VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

Para sempre Vaga-Lume
(entrevista com Antônio do Amaral Rocha)

Quem teve a sorte, na infância ou na adolescência, de conhecer a coleção Vaga-Lume, da editora Ática, dificilmente hoje não é grato por isso. Ao lado de alguns poucos outros livros inesquecíveis, como A Morada do Anjo da Guarda, da Condessa de Ségur, e Memórias de um Cabo de Vassoura, de Orígenes Lessa, foram os da Vaga-Lume que não só me incutiram o gosto pela leitura como começaram a moldar esse gosto. De todos eles, o meu preferido era O Mistério do Cinco Estrelas, de Marcos Rey. Ainda hoje eu me lembro da sensação de “ser” o Léo, zunindo pelos corredores do Emperor Park Hotel na expectativa de ganhar gordas gorjetas, até o dia em que... bem, os curiosos que leiam o livro. Em seguida, na minha lista de preferências, vinha O Escaravelho do Diabo, de Lúcia Machado de Almeida. Mais pra frente, Meninos sem Pátria, de Luiz Puntel, me marcou muito, a ponto de me despertar a vontade de também começar a escrever. E, de fato, acabei imaginando, repensando e, afinal, mais de duas décadas depois, escrevendo um livrinho de ficção juvenil que deve sair este ano pela Nankin Editorial, e no qual a influência do livro de Puntel (mas também de Os Meninos da Rua Paulo, de Ferenc Molnár) começa no título: Os Meninos da Colina.

Imaginem, então, minha surpresa ao descobrir, numa conversa a propósito de se pôr ou não um sumário nesse livro, que o sócio e diretor de arte da Nankin, meu amigo e parceiro de outras lidas Antônio do Amaral Rocha, havia sido editor de arte da Vaga-Lume em seus anos áureos. Não bastasse isso, Antônio me informou que O Escaravelho do Diabo foi filmado recentemente, e que ele deu uma entrevista para o jornal Diário do Povo, de Fortaleza, quando do lançamento do filme. Entusiasmado, pedi que ele me mandasse essa entrevista, e quando o fez ele me explicou que ela só havia sido publicada parcialmente. É claro que eu não resisti e pedi para publicar o texto completo nestes pobres e abandonados arquivos...

Além do testemunho pessoal sobre o árduo processo de seleção e edição dos livros, o que mais me tocou no depoimento do Antônio (concedido ao jornalista Marcos Sampaio) foi o tributo ao talento de Marcos Rey, cujos livros realmente renderiam ótimos filmes. Quem sabe a filmagem de O Escaravelho não é apenas o início de uma nova série, dessa vez cinematográfica? Bem, fiquem com as palavras do Antônio, porque eu, pra variar, já falei demais.

Antônio do Amaral Rocha e Lúcia Machado de Almeida
(Belo Horizonte, 1978)

Quando você trabalhou na série Vaga-Lume? Fale da sua relação com ela...

Fui editor de arte da Série Vaga-Lume de 1978 a 1987. Não me recordo em quantos títulos trabalhei, mas foram pelo menos em uns trinta. O trabalho consistia em roteirizar as ilustrações do livro (junto com o editor da área), escolher ilustrador (etapa trabalhosa), aprovar os lay-outs e depois as ilustrações prontas, diagramar o miolo do livro, editar a capa e diagramar o Suplemento de Trabalho.

Como eram selecionados os títulos da série?

Os títulos da Vaga-Lume eram selecionados pelo editor Jiro Takahashi. Mas era uma coisa meio feita em segredo, visto que existia sempre uma grande expectativa sobre as escolhas. O editor tinha um corpo de colaboradores e leitores críticos. O título só chegava a mim depois de escolhido.

Acredito que a série ajudou a formar uma geração de leitores. Depois de extinta, como você vê a importância desses livros para sua época?

Já na época, pelo sucesso nas adoções escolares, a coleção se configurava um sucesso, e também pelas altas tiragens a preços bem acessíveis. Sei que a coleção foi responsável pela formação de uma grande geração de leitores, pois até hoje as pessoas se referem à Vaga-Lume de forma bastante carinhosa e ela tem sido tema de vários trabalhos de fim de curso.

