VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

sábado, 31 de dezembro de 2011

Ao que advém





A porta-bandeira

Não pensa em ninguém
Quando está rodando
Nasce para o bem

Deus salve a porta-bandeira
Deus salve a...








Lembro de uma conversa que tive, há muito tempo, com meu grande amigo Júlio Galharte, sobre esses versos de "Porta-bandeira" (Dé Palmeira e Humberto Effe), da banda Picassos Falsos. O Júlio manifestava incomôdo com esse elemento, conforme ele dizia, de partição ou estranheza, no refrão: “Deus salve a...”. Para mim - mas acho que não cheguei a sustentar isso nessa conversa -, o artigo em suspenso não pretende criar propriamente uma estranheza, mas uma apresentação, como que sugerir uma presentificação do que está adiante: a porta-bandeira, que já não é só a porta-bandeira, mas tudo o que advém, e o que quer que advenha.
Mas, discordâncias miúdas à parte, foi o Júlio quem me apresentou esse disco (Novo mundo, o trabalho “tardio”, de 2004, dos Picassos) que se tornou um dos meus preferidos, e me é muito grato que seja essa lembrança que me ocorra agora: pois o Júlio é um das pessoas mais sensíveis e generosas que eu conheço, um bom nome (e por isso gostei tanto quando a Lucilene sugeriu que nossa filha se chamasse Júlia) e, para mim, um bom rosto para se invocar em qualquer momento. Ainda mais às portas de um ano tão agourado como o que se inicia...
Enfim, para além da inevitável e talvez necessária melancolia, um feliz ano novo para todos nós! E meu grato abraço a todos os leitores e colaboradores, constantes ou eventuais, deste blog.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

"Sócrates Eterno" - e (Pedro) Brasileiro

Legenda da foto (de J. B. Scalco): OS DEMOCRATAS – Sócrates, 
acompanhado por Biro-Biro (deitado), Casagrande (ajoelhado), 
Paulinho e Zenon (de bigode) posam para a capa de Placar 
em 5 de novembro de 1982
Que eu me lembre, nunca comprei uma revista Placar. Mas folheei muitas, quando menino, de propriedade do Alan, irmão mais velho do Léo e do Fábio – os três, meus melhores amigos na primeira parte de minha infância em Corumbá, onde cheguei com oito ou nove anos. Com Alan eu folheava as Placar e jogava futebol de botão, com o trio completo arriscava umas peladas no quintal de terra da casa deles, onde o Clarete – amigo do peito de meu pai, ainda dos tempos da Marinha – havia providenciado uns ótimos “golzinhos”. E foi numa tabelinha com o Alan, nas lajotas da velha rua Ladário, que eu fiz o único gol bonito da minha vida, antes de me conformar em, ao invés de tentar fazer, defender alguns e sobretudo tomar muitos gols... Bem, pelo menos nunca fui juiz!

Mas, enfim, hoje eu ganhei uma Placar. Eu chegava em casa com meus filhos e, do outro lado da rua, alguém me chamou: “Ô, amigo”. Era um homem forte e maduro, com bigodes fartos, sentado na calçada e com uma bolsa de viagem ao lado. “Opa”, eu cumprimentei, sem parar, prevendo um pedido de esmolas. Mas ao invés disso ele completou: “Você parece o Sócrates!”. Sempre me “confundem” com Jesus Cristo e Raul Seixas (durante algum tempo, que felizmente já passou, com Gabriel o, sic, “Pensador”), mas com Sócrates nunca havia ocorrido. “Sócrates, o jogador? Obrigado! E você, com esse bigodão, lembra o Toninho Cerezo.” Foi aí que ele se animou: “Eu posso te dar um presente?”. Eu já chegava no portão, onde encaminhei as crianças para dentro, e atravessei a rua.

Do outro lado, surpreso, eu o vi tirar a revista da bolsa: uma “Edição de Colecionador”, com essa chamada, ladeando o símbolo do Corinthians na camisa branca do Magrão: “Sócrates Eterno”. Embasbacado, eu perguntei se a revista não ia fazer falta, e ele respondeu, simplesmente: “Não, eu já li”. Contei e descrevi minha pequena homenagem a Sócrates neste blog, explicando minha condição de vascaíno, e aí ele se ergueu, dizendo que seu braço havia se arrepiado inteiro e que fazia questão de se levantar para me cumprimentar. E declinou o nome completo, do qual minha memória de queijo suíço (é uma imagem do Norman Mailer) só guardou o primeiro: Pedro. Estava ali, sentado, esperando um prato de comida que alguém naquela casa lhe havia prometido (e que de fato logo chegou). Era – aliás, é – natural de algum estado do Norte que, confesso, eu esqueci, e queria, digo, quer chegar – por motivos que não cheguei a perguntar – a São Simão, uma cidade próxima daqui de Caçu.

Eu, que já o havia praticamente obrigado a aceitar, a título de “uma força” (não de pagamento), os doze reais que trazia comigo, me ofereci para “conseguir” uma passagem até São Simão. Corri aqui em casa e liguei para o guichê da empresa de ônibus, mas ninguém atendeu. Consultei a Josy a propósito de oferecermos abrigo àquele desabrigado por esta noite – amanhã eu iria com ele à rodoviária – e ela concordou, mas não tive pressa, e quando voltei à rua ele já não estava lá. Dei uma volta na quadra e necas.

Taí um Pensador de verdade
Em algum momento, dei uma olhada no preço na capa da revista: 10 reais. Minha esmola – não há outra palavra – havia sido não de doze, mas de míseros dois reais. Mas é menos isso (que, afinal, despreza o significado de um presente), e mais o fato de que minha pretensa ajuda no deslocamento do Sr. Pedro seria (quem se engana?) uma providencial solução para um problema – providencial para mim, mas certamente falsa para meu breve amigo –, além de outras coisas que deixo de lado (coisas relativas à proverbial cultura da censura e da desconfiança que acompanha nossas ditas práticas solidárias), que torna essa crônica sobre generosidade e amizade só parcialmente digna da memória de Sócrates Brasileiro ou de uma palavra como Democracia – corintiana, brasileira, verdadeira...

