VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

domingo, 23 de dezembro de 2012

Holandês Voador, 21/12/2012: acabar não acabou, mas bem que começou...


Alguém já notou como os numerais do título aí em cima podem ser lidos como um, digamos, anagrama numérico para o famigerado 666?... 2+1, 1+2, 1+2, cada um vezes 2? (Principalmente se você inverte: 2012/12/21; afinal, o zero é um tipo de multiplicador, não é?) Eu só notei agora, e confesso que fiquei meio incomodado... Não deveria, porque anteontem, em algum momento lá no Holandês Voador, se não me engano no showzaço do Strangers, eu ordenei o despejo de todos os meus demônios... Mas quem disse que esses despejos se cumprem assim, de uma vez?... Quem disse que as coisas acabam de uma vez?
Mas que 21 de dezembro de 2012 (atenuemos o monstro) foi uma data especial, foi com certeza. Tenho dessas certezas quando “tudo” (tempo, ônibus, condições físicas) conspira para que eu não vá a algum lugar, mas uma força maior ainda, e que também não é exatamente a vontade própria (porque eu estava cansado pra’ca, e achava que o “rolê” já estava quase no final quando saí de casa), acaba me levando. Foi assim no show H.C. que vi no finado República, do qual falo nesse outro post (onde, aliás, termino mencionando o Holandês), foi assim agora, no “fim do mundo no Holândes Voador”.
Minha obsessão era ver O Lixo e a Fúria, a banda do George, o “cara do bar”, e da grana, e dos cigarros soltos, e que é, ao lado do Enrique “DxDxOx  & Jäpüräh Nöise” Gonçalves de Souza, o detonador cultural mais importante do rock bigfieldense (pelo menos dos que eu conheço), e, como ele, compositor e vocalista de uma das bandas mais importantes daqui (duas, no caso do Enrique). Explico a obsessão: vi um ensaio aberto d’ O Lixo na única vez em que entrei no antigo Holandês, que era um muquifo muito mais punk (trash, na verdade) e um pouco menos longe de casa, mas em que nunca calhou de eu ir em dia de festa.
Mas, enfim, ali mesmo, pelo pouco que vi, fiquei fã do George e sua trupe, vidrado na energia visceral e vitalíssima, de par com um tipo de conceitualismo ou experimentalismo que eu só pude entrever, pelo pouco que entendia das letras e pelo tipo de variação musical e vocal de uma canção pra outra, às vezes na mesma canção. 
Pois é, a despeito do nome que, digamos, suja um pouco mais a frase de Hamlet, as canções d’O Lixo e a Fúria são de um tipo que se pode chamar assim, sem problemas. A banda de George faz algo que eu não chamaria de punk rock (nem, como em outros casos, punk pop), mas um punk’n’roll. “Vamos tocar um pouco de rock’n’roll”, anunciou Jorge; e antes daquele ensaio, quando eu perguntei se a banda era punk, ele completou: “É, punk e mais um monte de coisas”. Por aí.
Se é pra tentar uma descrição, eu diria que O Lixo e a Fúria é constituído por uma batera e um baixão cada vez mais ferozes, uma guitarra fantástica, de timbre ao mesmo tempo altissonante e rascante (como nos melhores Pages e Towshends), e a grande voz-presença de George, verdadeiro monstro, hero, sensual ou hedonista que seja, mas autêntico no brilho dos olhos, nos gestos raivosos ou “insanos”, no pezão descalço querendo detonar o palco de seu próprio “estabelecimento comercial”...
O fato é que O Lixo e a Fúria transpira, aliás, vomita energia e “atitude”: raiva, ironia e, acima disso tudo, rebeldia e inteligência. Recusa da vida-em-merda e paixão pela vida, pelo som, pelo rock, pela hora sagrada que é esse vomitório. Só vi outra banda unir tudo isso com tanta força e intensidade: a Dimitri Pellz encabeçado por Maíra Espíndola, vocalista com a qual, aliás, eu tive a petulância de comparar o George, sem que ele ficasse chateado para além da obrigação de admitir a inferioridade nos dotes físicos... 