A história de O Escaravelho do Diabo já sugere um bom filme, por ser uma história de mistério. Tem algum outro título que você acha que renderia um bom filme?

Tem diversos títulos que renderiam bons filmes. Acho que todos os da Lúcia Machado de Almeida e especialmente os de mistério de Marcos Rey, a chamada “trilogia Bixiga”, a saber: O Mistério do Cinco Estrelas, O Rapto do Garoto de Ouro e Um Cadáver Ouve Rádio.

Você acha que o filme pode atrair novos olhares para essa série que foi tão importante para a educação brasileira?

É bem provável que o filme consiga chamar a atenção novamente para outros títulos da coleção. Marcos Rey é um dos autores geniais da coleção que mereceria ser mais conhecido.

Com o fim desta série, o que você acha que os leitores mais jovens perderam?

Acho que faz falta no atual mercado brasileiro uma coleção como a Vaga-Lume. Mas também acho que houve à época um acerto editorial que dificilmente se repetiria nos dias de hoje. Na década de 80 existia um espaço para a edição desse tipo de literatura, especialmente essa de cunho de mistério e policial. Não existia nada no Brasil parecido com isso. Hoje acho que a garotada não tem o mesmo interesse por causa da internet, mas posso estar enganado.

Você tem filhos que certamente leram a série Vaga-lume. Quais foram os títulos preferidos deles? E qual era o seu título preferido?

Sim, um dos meus filhos, o Pablo, com 8 anos, era leitor voraz da Série Vaga-Lume. Lembro-me que quando levava para casa uma edição nova, o Pablo a lia de um dia para o outro. Ele era fã da “trilogia Bixiga” de Marcos Rey, e de todos os de Lúcia Machado de Almeida, a trilogia Xisto, mais O Escaravelho do Diabo e Spharion. Disse-me ele que uma das grandes emoções que ele teve foi quando o apresentei a Marcos Rey numa Bienal do Livro no ano de 1986. No meu caso, um dos títulos preferidos da coleção é Sozinha no Mundo de Marcos Rey (veja a curiosidade abaixo), mas isso não significa que eu deixe de lado outros títulos, especialmente os de Lúcia Machado de Almeida, destacando O Caso da Borboleta Atíria.

Você se lembra de alguma curiosidade sobre a coleção?

Dos ilustradores que colaboraram com a coleção naquela época destaco Milton Rodrigues Alves que fez Coração de Onça (de Ofélia e Narbal Fontes) e O Caso da Borboleta Atíria (de Lúcia Machado Almeida). Com esse título Milton inaugurou a inserção de vinhetas ao longo do texto além das ilustrações de página inteira. Outros ilustradores: Mário Cafiero que ilustrou Xisto no Espaço, As Aventuras de Xisto, Spharion e O Escaravelho do Diabo, todos de Lúcia Machado de Almeida. Lembro ainda de Jayme Leão que deu vida aos personagens de Marcos Rey (caso de O Mistério do Cinco Estrelas e O Rapto do Garoto de Ouro). Teve um título memorável que foi sucesso de vendas, fruto de um plano do editor Jiro Takahashi e do autor Marcos Rey. Eles conversaram antes sobre o tema que visava atender ao público juvenil feminino e nasceu Sozinha no Mundo. Foi o primeiro caso de um livro cujo tema foi decidido antes que eu já vi acontecer. Marcos era um craque e em dois ou três meses trouxe o texto pronto. Este foi ilustrado pelo falecido Marcos Sant'Anna. Teve também casos de livros com temas proibidos e revolucionários para a época como Açúcar Amargo, sobre a vida difícil dos cortadores de cana, de Luiz Puntel.

Não era fácil editar qualquer título da Série Vaga-Lume. Por ser uma coleção que gerava grandes expectativas dentro da editora, o trabalho era bastante exigente e rígido. Não podíamos errar. Além do editor da área ainda contava com um sub-editor, o editor de arte e o ilustrador. E o ilustrador tinha que apresentar um lay-out de todas as ilustrações feitas a partir de um roteiro previamente decidido pelo editor da área e pelo editor de arte...