Bem, pelo menos isso é verdade: pareço mesmo um pouco com o Doutor. Bom ou mau, nunca me soube tão brasileiro. Mas não fui eu quem mais honrou esse adjetivo – e esse nome – neste fim de tarde.

Bônus - Além dessas fotos, tomo a liberdade de compartilhar a melhor matéria, a meu ver, do belo presente do meu amigo Pedro: A Democracia se consolida (08/04/1983).

sábado, 24 de dezembro de 2011

O Carneirinho do Presépio

 

O menino observa as pessoas que saem e volta-se para o presépio. Examina-o com interesse. Na missa ouviu que o reino dos céus é das crianças.

Tempestade mental. Se é das crianças o céu e viver no céu é ser feliz, então a felicidade é das crianças.

Olha o presépio. O boi. O carneirinho. Os astrônomos que foram chamados reis — os reis magos. A estrela. Tudo bonito. Tudo. Enamora-se. Bem que queria um desses. O carneirinho. Só o carneirinho. O Menino Jesus, esse não. Tem que ficar no presépio. Presépio sem Menino Jesus não é presépio. O carneirinho, esse sim. Há outros no presépio. Não tivera Natal em casa. Nunca. Não conhece Papai Noel. “Será que Papai Noel me conhece? Sabe de minha existência?”

Na sua frente, o carneirinho cresce, apequena, atrai. Por que o padre falou que o céu é das crianças?

Não ganhou brinquedo e quer o carneirinho. Será pecado? O que é pecado? Para que pecado? Se é verdade que Deus ama a gente, por que ele deixou a cobra dar a maçã para Eva e Eva para Adão para depois todo mundo ter pecado?

Ele quer o carneirinho. Todos já se foram. Ninguém vê. O Cristo, crucificado, parece dormir de cansaço e de dor na cruz, na parede, lá atrás do altar. Parece não se importar com nada ali na igreja. Coitadinho de Cristo. Sofreu muito. Mas por que, se ele é Deus? Ou ele é apenas o Filho de Deus? Se é filho não é pai e se Deus é pai não é filho?!

Coitadinho de Cristo! O padre falou que Cristo sofreu para o perdão dos pecados. Não sei não. Acho que Cristo não sofreu por mim não. Papai Noel não me conhece. Será que Cristo me conhece?!

Esfrega as mãos, nervoso. A decisão. Ergue o braço, mas o gesto fica suspenso no ar com a chegada do vigário que vem fechar a igreja. Para disfarçar a intenção, limpa com o dedinho o espelho que forma o lago nas proximidades da gruta de Belém. Por que presépio em forma de gruta? Cristo nasceu não foi num ranchinho, na estrebaria, casa de animais?

— O Sinhore vai fechá a igreja? — Pergunta ao padre que fecha a primeira porta.

— Estou fechando — Responde o padre, em seu sotaque de estrangeiro, não com aquele carinho com que falou na missa da meia-noite.

— O presepe tá bunito, né? — insiste o menino, tentando coragem para pedir o carneirinho.

— Você acha? — o padre fala indiferente e o menino entende que o vigário não está interessado naquele diálogo, quase monólogo.

— Acho — termina o menino, desconcertado, infeliz. Percebe que de nada adiantará insistir. Não vai ganhar o presente.

Absorto nos sonhos, fica a olhar o presépio sem nada ver.

“Como eu queria um carneirinho desse!”

E o vigário o acorda para a realidade:

— Vamos embora, dormir?

— Vamo.

Volta-se e ainda dirige um último olhar para o carneirinho do presépio, um ente querido que talvez jamais voltará a ver. O padre fecha a última porta e se vai.

O menino, agora com medo, corre debaixo da madrugada em direção ao aconchego que o espera debaixo da ponte, onde se juntará aos pais e aos cinco irmãos menores. Dormem. Não veem a fome, não sentem nenhum desejo. Enquanto dormem, os sentidos nada reclamam. Ele sonha com o presente de Natal que não ganhou: o carneirinho do presépio.

José Faria Nunes

O autor, em outro momento de inspiração natalina

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Ética capitalista - e "natalina" - a custo módico

Esta eu não sei se é bem uma dica natalina "para toda a família", mas como esse filme tem circulado muito por aí, achei que talvez fosse oportuno falar sobre ele. O melhor amigo do Papai Noel não é o pior filme sobre o Natal que já se fez, mas, sendo um filme da Disney, tampouco poderia ser o melhor. É, como se diz, "bonitinho", e recheado de boas intenções - mas quem leu a Comédia de Dante desconfia que aquele ditado sobre o inferno estar cheio delas pode ser verdadeiro.

O que o filme tem de mais interessante - fora os cachorros e as crianças, além de um Papai Noel estranhíssimo mas que afinal se mostra até simpático (principalmente quando se torna um mero empregado...) - é o que tem de mais suspeito: sua ética "natalina" do "lucro mínimo", bela e tremenda falácia "dickensiniana" em plena era de capitalismo globalizado.

Mas nesses dias em que se publica até manuais de inciação à economia financeira para crianças, essa é uma chance para confrontar as nossas com uma questão, digamos, econômico-filosófica, aliás semelhante àquela outra, de certa bolacha "fesquinha" e intragável: o lucro mínimo é o mínimo ou o máximo da ética capitalista?

Não gosto muito de indicar links de filmes, os quais afinal envolvem custos enormes de produção, direitos autorais, trampo de um monte de gente etc., mas afinal é quase Natal, e além disso a Disney com certeza já obteve com este o seu lucrinho.

Fica ao meu leitor o custo módico da energia (própria e da natureza) e do tempo de trabalho dispendidos, em benefício sabe-se lá de quem, além da ideologia em jogo, é claro. Mas esta é sempre discutível.


P.S.1 - Para todos os fins, isto é só uma dica crítica documentada. Para fins de entretenimento, o filme, que é de 2010, ainda está disponível nas locadoras, com qualidade superior etc. All riiight?!

