No post anterior eu havia prometido
“despir o maluco beleza e vestir o intelectualóide”, ou seja, voltar a falar de
coisas mais sérias, e me penitencio dessa tola promessa violando-a duplamente...
Mas esse intróito meio aloprado pede um
parêntese. Pois há coisas sérias, sim, sobre as quais é preciso falar, e a
proposta deste blog deveria contemplá-las. Além de minhas parcas forças, no
entanto, eu posso alegar que falar sobre juventude e música, ou seja, sobre
“música jovem” – que é, a rigor, o que eu tenho feito –, é uma forma de atingir,
de alguma forma, ainda que muito indiretamente, essas questões. Acho que meu caro
leitor – quiçá uma entediada leitora – pode me dar um milésimo de razão...
Mas – ainda o parêntese – permitam-me
dizer que eu torço sinceramente pela recuperação de Hugo Chávez, inclusive para
não me sentir obrigado a falar de algo que seria, acredito, uma enorme perda,
para a Venezuela e, no mínimo, a América Latina.
(Há também a tragédia de Santa Maria, é
claro, que ocorreu após eu ter começado este texto, e a respeito da qual ainda
quero falar, mas outra hora, com a calma que o assunto exige.)
O fato é que eventos tão banais quanto
bonitos como um show do Dombraz e outra noite, aliás, outro “fatídico” dia 12
no Holandês Voador, são para mim assuntos irresistíveis, obrigatórios. “Fatídico”
(o dia 12) como o outro, é claro, ou seja, simbolicamente, noite “matadora” que
foi... Mas “símbolos” desse tipo se imprimem de alguma forma na realidade, atuam nela. O gosto adicional que a
coincidência (apenas dias depois me dei conta da data em que voltei ao Holandês Voador) pode parecer banal (ou, sei lá, meio agourento), mas, enfim, merece registro:
um mês depois do “fim do mundo”, sobre o qual eu falei nesse outro post,
o mundo continua acabando no Holandês, o melhor lugar para se ir, atualmente, em Campo Grande
(sozinho, pelo menos...).
E, sem querer alimentar superstições, o
dia 10 também contém uma coincidência: foi o fato de eu ter me lembrado de
escrever sobre o Dombraz após ver um show das sisters Sampri (que bem que podiam decolar internacionalmente: um
mixo Teló não decolou?), enfim, foi o fato de ter falado do Dombraz e das
Sampri que me lembrou de procurar o facebook dessa grande banda de samba-rock,
coincidentemente às vésperas de seu primeiro show no ano, no mesmo Rockers onde
gravaram o CD ao vivo lançado em 2012. Duas coincidências, portanto... Mas deixa
eu pôr ordem na suruba.
Caminhos do Braz
O Dombraz: grande e, certamente, uma das
melhores bandas de samba-rock (ou melhores bandas)
do país. A ousadia de Cris Haicai de cantar como um carioca (cantar como, e não propriamente forjar um eu lírico: reivindicar para si
o sotaque e a condição existencial, as vivências etc. do “malandro carioca”) é
um índice de sua consciência dessa qualidade, dessa afirmação do espírito da
malandragem enquanto coisa que se busca e se realiza autenticamente ali, na
música e na veia dessa cambada de centro-oestinos...
O fato, mesmo, é que é lindo – sem pudor
da palavra – ver-e-ouvir Bruno Chencarek debulhando seu baixão, em bases-solados de uma
absoluta independência (ou seja, beleza)
melódica que, ao mesmo tempo, dão a sustentação necessária para a guitarra quase
sempre discreta de Dhonattas Oliveira, refinadíssima em suas levadas ao mesmo tempo
rascantes, “aveludadas” e suingadas, sulcadas por meio-solos que de repente (raramente,
senão o Braz seria uma banda de jazz-rock) desandam num solo psicodélico,
quando não em guitarradas viscerais...
Tudo isso, perdoem o clichê,
harmonicamente atravessado por uma batera que deve fazer o milagre de ora
alternar ora conjugar o impacto, a dureza do rock e o suingue e malícia do samba... Deve e consegue, com um virtuosismo do
qual só consigo indicar algo muito óbvio, como as viradas sensacionais que
fecharam, salvo engano, “Café fraco”. E
tudo enriquecido por uma percussão que mantém, em sua constância meio
subterrânea, o élan – o espírito vivo
– que no fim das contas sobressai, e que é, sem dúvida, o do samba.
