VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2013

De samba e rock, ainda e sempre

No post anterior eu havia prometido “despir o maluco beleza e vestir o intelectualóide”, ou seja, voltar a falar de coisas mais sérias, e me penitencio dessa tola promessa violando-a duplamente...

Mas esse intróito meio aloprado pede um parêntese. Pois há coisas sérias, sim, sobre as quais é preciso falar, e a proposta deste blog deveria contemplá-las. Além de minhas parcas forças, no entanto, eu posso alegar que falar sobre juventude e música, ou seja, sobre “música jovem” – que é, a rigor, o que eu tenho feito –, é uma forma de atingir, de alguma forma, ainda que muito indiretamente, essas questões. Acho que meu caro leitor – quiçá uma entediada leitora – pode me dar um milésimo de razão...

Mas – ainda o parêntese – permitam-me dizer que eu torço sinceramente pela recuperação de Hugo Chávez, inclusive para não me sentir obrigado a falar de algo que seria, acredito, uma enorme perda, para a Venezuela e, no mínimo, a América Latina.

(Há também a tragédia de Santa Maria, é claro, que ocorreu após eu ter começado este texto, e a respeito da qual ainda quero falar, mas outra hora, com a calma que o assunto exige.)

O fato é que eventos tão banais quanto bonitos como um show do Dombraz e outra noite, aliás, outro “fatídico” dia 12 no Holandês Voador, são para mim assuntos irresistíveis, obrigatórios. “Fatídico” (o dia 12) como o outro, é claro, ou seja, simbolicamente, noite “matadora” que foi... Mas “símbolos” desse tipo se imprimem de alguma forma na realidade, atuam nela. O gosto adicional que a coincidência (apenas dias depois me dei conta da data em que voltei ao Holandês Voador) pode parecer banal (ou, sei lá, meio agourento), mas, enfim, merece registro: um mês depois do “fim do mundo”, sobre o qual eu falei nesse outro post, o mundo continua acabando no Holandês, o melhor lugar para se ir, atualmente, em Campo Grande (sozinho, pelo menos...).

E, sem querer alimentar superstições, o dia 10 também contém uma coincidência: foi o fato de eu ter me lembrado de escrever sobre o Dombraz após ver um show das sisters Sampri (que bem que podiam decolar internacionalmente: um mixo Teló não decolou?), enfim, foi o fato de ter falado do Dombraz e das Sampri que me lembrou de procurar o facebook dessa grande banda de samba-rock, coincidentemente às vésperas de seu primeiro show no ano, no mesmo Rockers onde gravaram o CD ao vivo lançado em 2012. Duas coincidências, portanto... Mas deixa eu pôr ordem na suruba.

Caminhos do Braz

O Dombraz: grande e, certamente, uma das melhores bandas de samba-rock (ou melhores bandas) do país. A ousadia de Cris Haicai de cantar como um carioca (cantar como, e não propriamente forjar um eu lírico: reivindicar para si o sotaque e a condição existencial, as vivências etc. do “malandro carioca”) é um índice de sua consciência dessa qualidade, dessa afirmação do espírito da malandragem enquanto coisa que se busca e se realiza autenticamente ali, na música e na veia dessa cambada de centro-oestinos...

O fato, mesmo, é que é lindo – sem pudor da palavra – ver-e-ouvir Bruno Chencarek debulhando seu baixão, em bases-solados de uma absoluta independência (ou seja, beleza) melódica que, ao mesmo tempo, dão a sustentação necessária para a guitarra quase sempre discreta de Dhonattas Oliveira, refinadíssima em suas levadas ao mesmo tempo rascantes, “aveludadas” e suingadas, sulcadas por meio-solos que de repente (raramente, senão o Braz seria uma banda de jazz-rock) desandam num solo psicodélico, quando não em guitarradas viscerais...

Tudo isso, perdoem o clichê, harmonicamente atravessado por uma batera que deve fazer o milagre de ora alternar ora conjugar o impacto, a dureza do rock e o suingue e malícia do samba... Deve e consegue, com um virtuosismo do qual só consigo indicar algo muito óbvio, como as viradas sensacionais que fecharam, salvo engano, “Café fraco”.  E tudo enriquecido por uma percussão que mantém, em sua constância meio subterrânea, o élan – o espírito vivo – que no fim das contas sobressai, e que é, sem dúvida, o do samba.

