VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

sábado, 25 de junho de 2011

É pra Jah! (notícias (cá) do mundo austral)


Preciso escrever logo este post, antes que ele se esfume de vez na minha cabeça. É verdade que tenho aqui comigo o cd dos Thompsons, mas, como cheguei a dizer, em meu be(a?)st english, ao baterista da banda (olhando o dvd que, com certeza, ele tinha esperança que eu comprasse, e que aliás me arrependi de não ter comprado): "it's not the same thing!". Um show do Jarrah Thompson, como eu tive a chance de presenciar mês passado em São José do Rio Preto, na fantástica Vila Dionísio, é uma experiência única. Queria entender minimamente de música para tentar descrevê-la com mais do que palavras vagas e impróprias, mas, enfim, faça-se o que se possa.

(Um parêntese para me queixar pelo fato de nenhum professor de português ter se queixado da ausência de Jânio Quadros no post que lhes dediquei (aos "quadros", quero dizer) outro dia.)

Confesso que, quando cheguei diante do palco (eu vinha do banheiro, de onde tinha ouvido uns acordes introdutórios, acreditem (eu tentei não acreditar), de flauta) com a tão anunciada e badalada "banda australiana", tive vontade de ir embora. À esquerda (não é a foto que ilustra o post), um sujeito moreno e grandalhão, de olhos fechados e voltados pro espaço, tirava uns acordes esparsos do baixo. Ao centro, outro "viajandão", meio baixo e meio loiro, com o ar que me pareceu o mais anódino do mundo, emitia uns vocais agudos e pilotava uma guitarra com inverossímil pose de hero. À direita uma moça linda, com ar de deusa nórdica, portava, ou tocava, não me lembro, a tal flauta, mas com tal expressão de boba alegre que nem ela me comoveu. Atrás, outra beldade, loira, causava uma pequena barafúndia percussiva, em comum desacordo (assim me pareceu, à primeira e má audição) com um baterista que eu nem havia me dignado a procurar.

Mas o Jarrah Thompson é uma dessas bandas com uma frequência, ou um tônus, muito particular, que exige mais do que ser contemplado, ainda que com os ouvidos, para se dar a conhecer. É como Ramones: é preciso engrenar para que funcione. A diferença é que aqui a engrenagem é muito mais sofisticada, muito mais rica de experiências melódico-sensoriais. Mas olha o abstratão operando aí.

Indo, então, ao concreto, o que posso descrever (isto não é, lembre-se-me, uma autobiografia) é o seguinte: uma guitarra e uma flauta operando numa espécie de afinação ou, sei lá, lógica transcendental; um par, ou trio, ou sei lá o quê de vozes funcionando em perfeita (trans)afinação com as primeiras e uma maquinaria de base igualmente em perfeito entrosamente, mas, mais do que meramente lhes servindo, criando, viajando junto com elas.

Pois não só a guitarra e a flauta e a vozes de Mr. Thompson e Miss Asha Henfry solam e se costuram de formas não tão virtuosísticas quanto inteligentes e inusitadas, como também o fazem o baixo de Bruno Padoveze, repleto de meios-tons densos que introduzem simultaneamente mais peso e riqueza e estranhamento melódicos à eletrovertigem de Thompson, e a bateria de Chris Cameron, de uma precisão, um virtuosismo e, sobretudo, uma alegria igualmente regida, tem-se a impressão, por um princípio transcendental, no qual a percussão da lorinha Bianca Aviaz (ausente na foto) já atua o tempo inteiro, transcendida. Isso quando as duas, Asha e Bianca, não se lançam numa dança frenética que deveria envergonhar os paradões lá de baixo.

Por isso, de fato, tudo ali (não apenas Mr. Thompson) é Jarrah Thompson, seja lá o que for isso. Lembro de algumas sínteses que me baixaram na segunda música, assim que ela me fisgou: um AC/DC psicodélico. Um Led ultraelétrico, sem Bonham e sem pausa pra respirar. Um Jethro Tull pós-moderno e muito, muito (nada contra os barbudos, garanto!), mais lindo(a, bem entendido).

