VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

quarta-feira, 15 de março de 2017

Selvagens alquimias no Rock MS (Parte II)


Finalizar essa postagem sobre as “selvagens alquimias” na atual cena roqueira de Campo Grande foi um pouco mais difícil do que eu pensei que seria. Talvez pelo fato de que escrever sobre Os Alquimistas é um desafio que eu tento encarar desde que os vi pela primeira vez. Na verdade, desde que os ouvi, pois antes disso alguém já me havia me mostrado os três então garotos de ar meio nerd, meio junkie, sem que eu tivesse conseguido acreditar que eles tocavam tanto quanto se dizia.

Pois é, foi preciso ver e ouvir pra crer. De formação atípica – baixo (Perin), teclados (Leota) e bateria (Boloro) –, os Alquimistas são pura energia, mas energia oriunda de muita habilidade instrumental. Com uma cozinha destruidora – a marcação forte e os fraseados curtos do baixo de Perin e a bateria de ar caótico mas precisa de Boloro –, sobre a qual o teclado de Leota viaja em melodias nervosas e solos virtuosísticos com toques psicodélicos, os meninos, no início, mandavam principalmente covers enfezados de Beatles, Stones, Kinks, Mutantes e às vezes até um Raul, e várias coisas que eu não conheço. Que eu me lembre, a única música autoral do repertório era uma colagem de ditos populares.

Mas de repente, como que do nada, as canções autorais começaram a aparecer. Rock songs tão básicas quanto as que inspiraram a banda no início, de letras curtas e divertidas mas nem por isso menos sinceras. Sinceras e só aparentemente banais, pois condensam, em pequenos insights poéticos, as demandas de uma parcela importante da juventude de hoje.

De fato, os temas de Perin exprimem as experiências e os questionamentos daqueles a quem se costuma chamar, preconceituosamente, de “rebeldes sem causa” (como se o que mais sobrasse, em todo lugar, não fosse motivo pra rebeldia). Mas justamente por serem sinceras, por não fugirem dos temas reais desse universo, é que as canções dos Alquimistas podem extrair dele um tipo de arte: uma arte muito crua mas de um vigor que também traduz um tipo de grandeza, um tipo de genialidade que pode parecer puramente instintiva mas que é também conceitual, porque esses garotos sabem muito bem o que fazem e do que falam.

De classe média ou não, Os Alquimistas são jovens – e porta-vozes de outros jovens – que decidiram não abrir mão da integridade de seu ser, e lutam de alguma forma, ainda que às vezes contraditória, por ela. Jovens, sobretudo, que se recusaram e se recusam a vender ou tolher sua liberdade. Jovens de classe-média que preferem repartir seus transbordamentos musicais delirantes e amorosos com jovens como eles do que fazer de tudo pra se tornarem profissionais bem pagos.

E não é preciso que as letras de Perin digam essas coisas expressamente pra que exalem tudo isso, nas reivindicações mais prosaicas, por exemplo, de relações livres e de pessoas e uma cidade que sejam melhores do que são hoje:

Eu gosto mesmo de você
Ah, isso eu não vou negar
Mas eu não quero andar
De mãos dadas com ninguém por aí
..........................................................
Eu gosto de você, mas
Quem precisa de duas sombras?
Eu não
(Duas sombras)

Eu já não sei mais para onde vou
Pois todo lugar que eu vou
Pra mim é batido
Pra mim é batido

Eu já não sei mais com quem conversar
Pois todo mundo com quem converso
Acaba o assunto
Acaba o assunto
(Cidade pequena)

Não me venha com esse papo outra vez
Pois toda essa babaquice me deixou maluco pra burro
Se ao menos você fosse uma pessoa do tipo
Que procura entender um assunto profundo a fundo

Nós poderíamos conversar
Nós poderíamos conversar
Mas não dá
Não dá, não dá
(Não me venha com esse papo outra vez)

Só quem mora numa cidade pequena (não importa o número de habitantes) e tem plena consciência disso compreende o alcance desses versos. Só quem tem esse incômodo pode entender o quanto essas letras retratam, em pinceladas rápidas mas precisas, a “vida íntima” de todo um universo social. Pra falar mais claramente, a realidade social e cultural de um campo que pode ser grande, mas o resto não é tanto.

E, no entanto, é com algo muito próximo da magia, com uma alma que exala beleza e liberdade, que as canções dos Alquimistas exprimem tudo isso. Aliás, antes mesmo de exprimir, elas já nos lavavam disso, pois só pode ser esse o efeito de uma música tão livre numa realidade tão pequena. 

É verdade que essa alma era mais sensível no início, quando o repertório de covers era explorado com alegria quase infantil, os meninos se lançando de forma quase alucinada aos instrumentos, imersos no prazer corporal e espiritual de saber brincar tão bem de música. Mas a verdade é que Os Alquimistas ainda estão começando...

E depois de rasgar tanta seda pra eles, nem sei ainda se tenho forças pra falar do seu subproduto chamado Sexy Burger...

Subproduto no bom sentido, porque a banda capitaneada pelo alquimista Boloro, e que agora conta com o também alquimista Leota nas baquetas e ainda o ex-outras coisas Diego Reinhardt na guitarra e a estreante mas desde sempre musa Mariana no baixo, não deixa de ser uma evolução em relação aos Alquimistas, pelo menos no sentido de que traz um repertório mais raro e seleto, com destaque para a cena protopunk novaiorquina.



Pra falar da Sexy Burger é preciso falar do Boloro, e se eu fosse definir o Boloro diria que ele é uma mistura de Lou Reed com Iggy Pop, mas com uma alma de Peter Pan por trás dessa velharada toda. Pra não pegar tão pesado, vamos substituir o Peter Pan, sei lá, pelo Ringo Starr. O fato é que Boloro sempre foi ao mesmo tempo o mais soturno e o mais leve, quase etéreo, dos Alquimistas, e é ele quem está à frente na Sexy Burger, com sua voz grave e rasgada, peculiarmente bêbada e vigorosa.

O contraponto e complemento perfeito dessa voz é a guitarra solo rascante e alucinada de Diego, à qual a cozinha do baixo, da bateria e da guitarra base do próprio Boloro dão sustentação perfeita. Leota, o tecladista alucinado dos Alquimistas, vira um monstro na bateria, distribuindo com fartura pancadas secas de dar dó.

O que falta agora à Sexy Burger é a produção autoral. Além de namorar, o casal Boloro e Mariana podia topar esse desafio. Ou, de repente, todos eles juntos. Aí, quem sabe, nascerá no céu de Campo Grande uma estrela capaz de brilhar sabe-se lá em quantos continentes e sistemas solares... ou, não importa, uma estrela pouco conhecida (eu, pelo menos, não conhecia) como a Big Star adorada pelo Boloro, mas de grandeza única.

Algo, em todo caso, que a gente percebe que está brotando na cena cultural de Campo Grande – e, claro, de outros lugares –, pelas mãos dos artistas que integram as bandas de que falei nesses dois posts e ainda outras, como a Macumbapragringo, projeto instrumental de Rafael Omar com outro corumbaense radicado em Campo Grande, Jean Santos, ou o projeto solo do próprio Omar, ou ainda a precocemente finada The Linquentes e outras coisas que estão começando a acontecer. Porque os selvagens alquimistas não param de chegar.

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