P.S.2 - É o segundo post seguido em que falo (e ilustro com imagens) de cachorros. Penso que é o caso de explicar por que não dedico um post ao caso da enfermeira que matou o yorkshire na frente do filho pequeno. É menos por pudor diante de um drama afinal humano - e menos ainda por julgá-lo insignificante, triste sintoma que é desse estado de guerra endêmica que vivemos - do que pela questão de um acúmulo arquivístico e de uma prática analítica da barbárie que eu não quero estimular; não, pelo menos, na forma de ritos discursivos e judicativos que passem ao largo dos fundamentos desse estado de coisas.

Acréscimo em 24/12 - Eis um texto que diz mais ou menos o que eu penso a respeito do caso do yorkshire: Comoção canina, de Michel Blanco. Postei esse comentário na página: "Michel, parabéns pelo bom senso. Sou apaixonado por cães, mas não vejo sentido em fazer disso mais um alimento para a demência coletiva. E acho, mesmo, que a verdadeira dignidade que se pode dar aos cães, num futuro provavelmente distante, não é humanizá-los e mimá-los cada vez, mas libertá-los da NOSSA necessidade de tê-los ao nosso lado, para fins de compensação afetiva e de catarse...".

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Quem disse que os cães não cantam?

 

Este não é um blog de postagens de discos, mas acho que não compartilhar algumas das pequenas grandes descobertas que faço em blogs desse tipo seria muito egoísmo. Ainda mais às vésperas do Natal... Sou extremamente grato ao Earls Psychedelic Garden por me apresentar essa banda da qual, há alguns dias, eu sequer havia ouvido falar: The Radiators from Space, uma banda punk/pós-punk irlandesa da segunda metade dos anos 70, antes que seu líder e vocalista Phil Chevron se tornasse guitarrista dos impagáveis The Pogues.

Quem seguir a ordem dessa coletânea fantástica vai conferir como Chevron & cia. “evoluem” de um punk skazeado, melodioso mas primal, para sons quase inclassificáveis. E isso no espaço-tempo de apenas dois discos (o segundo, inteiro na coletânea). The Clash parece ser a influência básica dos radiadores – que, aliás, depois participaram de um tributo a Joe Strummer -, mas a principal diferença, a meu ver, é a grande afinidade com a surf music, inclusive nas melodias, simples mas que talvez não desagradassem ao eterno beach boy Barry Wilson, e não raro devidamente duplicadas ou adornadas por duos e corinhos.

O resultado geral, às vezes, é meio espalhafatoso, como na barafúndia de “Confidential”, mas mesmo aí a qualidade harmônica, a segurança rítmica e uma energia avassaladora garantem uma sonoridade interessante - uma potente viagem esquizodélica. Quando a pegada é mais básica, como em “Johnny Jukebox”, ou quando o vocal é mais sarcástico, como em “Kitty Ricketts”, percebe-se que a veia meio vira-lata do início nunca se perdeu.

O que me faz lembrar da minha banda brasileira de psychobilly preferida, aliás, uma de minhas bandas oitentistas preferidas, os Kães Vadius. Já tive a chance de discutir, por e-mail, minha preferência quanto aos dois discos da banda com seu mentor e vocalista, o ignóbil Hulkabilly, e ainda não abro mão de minha opinião: precário, mal gravado que seja, o début Psychodemia é, para mim, um clássico absoluto.

O lado “conceitual” do disco - ou seja, o enredo que suas letras costuram, e que o próprio Hulk plasmou, no encarte, numa HQ igualmente “clássica” - serviria de pasto para uma análise das torpezas (i)morais dos anos 80 (mas não sou eu quem vai fazer isso; não agora, pelo menos). Quem acha as letras do Camisa de Vênus ou dos Velhas Virgens sexistas é porque nunca ouviu os Kães - e, no entanto, o som, "pirado e veloz", é também delicioso: corinhos envolventes, guitarrinhas lisérgicas, sax pulsante - um osso suculento!

Ficam aí, então, esses dois presentes natalinos, pra quem não tem medo de pelos, sarna, mordidas e lambidas. Aliás, presentes não muito natalinos, mas pelo menos eu não postei "Papai Noel, velho batuta", que diz umas tristes verdades sobre o Natal. O que me dá o ensejo para, assim como comecei, terminar com um, agora, sublimemente vagabundo Norman Rockwell (ladeado por um menos conformado Hulkabilly).



(gracias ao grande Hulk!)

                  

sábado, 17 de dezembro de 2011

Não há genérico que sane esses males

“E nesses dias tão estranhos, fica a poeira se escondendo pelos cantos...”. Por muito tempo, essa canção da Legião Urbana, “Teatro dos vampiros”, foi a minha canção preferida, ou melhor: a “minha” canção. Quem viveu conscientemente os anos 90 certamente entende o motivo. “Vamos sair, mas não temos mais dinheiro; os meus amigos todos estão procurando emprego.” Quantas palavras sintetizaram com tanta propriedade o que foram esses anos quanto esses versos de Renato Russo, que eu estrago transformando em prosa?

Em 1995 eu tentava terminar o curso de Letras na UFMS, em Campo Grande. Minha namorada, Lucilene, estava grávida e eu precisava arrumar um emprego. Não era nada fácil, e qualquer coisa servia. Uma amiga, Débora, chegou a me ajudar a procurar uma vaga de frentista em postos de gasolina. Consegui algo melhor – revisor de um jornal semanal, o JBC, que pelo menos tinha uma página cultural com a qual eu também contribuía –, mas se não fosse a Dé acho que eu teria desistido.

Também trabalhei em outros “órgãos de imprensa” locais, felizmente sem assinar carteira, e mais tarde – depois de quase aceitar um bico rentável mas agourento numa campanha eleitoral –, fui para a imprensa sindical. Fazia os boletins do Sindicato dos Telefônicos e, depois, dos Eletricitários, onde assisti, no fundinho dos bastidores, a imposição dos PDVs, Planos de Demissão “Voluntária”, ou seja, as demissões em massa que visavam tornar as empresas mais "atrativas" para o sacrossanto mercado.