A Chris Haicai cabe dar, mais do que corpo
e sentido, ideias, mas também voz –
aliás, vozeirão – e gestualidade a tudo isso. Ou é a música que reveste as
ideias, a dimensão significante, de um tipo materialidade sensorial, não
importa. Importa que é na figura e na voz – nas letras, na enunciação viva, na
encarnação de um “tipo” que é também uma “filosofia”, a busca de uma autenticidade – de Chris que se encarnam
as tensões do Dombraz enquanto fenômeno ideológico; e é ele, portanto, quem, no
próprio gesto em que pede as palmas e os coros da platéia (o que faz
frequentemente), dá a cara a tapa. Aí onde se incrusta, é claro, a “filosofia
da malandragem” de Chris-Braz (ou Dom Chris, hehe), com seus riscos (ou arriscos) e negaceios...
Mas não vou falar sobre o quanto falta
ou sobra de pó (de café, é claro), pastel, cachaça, cocada, etc. porrada nas letras
compostas ou cantadas por Chris Haicai... O que me instiga a falar sobre a dialética,
digamos assim, da malandragem e da responsa
no Braz advém, pelo contrário, do que há de mais nobre nas canções da banda. Na verdade, a maioria das letras de Chris emanam uma
“filosofia do samba”, invocando forças pra seguir adiante mesmo sem saber
aonde vai chegar (em “Café fraco”), negando os rancores (em “Não dá nada”), embora
também cultivando os mesmos na cômica
“Inédita”, mas final reencontrando a felicidade na “canção que nos conduz”...
Mas o que me chama mais a atenção é o
reggae “A planta”, canção excelente (e já “antiga”, pelo que entendi do que o
Chris disse no Parque), com um ótico refrão, um hit perfeito, que só não “estoura” nacionalmente porque o que tem “estourado”
por aí são mesmo verdadeiras bombas
(metaforicamente e não, diga-se de passagem).
O fato é que “A planta” é a canção de
temática mais séria no atual repertório do Dombraz: a que exprime de forma mais
direta algo como uma “filosofia de vida”, a qual se pode identificar ou não com
elementos implícitos nas outras canções. Independente disso, é evidente a nobreza de sua letra, que o
refrão sintetiza numa fórmula pop invejável: “Não vá / deixar / que o sistema do mal invada você / Parar / jamais / Desistir
de lutar é deixar de viver”.
O que me leva a pensar sobre o porquê
dessa demanda de autenticidade se
apresentar agora para o Dombraz, levando-os a recuperar uma música do início da
banda... Claro, a canção é ótima, mas acho que o fato de ser uma “bandeira”
também conta: o Dombraz sente a necessidade de “passar uma mensagem”. Porque
isso é necessário, é claro, e Chris é um cara inteligente e autêntico, que se
recusa a negar o sangue e a origem social etc... Mas também, pode-se supor, porque
certo afastamento já ocorreu... Será,
talvez, porque o Dombraz já é uma banda de sucesso e pague um pouco o preço
disso, e a condição de banda mainstream ande rondando-a, com tudo de bom e de ruim que isso traz?...
Tudo suposições, é claro, e que não
querem ser maldosas, mas estimular a reflexão crítica de quem reflete
criticamente, como é o caso de Chris Haicai. E pra sair um pouco do abstrato no
meu argumento, assinalo meu único incômodo na bela letra de “A planta”: os
versos que dizem que “Quem planta liberdade / Jamais vai colher a dor”.
Porque o caminho da autenticidade – e da
liberdade – também tem suas pedras, e Chris certamente sabe disso... É o caminho
que vale a pena, sem dúvida, mas também aquele em que, vira e mexe, precisamos
nos dizer isso mesmo: que vale a pena porque a alma não é pequena...
Que o Dombraz estoure, porque ele merece,
e o Brasil precisa! Aliás, o Brasil é pouco para o Dombraz (e para a música
brasileira), mas que para isso não seja preciso sair do caminho autêntico. Ainda outro dia meu amigo Luiz Antônio Mousinho, professor, jornalista
e especialista em MPB, comentava como a entrega aos esquemas comerciais trouxe
sucesso mas também grandes perdas de qualidade e, portanto, certa desonra
musical para bons cantores como Fagner e Simone... Se essa tentação bater à
porta do Braz, que ele o esconjure no ato!
E que o Braz nunca se desvincule totalmente
da cena alternativa, que é a origem de toda banda séria. Que um dia ele toque
num Rock in Rio ou um Lollapalooza da vida, mas também, quem sabe, no Holandês
Voador... Aliás, não é que outro dia o Douglas, músico de várias superbandas
que tocam aí, me disse que um dia Chris Haicai deu uma canja com os Lobisomens? O
que pra mim é uma confirmação: a cena alternativa está no sangue do Dombraz, e
não pode sair dele. Quem sabe um dia ainda veremos Cris e sua trupe emanando e
recebendo a energia fantástica do Holandês? Ajudando, inclusive, a chutar o
balde dos preconceitos que ainda vicejam em todo lugar...
Bom, eu devia, agora, falar da “Lady
Fest” do dia 12, mas é óbvio que já falei demais. Fica para a próxima, então.
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