VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

domingo, 16 de setembro de 2012

"Prata da casa"? Fabio Brum is Gold Holly, Bigfield!!!

O site Midiamax é um dos poucos informativos mais ou menos imparciais deste Estado de Coisas, mas eu vou pedir licença pra começar esta crônica xingando o jornalista ou quem quer que seja que noticiou o show de Fabio Brum & Renato "Bêbados" + João "Bohan" Bosco e João Carlos como um show "prata da casa": mano, disponha de seus dedos, faça uso deles num ralador e só pare quando se convencer da ignomínia que escreveste!

Consagrada que seja, a expressão "prata da casa" é uma ofensa nesse caso, como em tantos outros... É a mesma história de que "santo de casa não faz milagre": se o que esses caras fizeram ontem no Fly não foi uma sequência magnífica de milagres, eu não sei o que foi!

E Fabio Brum não é "prata da casa" coisa nenhuma: é ouro lavrado, "ouro nativo que na ganga impura a bruta mina dos cascalhos vela", como certamente diria o Bilac. Gold Holly, se me permitem, em homenagem à versão de Buddy Holly que foi um dos melhores momentos da noite, com guitarradas sublimes que com certeza chegaram ao céu, ao inferno ou aonde quer que esteja o velho Bode.

Dito isto, esclareço que acompanho - mal e porcamente, até porque morei fora muito tempo - os Bêbados e, antes deles, a Blues Band desde os anos 90, desde os tempos do Sucão, quando quem os empresariava era o velho Gil, e eles tocavam no chão, no centro de um inferninho iluminado, Fabio solando endemoniadamente, o Renato em plena potência roufenha, a fumaça pairando no ar e o povo dançando em volta, tomado... Acho que esses shows foram minhas primeiras experiências da música como algo definitivamente transcendental.

O que eu eu vi essa noite não foram essas cenas reprisadas, mas esse espírito ressuscitado, e, no caso do maior guitar hero bigfieldense, ainda acrescido da experiência que não domou, mas se somou ao virtuosismo feroz que já corria no sangue. Fabio não é o tipo de guitarrista que se contenta em fazer "um som perfeito", mas que não hesita em se arriscar pra se transcender, sem se importar se vai errar ou não; e mete a mão na massa com fúria e paixão, extraindo da guitarra  (uma Gibson, salvo engano, alguém me disse) timbres fantásticos e fortíssimos (que me lembram um pouco as coisas mais viscerais do The Who), seja nas repetições hipnóticas ou nos solos desvairados, e ainda nas levadas rítmicas turbilhonantes. O tempo inteiro o alvo de Fabio é o transcendente, embora uma transcendência que não abre mão do corpo, mas leva o corpo junto.

E o que dizer da batera de Bosco, rindo lá no fundo como quem toca anima uma festa de aniversário e solando como um John Boham em tempo acelerado? Não é à toa que ele é pai de Jean "Boham" Albernaz, que, quando somar à sua ferocidade e precisão tudo o que pai sabe, vai ser o melhor baterista do mundo - aí sim, sem exagero retórico, um John Boham renascido, como eu disse no post anterior. Aliás, corrigindo, um Boham-Grhol. Mas, voltando à noite de ontem, Renato também estava em estado de graça, e o baixão de João Carlos pulsou firme e denso o tempo todo. Erraram pra caralho, mas fizeram um show único, com toda a garra que o improviso traz ao blues.

João "Boham" Bosco (ao centro), nos velhos tempos do
Alta Tensão (do clássico "Paranóia", hino extraoficial
de Bigfield).
Uma cena que merecia ser registrada: o momento em que Fabio chamou Jefferson, guitarrista do Wishky de Segunda, ao palco e exigiu que ele assumisse sua guitarra: tímido, e talvez ainda mais intimidado pela responsa, tocando de total improviso, ele não fez tudo o que faz no Rota toda sexta, mas mostrou que é sim o herdeiro legítimo da vitalidade Fabio Brum, embora com uma técnica própria, que eu não vou tentar descrever.