A Chris Haicai cabe dar, mais do que corpo e sentido, ideias, mas também voz – aliás, vozeirão – e gestualidade a tudo isso. Ou é a música que reveste as ideias, a dimensão significante, de um tipo materialidade sensorial, não importa. Importa que é na figura e na voz – nas letras, na enunciação viva, na encarnação de um “tipo” que é também uma “filosofia”, a busca de uma autenticidade – de Chris que se encarnam as tensões do Dombraz enquanto fenômeno ideológico; e é ele, portanto, quem, no próprio gesto em que pede as palmas e os coros da platéia (o que faz frequentemente), dá a cara a tapa. Aí onde se incrusta, é claro, a “filosofia da malandragem” de Chris-Braz (ou Dom Chris, hehe), com seus riscos (ou arriscos) e negaceios...

Mas não vou falar sobre o quanto falta ou sobra de pó (de café, é claro), pastel, cachaça, cocada, etc. porrada nas letras compostas ou cantadas por Chris Haicai... O que me instiga a falar sobre a dialética, digamos assim, da malandragem e da responsa no Braz advém, pelo contrário, do que há de mais nobre nas canções da banda. Na verdade, a maioria das letras de Chris emanam uma “filosofia do samba”, invocando forças pra seguir adiante mesmo sem saber aonde vai chegar (em “Café fraco”), negando os rancores (em “Não dá nada”), embora também cultivando os mesmos na cômica “Inédita”, mas final reencontrando a felicidade na “canção que nos conduz”...

Mas o que me chama mais a atenção é o reggae “A planta”, canção excelente (e já “antiga”, pelo que entendi do que o Chris disse no Parque), com um ótico refrão, um hit perfeito, que só não “estoura” nacionalmente porque o que tem “estourado” por aí são mesmo verdadeiras bombas (metaforicamente e não, diga-se de passagem).

O fato é que “A planta” é a canção de temática mais séria no atual repertório do Dombraz: a que exprime de forma mais direta algo como uma “filosofia de vida”, a qual se pode identificar ou não com elementos implícitos nas outras canções. Independente disso, é evidente a nobreza de sua letra, que o refrão sintetiza numa fórmula pop invejável: “Não vá / deixar / que o sistema do mal invada você / Parar / jamais / Desistir de lutar é deixar de viver”.

O que me leva a pensar sobre o porquê dessa demanda de autenticidade se apresentar agora para o Dombraz, levando-os a recuperar uma música do início da banda... Claro, a canção é ótima, mas acho que o fato de ser uma “bandeira” também conta: o Dombraz sente a necessidade de “passar uma mensagem”. Porque isso é necessário, é claro, e Chris é um cara inteligente e autêntico, que se recusa a negar o sangue e a origem social etc... Mas também, pode-se supor, porque certo afastamento já ocorreu... Será, talvez, porque o Dombraz já é uma banda de sucesso e pague um pouco o preço disso, e a condição de banda mainstream ande rondando-a, com tudo de bom e de ruim que isso traz?...

Tudo suposições, é claro, e que não querem ser maldosas, mas estimular a reflexão crítica de quem reflete criticamente, como é o caso de Chris Haicai. E pra sair um pouco do abstrato no meu argumento, assinalo meu único incômodo na bela letra de “A planta”: os versos que dizem que “Quem planta liberdade / Jamais vai colher a dor”.

Porque o caminho da autenticidade – e da liberdade – também tem suas pedras, e Chris certamente sabe disso... É o caminho que vale a pena, sem dúvida, mas também aquele em que, vira e mexe, precisamos nos dizer isso mesmo: que vale a pena porque a alma não é pequena...

Que o Dombraz estoure, porque ele merece, e o Brasil precisa! Aliás, o Brasil é pouco para o Dombraz (e para a música brasileira), mas que para isso não seja preciso sair do caminho autêntico. Ainda outro dia meu amigo Luiz Antônio Mousinho, professor, jornalista e especialista em MPB, comentava como a entrega aos esquemas comerciais trouxe sucesso mas também grandes perdas de qualidade e, portanto, certa desonra musical para bons cantores como Fagner e Simone... Se essa tentação bater à porta do Braz, que ele o esconjure no ato!

E que o Braz nunca se desvincule totalmente da cena alternativa, que é a origem de toda banda séria. Que um dia ele toque num Rock in Rio ou um Lollapalooza da vida, mas também, quem sabe, no Holandês Voador... Aliás, não é que outro dia o Douglas, músico de várias superbandas que tocam aí, me disse que um dia Chris Haicai deu uma canja com os Lobisomens? O que pra mim é uma confirmação: a cena alternativa está no sangue do Dombraz, e não pode sair dele. Quem sabe um dia ainda veremos Cris e sua trupe emanando e recebendo a energia fantástica do Holandês? Ajudando, inclusive, a chutar o balde dos preconceitos que ainda vicejam em todo lugar...

Bom, eu devia, agora, falar da “Lady Fest” do dia 12, mas é óbvio que já falei demais. Fica para a próxima, então.


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