No centro de Campo Grande, a Praça Ary Coelho era um sinistro jardim de retirantes e desempregados, tentando se esquivar dos olhos da polícia, que aliás logo iniciou uma “política” de despachamento instantâneo, na rodoviária mesmo. Já o entorno desta, antes da “limpa” feita pelas autoridades, era um reduto de jovens viciados, muitas vezes crianças, vagando como zumbis (eram como os chamava meu amigo Sebastião) na busca desesperada por crack ou pasta-base, terminando a noite encolhidos nas calçadas, esquálidos e exaustos.

Foi na Ary Coelho que eu vivi uma experiência única – tola mas significativa – em minha vida. Perguntei a um cidadão, provavelmente desempregado, se ele podia me informar as horas, e ele me respondeu com um sonoro e raivoso NÃO. (A esquerda, por sua vez, em geral dizia um humilde sim... ao mercado, é claro.)

Próximo à rodoviária, lembro de um diálogo com um viciado, não tão jovem e muito inteligente, provavelmente com estudo e leituras. Quando eu lhe disse que já havia usado aquela enorme merda – pasta-base, a raspa do tacho da cocaína – quando adolescente, mas a havia largado para sempre, ele me olhou ansioso, esperançoso mesmo, e perguntou como eu havia conseguido parar. Eu comecei minhas explicações ingênuas e ele me lançou um olhar de desânimo: “Você nunca foi viciado...”. Era o mesmo que dizer: eu estou perdido para sempre. Tive muitos amigos que embarcaram nesse inferno; alguns sucumbiram e outros ainda lutam com ele.

Quando me mudei pra Campinas – onde, com minha bolsa de mestrado, só pude alugar um apartamento razoável à beira da Anhanguera, precisando pegar dois ônibus pra chegar à Unicamp –, Senna já havia morrido há alguns anos, mas uma de minhas grandes sensações era acompanhar, às vezes integrar indiretamente, as disputas automobilísticas nas vias estreitas do centro, onde dezenas ou centenas de lotações irregulares e quase sempre precárias concorriam em velocidade e brigavam por espaço no meio-fio com os ônibus, que, salvo engano, na época (como hoje) dispensavam motoristas e, sobretudo, os cobradores. Os donos ou empregados das lotações, naturalmente, eram muitas vezes felizes “beneficiários” dos PDVs da vida.

Mas as cenas mais impressionantes que vi em Campinas também foram na calçada. Uma senhora, com semblante e trajes humildes, havia chegado de algum lugar portando uma bagagem considerável e se instalara ali mesmo, à porta de um comércio naquela região. Com todo o aspecto de uma mãe de família, ela decaía a olhos vistos, a cada dia com os trajes mais rotos e o olhar mais desamparado. Como um cachorro abandonado, ela parecia esperar que alguém finalmente a reconhecesse ou acolhesse. E relutava em pedir esmolas, mas acabou fazendo isso abertamente.

E um sujeito, acreditem, de terno, gravata, pasta de executivo e não mais de 25 anos que, naquele mesmo lado da calçada, lamentava sua sorte em voz alta: “Eu não acreditava, eu não acreditava, mas taí, ó: eu rodei, eu me ferrei! Eu tô aqui, eu tô na rua!”. E inquiria os passantes: “Cê tá me vendo, cê tá vendo que eu tô aqui?! Na rua!”. Podiam ser mãe e filho, esses dois “desvalidos”, e é até possível que tenham mesmo se relacionado de alguma forma. Ou não, porque eu não me lembro de dias mais individualistas e egoístas que aqueles.

Bem, depois dessa crônica ligeira, cujo contexto é o auge do neoliberalismo tupiniquim do qual Fernando Collor foi o primeiro e malfadado regente, e o outro Fernando o mais bem sucedido –, um período em que, segundo a Veja, “a classe C chegou ao Paraíso”, só quero acrescentar o seguinte: espero – aliás, creio que todos devemos exigir – que as denúncias do jornalismo Amaury Ribeiro Jr. em A Privataria Tucana sejam rigorosamente apuradas, em tributo não só àqueles como a estes dias estranhos, quando o deus-mercado se revela uma entidade nada confiável. Porque se esse livro tão amplamente documentado não for a maior fraude do jornalismo investigativo brasileiro, ele mostra que havia – e ainda há – muito mais que poeira se escondendo pelos cantos.

Pra não esquecer - e combater - os maus espíritos:

Legião Urbana – Teatro dos vampiros

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Nossa Palestina é aqui, sua língua o guarani


O governo de Israel foi repudiado internacionalmente pela sua política de assassinatos seletivos, de mortes deliberadas de lideranças palestinas, visando bloquear a luta desse povo pela suas terras, que foram ocupadas com a partilha compulsória da Palestina para criação do estado judeu. Mas esses assassinatos não impediram a continuidade da luta pela criação do Estado Palestino, que hoje, após décadas de dura resistência, já é reconhecido pela maioria dos países do mundo.

Foi no dia 29 de novembro de 1947 que a partilha da Palestina se deu, e desde então este é considerado pelos palestinos como um dia de resistência e afirmação deste povo aos seus territórios tradicionais, sua cultura e seu Estado. E foi também num dia de novembro, 25, no ano de 1983 que foi assassinado Marçal de Souza, líder guarani, um dos símbolos da resistência deste povo contra o extermínio físico e cultural. Duas datas simbólicas, na dura resistência desses povos.

A mesma política de assassinatos seletivos praticada por Israel é aplicada contra os povos indígenas de Mato Grosso do Sul há muito tempo. Um após um, ano após ano, vão tombando suas lideranças, numa “crônica de umas mortes anunciadas”, sob o olhar indiferente do Estado, como se os índios fossem seres humanos de segunda categoria. Caso após caso se encadeiam num fio de sangue onde salta aos olhos a omissão do Estado, em todas as esferas, para com uma situação dramática. Quanto sangue ainda será preciso correr para que se tome uma providência?

