VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

A punk lady night (e outra de Lobisomens...)

Já faz tanto tempo que eu prometi escrever sobre a Lady Fest do Holandês Voador, no já distante 13/01/2013, que as “ladies” em questão provavelmente já nem acreditam em mim. Pelo menos Lady “explícita” Novaes, a quem, de fato, praticamente jurei que escreveria este post, e a quem, aliás, ele é dedicado – e também, é claro, à “furrona” Amber Paul, e ainda à hermana Lety Concha, vocalista da SPM... Pra uma noite tão bonita, três musas é até pouco!
(Fiquei com vontade de incluir a Wanessa, batera do Toca-Fitas, até por questão de paridade, mas como não troquei  quase nenhuma ideia com ela, acho melhor não bancar o engraçadinho...)
Furrão 13
Acho que só consigo falar dessa outra noite fantástica no Holandês (já estou parecendo sócio, mas juro que não sou) de forma cronológica. Até porque ainda de longe, a uns trinta metros do bar, eu vivi a, digamos, miniexperiência épica de ser atraído por um verdadeiro canto de sereias – não sei se mais bonito, mas com certeza muito mais potente que o da Odisséia – e, ao chegar lá, constatar que ele já estava no fim, com as tais sereias, digo, furronas da Furrão 13, lindas, já desmontando os aparelhos... Uma epopéia cômica, portanto... mas, enfim, um acordezinho já vale a pena se a alma não é pequena...
Pois bem, perdi Furrão 13 mas não perdi las hermanas paraguayas da S.P.M., banda ferocíssima, ainda meio que se ajustando com os instrumentos mas transbordando garra e autenticidade, tanto na punkadaria seca quanto na expressão e na voz brabas de Lety Concha.
S.P.M.
E depois (ou foi antes? agora me dou conta de que não lembro da ordem das bandas) assisti à aula de punk-ska do Toca-Fitas, capitaneado por Fabio Bomba, vocal-guitarrista de fato meio “bombado” mas nem por isso de voz menos harmoniosa, nem menos habilidoso na levada ágil e nos solinhos melodiosos das belas canções próprias ou de covers do Rancid, entre outros... Tudo sustentado por um baixão perfeito e pela batida ao mesmo tempo firme, leve e veloz da Wanessa. Coisa fina, aliás, finíssima.
...em formação completa, que não cheguei a conhecer
Mas foi mesmo a Explícitos, pra mim, o auge da noite. Talvez porque me agrade o teor realmente explícito das letras, e porque Lady Novaes empunhe sua guitarra com energia e atitude empolgantes pra acusar:
Explícitos


Você é uma porra!
Violência contra a mulher
Violência contra uma criança
Contra os animais
E contra você MESMO...

Mas também, é claro, porque a “cozinha” desse power trio é igualmente fantástica, com a guitarra potente da Tracy, o baixão pulsante da Kamilla e destaque para a batera do privilegiado Maycon Vieira, único entre elas mas que de alguma forma respeita a essência feminina predominante, com sua baquetadas rápidas e fortes mas também altamente suingadas...

Mais Explícitos ainda
Parcial ou totalmente formadas por garotas, as bandas da I Lady Fest do Holandês Voador' demonstram cabalmente uma coisa: que a essência do punk rock – aliás, do punk e do rock – é, não vou dizer “masculina” ou “feminina” (nem sempre esses rótulos fazem muito sentido), mas positiva. Crítica, negadora, mas essencialmente positiva. E bonita. Nas poucas noites seguintes em que voltei ao Holandês, o que vi foram sempre expressões de energia e beleza, de talento e, na base de tudo isso, autenticidade.
Queria ter tempo e conhecimento técnico suficientes para falar do desempenho e da qualidade musical de bandas punk & derivados como Moinho do Macaco, LERW, Small Fish, Dependents, Bizonhentos, Punks do Destino (nunca vi um baterista cantar com tanta força e clareza),  ou da aliança de vigor e primor melódico e instrumental de bandas de metal como Strangers, Burning Universe, Screaming Fire e Death Soldier.
Mas não tenho, e o melhor que posso fazer, então, é convidar meu eventual leitor a não perder a primeira chance que tiver de vê-las em ação... Eu mesmo, não me canso de me perguntar: quando finalmente verei um show da Furrão 13?!...