Mas é preciso, sim, prestar tributo a Mr. Thompson, ao menos se for dele a autoria das canções - digo, das músicas (até porque as letras não as entendi então e nem tento entender agora - deixo isso para meus críticos nacionalistas, goianos ou paraguaios). Pois é daí que deriva, de fato, todo o resto, ou seja, a aliança de experimentação e harmonia a toda prova, de estranhamento que, ainda à beira da dissonância, não deixa de insistir, um segundo sequer, em sua insistência rítmico-melódica. A redundância é inevitável, pois é a própria lógica da coisa: é como se se quisesse sempre mais: neverstopem, neverstopem, pedem-se mutamente as jahvozes e os jahinstrumentos; e quiçá seja mesmo assim, enquanto puder ser.

(Aliás, "australiana" vírgula (porque o Bruno é irmão do Marcelo Camelo, tenho quase certeza): brazucaustral, eu diria, se "caustral" não soasse tão, digamos, claustral (para não dizer coisa pior), sendo que o Jarrah Thompson é o contrário, ou quase, disso: é missa a céu aberto.)

Fuce algo aqui:


domingo, 19 de junho de 2011

A Demanda da Espiritualidade Perdida


"Se Deus não existe, tudo é permitido."
Dostoiévski

"O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disso."
Walter Benjamin

O filme Nostalghia, do cineasta russo Andrei Tarkovski, revela uma outra realidade dentro da realidade dos homens comuns. É um universo utópico, um não-lugar, paralelo ao mundo ordinário. À semelhança dos romances de Dostoiévski, retrata um novo mundo que está por nascer, sobre as ruínas do antigo. Um mundo que está ainda em estado embrionário, surgindo lentamente por sobre as névoas deste tempo sombrio que quer abortar o novo que está surgindo.
A modernidade capitalista , que teve sua gênese na Itália, está sendo substituída, por um tipo de sociedade que ainda não possui uma configuração clara. A chama da fé cristã é passada do povo italiano para o povo russo, o novo portador da esperança utópica, de uma humanidade liberta da escravidão do materialismo suicida do capital.
Esperança que havia se apagado durante a ditadura stalinista, mas que volta a reacender-se pelo contato com a fé italiana. Uma fé que está se extinguindo na Itália moderna, simbolizada pela personagem Eugênia, mas que luta desesperadamente, como o personagem Domenico, para que esta chama seja levada adiante, para que não morra sob o escombros de uma civilização que está desabando.
Como profetizara Dostoiévski, A Rússia se tornaria o farol do novo mundo. Sua obra representa este sonho utópico de uma humanidade redimida de todas as suas atrocidades. Cabe aos loucos, aos poetas, aos místicos, a missão de carregar esta chama utópica de uma nova humanidade.
No mundo dos normais, a maioria está preocupada em aumentar sua felicidade individual, prolongar sua vida, preservar a juventude. Como o sistema do capital, as pessoas não querem envelhecer, não querem morrer, presas ao prazeres materiais que se multiplicam a cada dia, seduzidas pela propaganda, pela medicina, pela indústria famacêutica e de cosméticos. Enfeitiçadas pelas promessas de uma eterna e permanente felicidade, por um gozar da vida ininterrupto, elas se lançam no jogo fratricida da competição capitalista, para gozar das delícias oferecidas pelo mercado.
Numa cena antológica, Domenico, depois de ser retirado de seu cativeiro, que ele impôs a si e sua família para esperar o juízo final, corre atrás do seu filho, talvez para impedir que a criança entre em contato com este mundo dominado pelas trevas da sua própria decadência. Seu filho pergunta, nas escadarias de uma igreja, se ali era o fim do mundo.
Os fatos da nossa realidade contemporânea talvez respondessem que sim. Um mundo onde o Prêmio Nobel da Paz ordena ataques aéreos que matam crianças e mulheres indefesas, com a justificativa mentirosa de defender o mundo da ameaça terrorista, ameaça criada pelo governo do país que ele preside; um mundo onde as crianças são cercadas pela violência, pela fome, pelas psicoses, pela miséria, pela pornografia, pelo consumismo compulsivo, por parentes e religiosos pedófilos, por autoridades corruptas e depravadas; por drogas lícitas e ilícitas de todos os tipos. A resposta de Domenico e de todo pai preocupado com sua família não poderia ser outra: de que já estamos no fim deste mundo dominado pelo vampiro do capital.
É preciso atravessar o pântano moral, no qual nos encontramos, com a chama da nossa humanidade protegida da tempestade que sopra do abismo do esquecimento.
Na crise da humanidade humanidade européia, da qual fugimos, que fingimos não existir, ou quando percebemos, procuramos soluções individuais, Deus está sempre falando ao homem, mas ele se fecha em seu racionalismo, em seu orgulho. Só os santos e os loucos ouvem a voz de Deus. A criança encarna a luz do novo mundo.
Benjamin identifica o progresso capitalista com essa tempestade do abismo, que vem do passado, acumulando ruínas sobre ruínas. A história humana, ou pré-história para Marx, é uma sequência de catástrofes e segundo Benjamin, até a natureza, se lhe fosse dada a palavra, teria muito o que lamentar. Para Kafka o estado atual da civilização não se diferenciou quase nada do de um lamaçal. O homem ainda chafurda na lama à semelhança dos seus ancestrais barbáros. É uma barbárie racionalizada, com uma violência burocratizada, consumada pela máquina do Estado, perpetuando a bestialidade humana.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Educação + política = dignidade: uma equação possível?