Para os que acham exagero essa comparação entre a Palestina ocupada e oprimida e a situação das comunidades indígenas de Mato Grosso Sul, particularmente os guaranis, basta uma visita a suas aldeias. Algumas são quase lugares de confinamento. Nós nos solidarizamos com a luta do povo Palestino, mas não podemos fechar nossos olhos para a nossa própria “Faixa de Gaza”.

Quantos assassinatos mais serão preciso ocorrer para que o Estado faça o que devia ter feito a muito tempo? Pois foi com a cumplicidade do Estado, quando não diretamente por ele, que essas comunidades sofreram o que podemos chamar tecnicamente de genocídio, o extermínio em massa de um povo. Como podemos aceitar que nosso país tenha recursos para fazer uma intervenção “pela paz” no Haiti, com o objetivo de ganhar respeito internacional, quando é incapaz de resolver uma situação que se arrasta há décadas sem solução dentro de nosso próprio território? Que exemplo de respeito aos direitos humanos nós passamos para o mundo?

A política de assassinatos seletivos não impediu a continuidade da luta do povo palestino. A cada líder que tombava, outro ocupava seu posto, porque as causas da origem daquela luta – a expulsão de suas terras, o confinamento em guetos e a inexistência de um Estado – ainda não foram resolvidas. Da mesma forma aqui. Após décadas de assassinatos seletivos de suas lideranças, de opressão territorial e cultural, os povos indígenas continuaram mantendo sua dura luta pela garantia de seus mínimos direitos, pelas suas terras ancestrais, pelo respeito enquanto seres humanos que tem sua própria história milenar de ocupação do continente americano.

Duas datas, dois dias, duas lutas em pontos diferentes do planeta, mas com um mesmo sentido: o levante de um povo contra a ignomínia, o desprezo, o esquecimento, a opressão material e espiritual. E lá na Palestina, como aqui, essa luta somente terá fim quando forem atacadas na raiz as causas de suas origens. Nossa Palestina é aqui, sua língua o guarani.

Não te mataram, Marçal, ampliaram a tua voz!

Eber Benjamim – Jornalista, membro do Centro de Documentação e Apoio aos Movimentos Populares


* * *

P.S. - Recebi este texto de meu amigo Eber por e-mail, mas só o li um bom tempo depois da data em que ele foi enviado, próxima ou correspondente à da morte de Marçal. Perco, assim, a data simbólica, mas não a premência da causa. Minha mestra Suzi Frankl Sperber também o leu, e, tendo declarado que gostou dele, fez algumas considerações, concernentes sobretudo à questão da Palestina, que publico como comentário ao post. Meu grato abraço ao Eber e à Suzi.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Sim, Almodóvar, as aparências enganam - mas nem tanto

Almodóvar é, sem dúvida, um dos principais diretores e roteiristas de cinema contemporâneos. O sentido, ou melhor, os sentidos dessa importância, porém, são menos fáceis de decifrar do que pode parecer a princípio. Digo isso por experiência própria: porque sempre tive Almodóvar por um grande mas, enfim, “simples” libertário da contracultura (uma contracultura pós-moderna, digamos assim), e só mais recentemente - para ser exato, a partir de Fale com ela - comecei a me perguntar por outras implicações políticas de seus filmes.

Além de Fale com ela, também o posterior Volver me deixou uma impressão estranha. Ao mesmo tempo que esses filmes transpiram, de formas, digamos, mais requintadas do que nunca, a espécie de “amor universal” (ou, talvez mais exatamente - e também nesse caso as aspas fazem parte dessa exatidão -, “maternal”) que é a espécie de compensação sublime (ou sublimizante) das costumeiras provocações almodovarianas, a violência ocupa neles lugares muito importantes para não afetar intensamente seu complexo significacional.

Que nos dois casos os atos de violência se aliem à ideia de que o amor não apenas sobrevive mas se sobrepõe a eles, e no interior deles mesmo, sem dúvida atesta o humanismo (ou “pietismo”) almodovariano: em Fale com ela, um desejo (substantivo, lembre-se, com que Almodóvar designa sua produtora) que poderia ser torpe se dignifica não só pelo amor que o envolve como pela espécie de prêmio que se concede, não ao autor, mas à vítima desse ato violento, e a um outro que, conforme a cena final, torna-se uma espécie de herdeiro de Benigno; em Volver, mesmo a violência fatal que Raimunda comete em defesa de sua filha não se desvincula de um sentimento piedoso pela vítima que é antes disso um algoz.

Entretanto, o último filme de Almodóvar, A pele que habito, coloca de forma mais explícita, no centro dessa equação de desejo, humanismo piedoso (de fundo obviamente cristão) e violência, a própria questão da necessidade da violência. Pode ser que eu tenha ficado, digamos, mais intimamente incomodado com esse filme do que eu gostaria de admitir, mas julgo pertinente sustentar que os elementos problemáticos que julgo ter visto - e que vou indicar na sequência - estão além desse incômodo, ou seja, da "desconstrução" da masculinidade e da "questão da alteridade" trabalhadas no filme, aliás de forma interessante.

Zeca e Marilia
Para não estragar a surpresa do leitor e possível futuro espectador, vou direto às minhas conclusões. A meu ver, A pele que habito transforma a ideia feita de que “há males que vêm para o bem” em algo muito mais pernicioso: na verdade, engendra a partir dela - e, talvez, permite ver nos filmes anteriores esse engendramento - toda uma ritualística de desejo e vingança (que eu tentaria analisar se conhecesse um pouco mais de psicanálise).

Senão, vejamos. Que a violência central do filme possa tomar a forma, de alguma forma, de um benefício, ou pelo menos ser compensada de alguma forma que resgate, quando menos, a possibilidade da felicidade, é algo que se pode admitir perfeitamente. Ou sugeriríamos, simplesmente, que a vítima dessa violência desistisse de viver? Mas qual a necessidade desse possível resgate se aliar a uma ritualística de vingança? 

A ideia de conquista de um “domínio interior”, de acordo com a lição de yoga na tevê, tem relação, sem dúvida, com a disciplina necessária para pôr essa ritualística em prática, mas por que o mero autodomínio não é suficiente? Porque somos todos humanos, é claro; mas qual a necessidade de premiar esse gesto - cuja dimensão “amorosa” só incide sobre a imagem ou a ideia, digamos, narcísica do que já não se é mais -, ou de torná-lo como que a condição daquele possível resgate?

