pensar – e a própria autora me corrigiu,
me obrigando a recorrer ao Google –, um neologismo alusivo a essas
duas palavras-chave, amor e loucura, mas a sugestão semântica
certamente participou da escolha (até porque a referência direta
parece ser a nau dos loucos de Foucault). “Cheio de fúria, votado
à morte; desesperadamente obcecado”: de fato, um amouco não
difere muito de um amante louco, de um louco que ama ou quer amar
desesperadamente.
E
é esse o caso de Inácio, o protagonista do romance, e mais ainda o
de sua mãe, Custódia. Em linhas gerais, Nau
dos Amoucos
se compõe do entrelaçamento das histórias desses dois personagens,
e embora ela, a feminina, ocupe muito menos espaço que ele, sua
importância não é menos capital: não tanto, talvez, na trama
quanto no “espírito” da narrativa, com o detalhe de que é à
dimensão subjetiva dos acontecimentos que a autora dedica a maior
parte de seu empenho.
Ao
mesmo tempo, é a história de Custódia, com sua pequena mas
tumultuada sucessão de fatos dramáticos, que mais se investe de um
conteúdo fabulístico no romance. Naturalmente, seria um desserviço
revelar esse conteúdo ao leitor; basta saber que justamente aí,
nessa cruel fábula moderna com ares naturalistas, amor e loucura se
enredam de forma mais trágica. E é a efetiva loucura de Custódia
que permite a Isloany abordar um assunto muito real e que, por sua
formação psicanalítica, certamente lhe é caro: o do horror dos
manicômios. A autora não se furta a descrever a mórbida existência
da personagem na triste “montanha mágica”, uma irônica alusão
ao romance de Thomas Mann, em que é internada: “Moscas
insistentes, que se atraem, doentiamente, por cheiro de carne podre,
eram os inquilinos que mais movimentavam cada canto. As pessoas eram
restos humanos ainda vivos”.
No
entanto, é em seu pertencimento ao conjunto da trama que a história
de Custódia se revela em toda a sua importância. Pois é nesse
desdobramento que Isloany trabalha a “loucura”, com aspas ou sem,
dos ditos “normais”, certamente com aspas. “O louco é quem
grita o meu sufoco”, diz a sabedoria empírica dos pichadores,
enquanto um cantor vira e mexe tido como louco ou “alienado”
complementa: “A certeza da certeza faz o louco gritar”.
Em
linhas gerais, a trama de Nau
dos Amoucos gira
em torno das escolhas amorosas de Inácio, e de como as consequências
dessas escolhas afetam seu estado emocional. Ao abrir mão da livre
afirmação de seu desejo, mais que isso, da própria evidência da
felicidade que se revelava a seus sentidos e sua consciência, Inácio
se vê envolto por um crescente abismo de solidão e desamparo. A
ânsia de resgatar um ideal amoroso da infância remete a uma ânsia
e um desamparo mais fundamentais, onde a loucura da mãe certamente
marca presença. E é justamente no ato de encarar essa chaga viva
que se abre a possibilidade de superação para o personagem. Como
isso se dá, e com quais consequências, também é melhor o leitor
descobrir por si mesmo.
Por
outro lado, é natural que, diante da tortuosa magnitude de Custódia,
a figura de Inácio se descolora um pouco. O protagonista parece, às
vezes, um trapalhão a quem a autora leva um pouco mais a sério do
que ele merece. Ainda assim, para além mesmo das intenções ou
afetos que enformam a narrativa, ou até porque esses afetos como que
invocam os nossos no trato com o personagem, este tem o grande mérito
de nos parecer vivo; e esta, certamente, é pelo menos metade da arte
do ficcionista. Mesmo as passagens que parecem um pouco forçadas ou
de verossimilhança duvidosa, como a de certa reação fisiológica
ao fim de um ato sexual, têm uma força caracterizadora no mínimo
provocadora.
Resta
sublinhar a importância das outras duas personagens que,
constituindo os objetos de desejo, cristalizam também as atitudes
existenciais básicas de Inácio. Pois se Fabíola representa o
retorno irrefletido, a aposta ilusória no mito de origem, Diana se
alia à chance de escolha consciente, de reescritura do destino
rasurado. Por via de uma, o passado de Inácio se fecha em si mesmo;
pela outra, abre-se – sem dissolver-se, simplesmente – para o
futuro.
Também
a solução em que se configura essa abertura pode parecer frágil,
no sentido de uma concessão excessiva ao personagem, mas ela
comporta algo, também, de uma aposta, de um voto de confiança no
humano – ou, mais especificamente, talvez, nos homens,
enquanto, digamos (e complicações à parte), metade da espécie.
Marcada por uma escrita eminentemente feminina, a ficção de Isloany
se investe de uma potência desconstrutora face às contradições da
masculinidade, ao mesmo tempo que as absorve a uma espécie de
ritualística expiatória. Nesse impasse entre a radicalidade crítica
e uma demanda redentora, mais ou menos correspondente à oscilação
entre a crueza naturalista e o sentimentalismo romântico, talvez
resida a principal aresta a ser trabalhada pela autoconsciência
ético-estética da autora.
No
mais, o estudo das técnicas narrativas e de construção do enredo e
do espaço diegético, a atenção às mudanças de registro
estilístico – por exemplo, no trânsito entre a voz sentenciosa do
narrador (ou narradora?) e as falas mais prosaicas dos personagens –
e ao ritmo da narração certamente ajudarão a lapidar o talento da
jovem ficcionista, que já de início se arrisca a um salto tão
ousado. Quem embarcar nessa nau certamente ficará ansioso por outras
viagens de sua brava condutora.
Ravel, nem sei como te agradecer por essa crítica que fez. Nos conhecemos um pouco antes da publicação e seus comentários e sugestões foram fundamentais. Serei eternamente grata por isso.
ResponderExcluirAbraço
Sou eu quem agradeço, Isloany, não só pela oportunidade de ler seu livro antes ainda de ser publicado como por conhecê-la. Foi um alento, para mim, nesse estranhíssimo 2016. Tenho certeza que, com perseverança e dedicação, você irá longe na arte literária. Um forte abraço.
ExcluirJá estava com vontade de ler , com essa crítica então aguçou mais ainda. Desejo muita sorte a autora e por favor Ravel continue nos presenteando com suas críticas maravilhosas.
ResponderExcluirQue bom, Antonia! Fico feliz por seu comentário, muito obrigado!
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