Há muitos anos, quando eu era estudante de graduação, organizei, com a ajuda de uns poucos colegas (lembro-me, apenas, da Lucilene, então minha namorada, e de outra amiga do CA de Letras, a Ângela, além de minha "adversária política" Eliany Salvatierra) e, sobretudo, do então diretor do Centro de Ciências Humanas e Sociais da UFMS, um seminário sobre a realidade e as perspectivas dos cursos de licenciatura e do "exercício do magistério" (como então se dizia). O desenho acima, bolado por mim e realizado pelo Tito, da antiga assessoria de imprensa da UFMS (e que eu tomei a liberdade de recontextualizar), ilustrava o folder do Seminário.

Foi um evento bastante problemático, sobretudo devido à minha inexperiência, e uma das situações mais criticadas pelos participantes foi uma palestra conferida por Antônio Carlos Biffi, então sindicalista na área da Educação e eterno candidato a algum cargo eletivo na política estadual. Que eu me lembre, a fala de Biffi, que tinha fama de fisiologista, foi basicamente uma apresentação de estatísticas detalhando a condição de exploração e penúria dos professores dos níveis básicos. Nenhuma abordagem teórica; apenas a exposição de dados crus, talvez manipulados de acordo com as conveniências; nada em todo caso, cujo conhecimento e, mais ainda, discussão fossem desprezíveis.

Seja como for, a experiência desse evento me levou a uma dupla decepção: com a área educacional e com a política estudantil - e, por extensão, com a política em geral. Não por aquela situação específica, mas sobretudo pela falta de apoio de professores e dos colegas, inclusive do DCE, do qual eu era membro. Foi, em todo caso, quando decidi ser um "teórico da literatura", talvez me esquecendo que a sina de professor era praticamente inevitável e que, enfim, somos todos animais irremediavelmente políticos (o Delfim, aliás, devia ter acrescentado isso em seu comentário sobre as empregadas domésticas).

O fato é que há muito tempo eu não tinha notícias do Biffi, até que recebi, ontem, um e-mail, do jornalista e colecionador de receitas vegetarianas Éber Benjamin, a respeito de uma intervenção do agora deputado federal petista no Fórum do Meio Ambiente sobre a votação do novo Código Florestal na Câmara. Biffi, esclareça-se (e termine-se o suspense), foi o único deputado do MS a votar contra o código, e apresentou uma avaliação que apontava a importância de elementos político-partidários - relacionados sobretudo às denúncias contra o ex-ministro Palocci - no resultado da votação.