Agora é que são eles
   
Mas, enfim, não tive que esperar algumas semanas para finalmente ver os Lobisomens? E sobre eles, que talvez sejam o fenômeno musical mais importante de Campo Grande hoje, eu não posso deixar de falar.
Os Lobisas são Douglas Almeida, Leandro Doutorado e Fabricio Martins, os três primeiros integrantes, também, da Small Fish e da Dependents; o que só torna a coisa mais assustadora, fazendo perguntar se esses caras não são mesmo meio sobrenaturais... Porque uma noite de Lobisomens, lá em cima, no palco, já seria suficiente pra deixar qualquer outro cristão arriado.
Esclarecendo, os Lobisomens são uma banda de blues-jazz instrumental, com pegada grunge, que toca horas seguidas basicamente de improviso; só não se pode dizer puro improviso porque obviamente os integrantes vão pegando os “esquemas” um do outro. O trio começa (começou, pelo menos, na última sexta-feira, 22/02, em plena lua crescente) com uns fraseados mais puxados pro blues que vão ganhando em riqueza e intensidade até chegar a algo como um jazz-punk, ao mesmo tempo primitivo, maniacamente visceral, e sofisticado.
Leandro Dourado


O entrosamento da banda é de cair o queixo: como disse Fabricio Martins, cada um faz uma coisa, mas totalmente engrenado com o que os outros fazem, e com quebras de ritmo tão perfeitas que, conforme dizia Herson Nonaka, vocalista do Small Fish, eles parecem pensar com a mesma cabeça. E tudo com uma força extraordinária, impressa pela batidona monstruosa do Leandro – que, como eu já disse em outro post, tem a pegada do Dave Ghrol, só que mais rica, pois o que eles fazem ali é música em estado puro –, sobre a qual a guitarra seca e melódica de Douglas Almeida constrói solinhos rascantes e viagens rítmicas surpreendentes, às vezes com uma intensidade que, com o perdão do lugar-comum, parece disposta a quebrar a velocidade do som. No fim de tudo ficam os dois ali, massageando os pulsos e os ombros, mas ambos, bons cristãos que são (não é piada), com a expressão satisfeita por ter chamado o espírito de Deus para plainar sobre as turbulências da Terra...
Douglas Almeida
Mas o baixão de Fabricio Martins também tem um papel fundamental nessa economia sonora. Longe de se contentar em marcar melodicamente as batidas de Leandro, ele constrói linhas melódicas sofisticadíssimas, realmente puxadas pra o jazz, obrigando o trio a trilhar o caminho da riqueza e da complexidade.
A certa altura, Fabricio cedeu seu instrumento ao baixista da Strangers, que assina Irwing dos Teclados. Com uma pulsão rítmica impressionante e um suingue que, definitivamente, eu não esperava de um integrante de uma banda de metal, Irwing imprimiu uma intensidade ainda mais monstruosa à jam session. Como disse o próprio Fabricio, impressionado, o baixão de Irwing “preenche todos os espaços”. Mas quando reassumiu o comando, Fabricio mostrou a que veio. Numa seção particularmente marcada pelo burilamento melódico, criou solos belíssimos, com aquele jogo de compassos e descompassos fantástico do jazz, e me convenceu que sua presença, ali, é absolutamente fundamental.
Fabricio Martins
Na verdade, fiquei pensando em como é ingênua a ideia de que existem músicas, bandas ou formações “perfeitas”, pois as “perfeições” podem ser sempre diferentes... E como são tolas, muitas vezes, as comparações de valor. O que os Lobisomens fazem é um atestado da riqueza inesgotável da música, e decidir o que é melhor nesse devir de som e vida é estorvar a correnteza. Cada um daqueles momentos é ao mesmo tempo único e inesgotável, pois se inscreve na genética do Cosmos, nele ecoa e produz outras formas vivas e sonoras...
Digo tudo isso, um pouco, pra me consolar pela falta (aliás, no fundo, pela impossibilidade) de um registro completo dessa e outras noites sobrenaturais... O importante é que outras venham, que a música e a arte não parem, e ecoem cada vez mais pela vida. Agora, que os Lobisomens mereciam assombrar essa terra brasilis inteira, disso não há dúvida!
Ah, mas essa comparaçãozinha de valor eu não posso deixar de fazer, ou melhor, de sustentar: os Lobisomens são objetivamente melhores que a Macaco Bong, banda de jazz-rock já consagrada que eu vi há alguns anos. E olha que os Bongs são três Hendrix reencarnados...



P.S.1 - Vale registrar, até pra unir este post com o outro, que a noite dos Lobisas terminou com outra canja: da Patrícia Goulart, namorada do Douglas, e que manda muito bem, sim senhora...

P.S.2 - Só pra sentir o cheiro de sangue:
Lobisomens em clima de fim de festa no Holandês...

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

De samba e rock, ainda e sempre

No post anterior eu havia prometido “despir o maluco beleza e vestir o intelectualóide”, ou seja, voltar a falar de coisas mais sérias, e me penitencio dessa tola promessa violando-a duplamente...