E é esse “possível”, para mim, o elemento mais sintomático de que algo, aí, foi longe demais. Porque é perfeitamente clara, para o espectador, a possibilidade de que uma felicidade antes impossível, ou quase isso, se consume no final. E, no entanto, nesse filme tão cheio, a partir de certa altura, de lances previsíveis, Almodóvar evita explicitar essa sugestão. E por que faria isso, senão porque é muito acintosa a moral implícita nessa ritualística toda - a saber, a de que violência gera violência e também felicidade? O que, no fim das contas, compensa em alguma medida aquela “primeira” violência (a cirúrgica), senão toda a cadeia de violências em que, na verdade, ela se insere. Como em Fale com ela e Volver.

Robert e Vera
Claro, pode-se sempre sustentar que a violência, aqui, é toda simbólica, e que é justamente a isso - a essa violência “necessária” - que se presta a arte séria. Mas acho que é justamente a seriedade estética (ou seja, ético-conceitual, não moralista) de Almodóvar que se mostra aqui pouco convincente. Para além das costumeiras maluquices almodovarianas, certas inconsistências do enredo de A pele... parecem, um pouco como atos falhos, indiciar isso. Como é possível, por exemplo, que a Marilia (a “empregada”), conhecendo Seca (o “tigre”) tão bem como conhecia, não tenha desligado o monitor na primeira oportunidade? E o episódio da revelação ao colega de Robert, quase no final, não é uma ingenuidade muito grande, e comprometedora, para quem planeja fazer o que realmente termina fazendo?

Fiquei com a impressão muito forte de que em A pele... se opera uma espécie de substituição formal, ou melhor, formal-ritualística; de que seu verdadeiro tema central é a guerra fratricida, sua breve (um pouco breve demais) reescritura de Caim e Abel ou Esaú e Jacó. E nesse sentido é sintomático que as entranhas maternas, lugar de gestação de uma cultura homicida e hipócrita (nem é preciso pedir para repararem no crucifixo), deem lugar a um tipo de gestação diferente, com todas as implicações bioéticas tematizadas no filme, mas de certa forma melhor sucedida. Porque a ninguém mais se abre, ali, a promessa de uma felicidade possível. 

Enfim, minha impressão final é a de que nesse filme Almodóvar descambou – não vou dizer “de vez” porque isso implicaria numa avaliação mais ampla de uma obra sem dúvida importante e valiosa, que contém filmes belíssimos como Tudo sobre minha mãe e o próprio Volver (de Fale com ela gosto cada vez menos). Descambou não só para a apelação mercadológica como para a má-fé estético-ideológica. Se Fale com ela e Volver vivem na tensão do humanismo e da violência em torno do desejo, e este na tensão com o mero fetichismo, em A pele que habito Almodóvar estreita o vínculo entre violência e fetichismo - e seu próprio conluio com esse vínculo. 

Vicente
Mas nem por isso deixa de ser um grande diretor, e tanto o incômodo literalmente fisiológico quanto a empatia que os personagens desse filme nos provocam atestam isso. Mas Leni Riefenstahl também era uma grande cineasta, e saí da sessão com a forte impressão de que Almodóvar tem um apreço especial por seus filmes. Mas talvez eu esteja errado; aliás, tomara que esteja - e se alguém for dessa opinião, por favor, me diga.


Atenção: os comentários ao post revelam detalhes do enredo do filme.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Saúde, Doutor!


Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira (Belém, 19/02/1954 - São Paulo, 04/12/2011).

Corinthians, pentacampeão brasileiro em 04 de dezembro de 2011.

Homenagem de um vascaíno derrotado mas não desonrado.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Um passo infeliz

Os motivos pelos quais vira e mexe escrevo sobre "produtos culturais" destinados a crianças são basicamente esses três: tenho filhos pequenos, acho que esses produtos têm uma função "formativa" central na semicultura contemporânea e, finalmente, não só fui amplamente "formado" (ou seja, um tanto deformado) como nunca perdi totalmente o apreço por eles. Trocadilhos à parte, estou certo, por exemplo, de que devo muito de meu senso de realidade aos mistérios sempre humanamente explicáveis (pelo menos na fase "clássica") do Scooby-Doo.


Mas a verdade é que está cada vez mais difícil assistir desenhos infantis, digo, para crianças. Passado o bom momento da Pixar, que trouxe certo sopro de criatividade - mas também, convenhamos, muito mais de histeria - ao mercado, sobram os derivados, cada vez piores. Happy Feet - pelo menos Happy Feet 2, que eu vi esses dias - é um deles, e dos piores. Às piadas histéricas e escatológicas se soma (ou se subtrai) um roteiro praticamente nulo: o mundo está "mudando", e devido a isso a "nação" dos pinguins imperiais fica presa em um abismo de gelo e os heróis precisam salvá-los. Contando com a ajuda de um falso pinguim e uma manada (?) de elefantes marinhos, tudo se resume às pirotecnias aéreas, dançantes e semicatastróficas - ou seja, a catástrofes coreografadas - para que isso ocorra.

Isso tudo ou esse quase nada não seria tão triste se não fosse tão marcadamente protofascista. As coregorafias de massa, além de fazerem o elogio da servidão coletiva, se prestam à apologia deslumbrada e desbragada da técnica. Não apenas a ausência de roteiro se escora nos "efeitos especiais" (haverá uso inteligente para "tecnologia 3D"?) como tudo se trata, no fim das contas, de desempenhos técnicos: a dança salvadora, os homens (caçadores? ambientalistas? não entendi; acho que teria que ver o primeiro filme e não farei isso) que iniciam uma operação-resgate mas são expulsos por uma tempestade em si mesma espetacular, os voos do falso pinguim etc. O de praxe, mas até a estratégia que o pinguinzinho empreende para convencer o elefante marinho a ajudá-los é um desempenho técnico-operístico de extremo mau gosto, um dos pontos culminantes desse "musical" militaresco-neoevangélico, aliás uma fusão de brutalidade technopop e histeria religiosa. O que, aliás, me fez lembrar que nas igrejas neoevangélicas (não quero acusá-las em bloco, há "crentes" e pastores de boa índole) costumavam circular versões "de Jesus" (oh pobre) de "músicas" como as do Bonde do Tigrão.