É bem provável que esse posicionamento e essa avaliação tenham a ver, ao menos em parte, com questões de política partidária, inclusive com divergências entre as tendências internas do PT. Ainda assim, considero o voto de Biffi um gesto acertado e corajoso, ainda mais em vista de sua exclusividade na bancada estadual (o outro petista da bancada declarou voto favorável ao Código mas estava ausente na hora da votação). E felicito-me, sobretudo, por ele advir de um político que iniciou sua atuação na área educacional; o que me faz ter a esperança de que essa relação, entre política e educação, ainda seja capaz de produzir frutos diferentes de tantos que temos visto por aí. Mesmo porque essa é uma relação não só necessária como inevitável. E em nenhuma outra é mais necessário, por uma questão de coerência mesmo, que ela tenha por base princípios honestos e efetivamente transformadores.

Escrevo tudo isso consciente do quanto pode haver aí de ingênuo. Não se trata, ademais, de qualquer tipo de publicidade, ainda mais em vista da recente e pouco interessante, para decepção de muitos, trajetória política de um conhecido escritor e "educador" - em todo caso, de ampla aceitação entre educadores - de São Paulo. Em todo caso, talvez um dia alguém escreva a história da relação entre política e educação, ou melhor, dos políticos educadores, sopesando as ações positivas e negativas, honestas ou desonestas, ingênuas ou tendenciosas, felizes ou desastrosas de gente como Darcy Ribeiro, Marilena Chauí, Cristóvão Buarque etc. Tomara que, ao menos depois disso - quiçá, antes ainda, quiçá já seja assim em alguns casos -, a imbricação das palavras em itálico dignifique o que cada uma tem ou pode vir a ter de melhor.

Voltando à explanação do Biffi, acredita o quiçá sincero deputado que o destino do Código Florestal pode ser outro no Senado, também por questões de configuração político-partidária, que são, ao que parece, o que mais importa na política deste país, a ponto de reduzir essa nobre palavra a essa relação estreita. Em todo caso, segundo essa avaliação, ainda é tempo para desfazer e refazer o quadro - a meu ver nada alentador - ora esboçado, de onde meu pedido de continuidade da divulgação do texto sobre o assunto aqui publicado.

A matéria enviada pelo Éber é de autoria do Centro de Documentação e Apoio aos Movimentos Populares do MS, cujo e-mail é cedampo@terra.com.br. Para quem mora em Campo Grande: o Cedampo e o Fórum incluíram a bandeira ambientalista na Marcha da Liberdade, dia 18 próximo, com saída da Praça Ary Coelho às 9 da manhã.

domingo, 12 de junho de 2011

Vênus vive viva Vênus


Mais uma "dica cultural", agora cinematográfica, à guisa de post emergencial (e acrítico... ou não, porque o amor é, em mais de um sentido, o mais crítico dos gestos e sentimentos). Pelo menos é adequado à data, embora os casais mais jovens - ou melhor, insensíveis - possam se decepcionar. Porque Vênus, de Roger Michell, é mais um desses filmes sobre o amor ser maior que a morte, mas de uma forma em que essas palavras quase mutuamente anagramáticas se enlaçam como nunca: sem sangue, sem declarações, sem sexo, sem jorros de espécie alguma. Bem, os estudantes e profissionais das letras creio que não irão se decepcionar, pois só ver Peter O'Toole recitando Shakespeare já vale a pena.

Dessa vez não dou nenhum link, mesmo porque o filme ainda pode ser encontrado, em qualidade melhor que a dos posts, na maioria das locadoras.

"O amor é uma flor roxa que nasce nos corações dos trouxas", alguém me dizia há muito tempo lá em Corumbá. Que vivam então as flores roxas, pois também elas lembram que o amor é maior que a morte!

Ps: Para os mais jovens, uma dica complementar - insipirada na de uma fã (não minha, mas magnética ;):

http://www.youtube.com/watch?v=590RrSf-NPY
(ouça no volume máximo!)

Para uma excelente descrição da experiência sonora do J.M., cf.: http://estudioaovivo.wordpress.com/author/laramarx/


"meu amor, nosso amor é uma questão de evolução..."