(Mas a Dimitri tem outro acabamento, meio progressivo, que, apesar da monstruosidade baterística que é Jean Albernaz, vai um pouco menos na veia, e o polemismo verbal da Maíra é tão admirável quanto, às vezes, sacal... Mas tudo bem, o de Renato Russo também era, e nem por isso era menos fundamental. Tudo isso entre parênteses porque comparações são sempre nocivas... produtos, embora talvez ainda necessários, desse mundo que morre.)
Mas O Lixo não foi o único acontecimento dessa noite, e de outras que já presenciei no Holandês, e sobre as quais não escrevi de pura preguiça (e descrença nesse blog fuleiro). Pudera ter conhecimento musical ou pelo menos vocabulário técnico pra dar uma ideia dessas experiências sonoras, mas não posso registrar mais do que impressionismos. Como isso depende da (fraca) memória, restrinjo-me a anteontem.
Da primeira banda (depois acrescento uma ficha técnica nos comentários), que eu já peguei no final, só me ficou a imagem de um batera que me lembrou, no tamanho e (talvez por isso) no estilo, o Pete Davis do grande U.K. Subs, além da impressão de um bom punk rock; assim como de outra (a quarta?), que tocou ótimos covers dos Ramones, Mistifs (que não conheço) e punks nacionais oitentistas; e uma outra, ainda, de sonoridade mais burilada, um batera monstruoso, à la Dave Grohl, e energia mais positiva; e uma garota (mãe de uma Júlia que, obrigatoriamente, me fez lembrar outra) que em algum momento assumiu uma guitarra e o vocal pra berrar “repúdio!”; e, antes disso, um trash (grind, segundo o Artur, o rei-batera do Japuräh) agressivo mas também burilado por uma batera feroz e um baixão idem e solante, a cargo de um tal Goliardo (segundo o próprio, um nome de origem anarquista); e, em outro ápice que antecedeu o d’O Lixo, a Strangers, com outro vocalista carismático e de ar iluminado e um instrumental firme, coeso e poderoso, tocando covers de obras-primas do metal e belas canções próprias. 
Falei em “ápice” mas realmente não quero fazer comparações. Em alguns estilos o perfeccionismo técnico é quase obrigatório, em outros o mais importante é obter um entrosamento que permita engrenar a energia mais visceral possível. E cada coisa diz mais à ideia e ao sentimento de cada um. Admirável, aliás, a despreocupação com que Jorge deixou que um cara talvez meio deslocado ali (mas responsável por um verdadeiro show de break no meio do pogo) também se apoderasse do microfone pra cantar coisas que, bem ou mal, incomodaram muita gente. 
Em certo sentido, portanto, a apresentação mais punk da noite, e de um dos poucos, ali dentro, que talvez tenha alguma coisa a ver com “Garoto do subúrbio” (dos Inocentes, que uma das bandas punks tocou). O único que teve coragem de tirar a camisa, e o de olhar mais raivoso, afora quando tirava as garotas pra dançar.
“O começo do fim do mundo”, todos sabem ou deveriam saber, é o nome de um evento e um disco punk memoráveis, ocorridos nos idos dos anos oitenta... Nesse 21/12, tenho certeza, o mundo começou a acabar um pouco mais. No dia seguinte (ou melhor, no 23 já em curso), foi ou seria noite de Lobisomens, mas eu mesmo estava mais morto que vivo, e agora eu só posso imaginar o que seja o punk-samba-jazz que me descreveram. Pena, mas, para o bem e para o mal, as aberrações andam pululando nesse campo velho de guerra... 

Sim, lixo e fúria. E vice-versa.
Bônus tracks:
"Garoto do subúrbio", na primeira versão dos Inocentes
(Dedicada ao cara em destaque aí em cima, ao José “Flip” lá na Moreninha e, descontado o “garoto”, a mim mesmo aqui na Coophasul.)
Esta é especialmente pro George: 
Ira, "O bom e velho rock’n’roll"
Nota póstuma: a propósito da palavra “atitude” (que eu também ouvi naquela noite, salvo engano do baixista d’O Lixo, ou do meu amigo José “Flip”), um grande professor, Antonio Arnoni Prado, certa vez a depreciou lembrando uma (esta sim) famigerada propaganda do Danup... Se pudesse, hoje eu responderia o que pensei em responder naquela hora: Arnoni, foda-se o Danup! Seria uma bela atitude, hehe.