E tudo isso em Bigfield, esse campo grande dos infernos que não valoriza seus talentos. A terra, conforme um papo com o Jonatas Bobadilha (baixista da banda Neptuno, que eu ainda quero ver em ação) na saída do show, onde o bluesão dos guetos norte-americanos encarnou, provavelmente como em nenhuma outra do Brasil. É verdade, Jonatas: com todo o respeito ao grande Celso BB, os kings estão aqui!...

Mas sem competição! Vida longa ao blues, vida longa a Fabio "Holly" Brum, vida longa a Renato e seus blues bêbados! Porra, nem falei das letras do Renato... fica para a próxima. A vontade é de lançar um movimento: Volta, Blues Band!!!

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Dimitri Pellz, 7 de setembro: flying with fire


Queria ter escrito sobre a banda Dimitri Pellz há quase três anos, quando a vi pela segunda e, até ontem, última vez, no Fogo do Cerrado de 2010. O tempo passou, o impacto se diluiu no sangue e eu fiquei aguardando outra chance, desalentado com o boato de que a – em minha modesta mas convicta opinião – melhor banda de rock do Brasil havia acabado. Mas o boato era falso: Dimitri vive, e, mesmo ligeiramente fora de forma, fez ontem, aliás, hoje, outra apresentação memorável no já histórico BarFly.

Sempre que vejo a banda de Maíra Espíndola e Jean Albernaz (os demais não são meros acessórios, mas giram em torno deles) se apresentar, fico dividido entre a entrega ao som massacrante – um psychoprogpunk ao mesmo tempo experimental e visceral –, principalmente aos tambores exatos e furiosos de Jean, Boham redivivo, latinizado e africanizado (mas há também a fusion baixo-guitarra-tecladística: potente, psicodélica e meio espacial-progressiva), e a atenção às letras e “performances” não menos arrasadoras de Maíra.

Arrasadoras é pouco: as “performances” de Maíra, seu strip acintoso, seus discursos ácidos e enfezados, cantados ou não, são verdadeiras esquizoanálises, catarses apocalípticas que expõem em carne viva a falsidade, a mediocridade e o comodismo de todos nós. A ovelha negra da “família-música” do Mato Morto não é só o avesso dos Espíndola, mas um cuspe na cara maquiada e ostentosa da cidade dita Morena, ou melhor, das grandes e universais mentiras humanas que nela se espojam. Não é à toa que desperta a crassa estupidez de alguns, provavelmente zelosos de algo de que no fundo duvidam.

Jean "Bohan" Albernaz
Mas em cada grito de Maíra, em cada acorde pulsante-obsedante de Dimitri, vibra a esperança encarnada: mais que desnudar, incendiar, cuspir na cara da Morena, libertá-la, e a tudo que vive e se deixa prender nela. Por isso, em nenhum show se dança como nos shows de Dimitri: com tanto amor e fúria ao mesmo tempo. 

Enfim, Dimitri vive – e que seja eterno enquanto viva. Para além disso já é. 

Pra quem não conhece, um registro incendiário:


Essa madrugada de 6 para 7 de setembro, mas já em plena data “libertária” (que, aliás, Maíra fez questão de “celebrar”), ainda teve como fecho outra big band bigfieldense: a Gopstopper, com suas letras e melodias belíssimas mas sem enfeites, exigentes de uma atenção que também nesse caso, como em todo bom rock, conflita com o som vibrante: a bateria firme de Leco, o baixão solante de Marcel Ribeiro e a voz grave, falada-cantada, de Elizeu Nico. O desafio de unir potência e beleza; potência sem brutalidade, certa gravidade oitentista (mas também, sem dúvida, loshermanística): é que me passa o som dos Gobstoppers.

A banda que abriu a noite, e que eu vi pela primeira vez em formação completa, alcançou algo parecido em seus melhores momentos, por exemplo na versão metalizada de “Tutti Frutti”, de Little Richard. Faltou o Steppenwolf, que eu queria ouvir a Maíra gritando junto: BORN TO BE WI-I-I-IIILD...


Falando em gritar, enquanto eu começo esse texto provavelmente ocorre o Grito dos Excluídos no desfile de 7 de setembro. Não estou lá, mas estou com eles.