Mas esse intróito meio aloprado pede um parêntese. Pois há coisas sérias, sim, sobre as quais é preciso falar, e a proposta deste blog deveria contemplá-las. Além de minhas parcas forças, no entanto, eu posso alegar que falar sobre juventude e música, ou seja, sobre “música jovem” – que é, a rigor, o que eu tenho feito –, é uma forma de atingir, de alguma forma, ainda que muito indiretamente, essas questões. Acho que meu caro leitor – quiçá uma entediada leitora – pode me dar um milésimo de razão...

Mas – ainda o parêntese – permitam-me dizer que eu torço sinceramente pela recuperação de Hugo Chávez, inclusive para não me sentir obrigado a falar de algo que seria, acredito, uma enorme perda, para a Venezuela e, no mínimo, a América Latina.

(Há também a tragédia de Santa Maria, é claro, que ocorreu após eu ter começado este texto, e a respeito da qual ainda quero falar, mas outra hora, com a calma que o assunto exige.)

O fato é que eventos tão banais quanto bonitos como um show do Dombraz e outra noite, aliás, outro “fatídico” dia 12 no Holandês Voador, são para mim assuntos irresistíveis, obrigatórios. “Fatídico” (o dia 12) como o outro, é claro, ou seja, simbolicamente, noite “matadora” que foi... Mas “símbolos” desse tipo se imprimem de alguma forma na realidade, atuam nela. O gosto adicional que a coincidência (apenas dias depois me dei conta da data em que voltei ao Holandês Voador) pode parecer banal (ou, sei lá, meio agourento), mas, enfim, merece registro: um mês depois do “fim do mundo”, sobre o qual eu falei nesse outro post, o mundo continua acabando no Holandês, o melhor lugar para se ir, atualmente, em Campo Grande (sozinho, pelo menos...).

E, sem querer alimentar superstições, o dia 10 também contém uma coincidência: foi o fato de eu ter me lembrado de escrever sobre o Dombraz após ver um show das sisters Sampri (que bem que podiam decolar internacionalmente: um mixo Teló não decolou?), enfim, foi o fato de ter falado do Dombraz e das Sampri que me lembrou de procurar o facebook dessa grande banda de samba-rock, coincidentemente às vésperas de seu primeiro show no ano, no mesmo Rockers onde gravaram o CD ao vivo lançado em 2012. Duas coincidências, portanto... Mas deixa eu pôr ordem na suruba.

Caminhos do Braz

O Dombraz: grande e, certamente, uma das melhores bandas de samba-rock (ou melhores bandas) do país. A ousadia de Cris Haicai de cantar como um carioca (cantar como, e não propriamente forjar um eu lírico: reivindicar para si o sotaque e a condição existencial, as vivências etc. do “malandro carioca”) é um índice de sua consciência dessa qualidade, dessa afirmação do espírito da malandragem enquanto coisa que se busca e se realiza autenticamente ali, na música e na veia dessa cambada de centro-oestinos...

O fato, mesmo, é que é lindo – sem pudor da palavra – ver-e-ouvir Bruno Chencarek debulhando seu baixão, em bases-solados de uma absoluta independência (ou seja, beleza) melódica que, ao mesmo tempo, dão a sustentação necessária para a guitarra quase sempre discreta de Dhonattas Oliveira, refinadíssima em suas levadas ao mesmo tempo rascantes, “aveludadas” e suingadas, sulcadas por meio-solos que de repente (raramente, senão o Braz seria uma banda de jazz-rock) desandam num solo psicodélico, quando não em guitarradas viscerais...

Tudo isso, perdoem o clichê, harmonicamente atravessado por uma batera que deve fazer o milagre de ora alternar ora conjugar o impacto, a dureza do rock e o suingue e malícia do samba... Deve e consegue, com um virtuosismo do qual só consigo indicar algo muito óbvio, como as viradas sensacionais que fecharam, salvo engano, “Café fraco”.  E tudo enriquecido por uma percussão que mantém, em sua constância meio subterrânea, o élan – o espírito vivo – que no fim das contas sobressai, e que é, sem dúvida, o do samba.

A Chris Haicai cabe dar, mais do que corpo e sentido, ideias, mas também voz – aliás, vozeirão – e gestualidade a tudo isso. Ou é a música que reveste as ideias, a dimensão significante, de um tipo materialidade sensorial, não importa. Importa que é na figura e na voz – nas letras, na enunciação viva, na encarnação de um “tipo” que é também uma “filosofia”, a busca de uma autenticidade – de Chris que se encarnam as tensões do Dombraz enquanto fenômeno ideológico; e é ele, portanto, quem, no próprio gesto em que pede as palmas e os coros da platéia (o que faz frequentemente), dá a cara a tapa. Aí onde se incrusta, é claro, a “filosofia da malandragem” de Chris-Braz (ou Dom Chris, hehe), com seus riscos (ou arriscos) e negaceios...