Enfim, não é um conselho nem um alerta, apenas uma dica ("cultural"): não levem seus filhos para verem essa droga. Ou, se fizerem a besteira de levar, como eu fiz, torçam para que eles façam como os meus: um não gostou de nada no filme, a outra se recusou terminantemente a usar os óculos 3D, e esperneou o tempo inteiro. Me arrependi de não ter saído. E depois que saí pensei nas condições dos pinguins do aquário de Santos, melancólicos, confinados num ambiente pequeno, aparentemente abafado e cheirando a podridão. Não se enganem, a "paisagem" que se vê à esquerda, ao fundo, é apenas o vidro.

Isso que se faz com os pinguins - símbolos de usos e, agora, temores de nossos padrões civilizados - não se deveria fazer com ser nenhum, nem concreta nem simbolicamente. E tornar as crianças cúmplices desses crimes não o aliviam em nada.


E tenho dito.

* * *

P.S. em 05/12 - Já  que dei uma contradica, não custa dar uma dica de verdade, embora infelizmente não sirva para essas férias. Todo ano acontece o Festival Internacional de Cinema Infantil (FICI), dirigido por Carla Camurati. São filmes de vários países, e a maioria fora dos padrões e circuitos comerciais. Assisti uns poucos filmes este anos, e dentre eles os que mais me encantaram foram os curtas animados produzidos na Letônia. Mas se é o caso de criar um contraponto para o filme sórdido da Warner, cito o curta O caminho das gaivotas, que de certa forma também fala, como Happy Feet 2, sobre o fim catastrófico de um mundo e o nascimento de outro, mas com sentidos e espíritos muito diferentes. É uma coprodução cubano-brasileira, e penso que tanto nesse caso quanto no dos filmes letonianos os elementos ou rastros socialistas constituem diferenciais importantes. O FICI deste ano já se encerrou, mas o do próximo, que será a décima edição, também deve trazer muita coisa boa. É pena que não abarque todas as cidades que possuem Cinemark - parceiro do projeto -, inclusive Campo Grande, onde planejo morar. Aliás, todos sabem que acesso à cultura (de verdade), no Brasil, é um problema sério.

P.S. em 07/12 - Um lançamento de natal que vale mais a pena é Operação Presente, da Aardman. Vale a pena, eu disse, mas não tanto - e sem trocadilhos - quanto o questionador A fuga das galinha (do qual, inclusive, se distancia esteticamente, aproximando-se do padrão Disney-Pixar), salvo engano o primeiro grande sucesso do estúdio. Agora o sentido geral é francamente conciliatório - tecnologia e tradição, conflitos de gerações etc. -, e, principalmente, em nenhum momento se questiona o sentido mercadológico do natal. Mesmo assim, o desenho consegue levar um pouco de reflexão às crianças, inclusive porque seu happy end é também uma alegoria do estado de irresponsabilidade em que o mundo vive hoje.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Sobre o caráter revigorador, mas também sombrio, da obra de arte


A discussão sobre as relações da arte com a miséria da vida que aponta para a promessa de felicidade contida nas obras, fazendo da arte uma “aparência de vida” bem melhor e mais bela do que a cinzenta realidade, pode ser verificada no documentário Lixo Extraordinário (já discutido neste outro post). O filme mostra o percurso do famoso artista plástico Vik Muniz que, ao resolver fazer arte com materiais do aterro sanitário do Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro, com a participação ativa dos trabalhadores do local - os catadores de lixo -, empreende uma transformação na vida daquelas pessoas. No filme, podemos visualizar o tema polêmico sobre a "inutilidade" da arte (apesar da vinculação da arte com projetos sociais, tal como explicitamente propugnado pelo artista no documentário), e sobre sua natureza paradoxal relacionada ao seu parentesco sombrio com a morte, que retira o seu poder de "encantamento estético" da extração de vida (de histórias de vidas) de pessoas comuns, cujos brilhos tornaram-se "apagados" pelo cotidiano inglório e injusto de uma vida reduzida à sobrevivência e à exclusão social.

As personagens que participam do projeto de Vik são justamente aqueles trabalhadores, cujos ofícios são julgados pela civilização como um dos mais ignóbeis e inferiores, por lidarem com o lixo, com a sujeira, com os restos "inutilizáveis" da sociedade, assim compondo a massa de trabalhadores invisíveis e expurgados pela sociedade. Não podemos deixar de mencionar um dos relatos de uma catadora de lixo a respeito do preconceito que sofre, quando afirma que, ao se envolver nesse tipo de trabalho e diante do incômodo que ele provoca nas pessoas (o mau cheiro que ela exala pelo contato com o lixo), "antes melhor catar lixo do que se prostituir...".

Mas neste interjogo retirado do filme sobre a dinâmica "arte" e "lixo", "fealdade" e "beleza", "matéria" e "ideia" (imagem), "vida" e "morte", para além das implicações sociais e até políticas do documentário, o que chamamos a atenção é justamente para a ambiguidade insolúvel da obra de arte que aparece na trama, quando também ouvimos e assistimos os dramas de cada catador de lixo e o envolvimento intenso deles na criação das obras: a de a obra de arte ser uma promessa de vida mais justa, com poder regenerativo e de encantamento, mas que se efetiva às custas da exclusão e da opressão social; ou seja, somente a partir da escória e da miséria, a beleza suscitada e materializada pela forma artística se realiza como ideia possível dentro de um âmbito não mais sujeito à autoconservação, não mais ligado à sobrevivência dentro de uma "finalidade sem fim".