Mas não vou falar sobre o quanto falta ou sobra de pó (de café, é claro), pastel, cachaça, cocada, etc. porrada nas letras compostas ou cantadas por Chris Haicai... O que me instiga a falar sobre a dialética, digamos assim, da malandragem e da responsa no Braz advém, pelo contrário, do que há de mais nobre nas canções da banda. Na verdade, a maioria das letras de Chris emanam uma “filosofia do samba”, invocando forças pra seguir adiante mesmo sem saber aonde vai chegar (em “Café fraco”), negando os rancores (em “Não dá nada”), embora também cultivando os mesmos na cômica “Inédita”, mas final reencontrando a felicidade na “canção que nos conduz”...

Mas o que me chama mais a atenção é o reggae “A planta”, canção excelente (e já “antiga”, pelo que entendi do que o Chris disse no Parque), com um ótico refrão, um hit perfeito, que só não “estoura” nacionalmente porque o que tem “estourado” por aí são mesmo verdadeiras bombas (metaforicamente e não, diga-se de passagem).

O fato é que “A planta” é a canção de temática mais séria no atual repertório do Dombraz: a que exprime de forma mais direta algo como uma “filosofia de vida”, a qual se pode identificar ou não com elementos implícitos nas outras canções. Independente disso, é evidente a nobreza de sua letra, que o refrão sintetiza numa fórmula pop invejável: “Não vá / deixar / que o sistema do mal invada você / Parar / jamais / Desistir de lutar é deixar de viver”.

O que me leva a pensar sobre o porquê dessa demanda de autenticidade se apresentar agora para o Dombraz, levando-os a recuperar uma música do início da banda... Claro, a canção é ótima, mas acho que o fato de ser uma “bandeira” também conta: o Dombraz sente a necessidade de “passar uma mensagem”. Porque isso é necessário, é claro, e Chris é um cara inteligente e autêntico, que se recusa a negar o sangue e a origem social etc... Mas também, pode-se supor, porque certo afastamento já ocorreu... Será, talvez, porque o Dombraz já é uma banda de sucesso e pague um pouco o preço disso, e a condição de banda mainstream ande rondando-a, com tudo de bom e de ruim que isso traz?...

Tudo suposições, é claro, e que não querem ser maldosas, mas estimular a reflexão crítica de quem reflete criticamente, como é o caso de Chris Haicai. E pra sair um pouco do abstrato no meu argumento, assinalo meu único incômodo na bela letra de “A planta”: os versos que dizem que “Quem planta liberdade / Jamais vai colher a dor”.

Porque o caminho da autenticidade – e da liberdade – também tem suas pedras, e Chris certamente sabe disso... É o caminho que vale a pena, sem dúvida, mas também aquele em que, vira e mexe, precisamos nos dizer isso mesmo: que vale a pena porque a alma não é pequena...

Que o Dombraz estoure, porque ele merece, e o Brasil precisa! Aliás, o Brasil é pouco para o Dombraz (e para a música brasileira), mas que para isso não seja preciso sair do caminho autêntico. Ainda outro dia meu amigo Luiz Antônio Mousinho, professor, jornalista e especialista em MPB, comentava como a entrega aos esquemas comerciais trouxe sucesso mas também grandes perdas de qualidade e, portanto, certa desonra musical para bons cantores como Fagner e Simone... Se essa tentação bater à porta do Braz, que ele o esconjure no ato!

E que o Braz nunca se desvincule totalmente da cena alternativa, que é a origem de toda banda séria. Que um dia ele toque num Rock in Rio ou um Lollapalooza da vida, mas também, quem sabe, no Holandês Voador... Aliás, não é que outro dia o Douglas, músico de várias superbandas que tocam aí, me disse que um dia Chris Haicai deu uma canja com os Lobisomens? O que pra mim é uma confirmação: a cena alternativa está no sangue do Dombraz, e não pode sair dele. Quem sabe um dia ainda veremos Cris e sua trupe emanando e recebendo a energia fantástica do Holandês? Ajudando, inclusive, a chutar o balde dos preconceitos que ainda vicejam em todo lugar...

Bom, eu devia, agora, falar da “Lady Fest” do dia 12, mas é óbvio que já falei demais. Fica para a próxima, então.