Eis aí, também, o caráter revigorador mas também "letal" da obra de arte. Os trabalhadores conseguem "fugir" um pouco do trabalho duro e até cruel (há também relatos sobre cadáveres encontrados no meio do lixo), quando participam da criação de seus retratos, embora aqueles mesmos retratos tenham justamente florescido a partir de suas misérias e do lixo, lembrando que esse último é a fonte principal de seus sustentos. Da não liberdade e da injustiça a que tais pessoas têm sido condenadas (por questões de natureza política e econômica), a arte vem a florescer como o campo da liberdade possível, mas não mais sujeita ou voltada à autoconservação daquelas pessoas.

Daí remetemos às relações ancestrais de parentesco da arte com as máscaras mortuárias (há algumas passagens belíssimas encontradas no livro de Maurício Chiarello Natureza Morta em que ele apresenta tais relações), que, ao promoverem o ocultamento ou o maquiamento da morte (a mutilação do cadáver e a impotência do homem), apresentam-se mais "vivas" e mais "belas" do que o próprio material do qual se originaram. E isso é visivelmente atestado nas obras produzidas pelos personagens do filme, nos retratos feitos pelo artista Vik Muniz com a participação dos catadores de lixo. Essas imagens, ao mesmo tempo que expõem toda a tristeza e crueza de rostos "esmaecidos" e entristecidos, também se impõem como algo muito melhor, assim escondendo (ou, talvez, superando) o horror desse mundo. 
Ana Paula Gomide


*  *  *

Acréscimo em 29/11:

Oi, Ana. Veja que honra: Affonso Romano de Sant'Anna, grande poeta e ensaísta, agradeceu o envio de seu texto e nos enviou, à guisa de comentário, este outro, de sua autoria e publicado originalmente no Estadão, sobre a obra de Vic Muniz. Uma bela e autêntica aula de arte contemporânea. Para garantir uma apresentação razoável, republico-o como anexo, e não como comentário. R.

QUESTÕES EM TORNO DE VIC MUNIZ(*)
Affonso Romano de Sant'Anna

A exposição de Vic Muniz no MAM/RJ mexe numa série de questões:

-o reencontro da arte com o público
-o reencontro com a figuração
-o reencontro com o social histórico
-desmistificação da falsa querela entre fotografia e pintura
-a superação das "in-significâncias" que caracterizam grande parte de obras "contemporâneas".

A essas se seguem outras questões igualmente instigantes. Algumas pessoas ao verem sua exposição ficam sem saber como classificá-lo.  Criador ou re-criador? Teria ele descoberto (como ocorre com alguns artistas hoje em dia) alguns "truques" e "macetes", que repete, ou supera esse vício da arte do nosso tempo?

Cada um desses tópicos mereceria desdobramento. Limito-me, no entanto, em sumarizar alguns comentários e em levantar algumas questões.

1- Esta é uma exposição que realiza o reencontro do público com a arte.  Isto é raríssimo hoje em dia. O que tem caracterizado certas mostras é  aquilo que Jean Clair- o crítico de arte de maior prestígio na França- chamava de " multidões sonâmbulas". Ir a museu virou uma variante do turismo. Pessoas vagando entre obras que não entendem sem conseguir compatibilizar as bulas oferecidas com o produto exposto. Ou então, propostas de interatividades entre a in-singificância e a idiotice.

VM consegue a empatia e a admiração do público e a atenção de críticos daquilo que Howard Becker chamava de " arte oficialista".

2- Essa exposição derruba outra falácia "contemporânea": de que a figura acabou / a representação morreu. Neste sentido, VM superou essa espécie de querela entre  os atuais "protestantes" (contra figura) e os atuais católicos (pela representação).

3- Coloca mais uma pá de cal na equivocada querela entre pintura e fotografia. Se há cerca de  100 anos uns achavam que a fotografia mataria a pintura, a obra de VM inscreve um capítulo nessa novela  que poderia  ter um titulo: quando a fotografia ressuscita a pintura, o quadro e o painel.  Aqui a fotografia está dialogando com várias artes vizinhas: a escultura, o desenho, a pintura, a gravura, etc. O fotógrafo não compete com outros gêneros, mas soma-os ao seu fazer.

4- Ao contrário de in-certas manifestações "contemporâneas", as obras de VM têm um sentido social, histórico e político. Trabalha com imagens de   favelados, com ícones de nossa cultura, com fatos jornalísticos, faz  uma critica clara ao momento histórico e à sociedade de consumo, além e claro de se envolver pessoalmente em programas sociais. Retomando a já clássica e incontornável relação entre lixo & luxo  diverge  da arte produzida nas últimas décadas que exercitava  um tipo de niilismo e alienação. Sua  exposição, já no principio mostra, criticamente, aquele mapa do mundo onde os continentes são representados por computadores e peças eletrônicas amontoadas e outros dejetos da cultura moderna.

5- VM dialoga com a arte "anterior", não para ridicularizá-la juvenilmente, mas para reinscrevê-la, metamorfoseá-la no   tempo & espaço. Desenvolve um trabalho de paráfrase, paródia e de estilização de  obras  de Caravaggio, Goya, Monet, Gauguin, Piranesi, Boticelli, Bosh, etc. ( Por vício acadêmico alguém pode querer chamá-lo de pós-moderno). É curioso notar, contrastivamente,  que se alguns artistas do princípio do século 20  queriam queimar museus e jogar a arte anterior  no lixo, no final do mesmo século, como se tivessem juntando as contradições, outros artistas, como VM, não pregam a ruptura, mas  vão  ao passado com olhos no presente & futuro para reprocessar, reciclar conteúdos e conceitos.

Neste sentido, diria que é um "comentarista" da arte  de ontem & hoje, pois está  relendo várias obras clássicas à sua maneira, "refazendo-as", "reinterpretando-as" com materiais pouco convencionais. Ao retomar os "antigos", ele está não apenas revisitando, mas  "reilustrando" a história.

E aqui a palavra "ilustração" tem sua pertinência. Há algo de ilustração no sentido jornalístico do termo. E talvez aí esteja, ao mesmo tempo, tanto a  força   quanto  os riscos de suas obras. Se alguns de seus trabalhos aparecessem como ilustração em jornais e revistas, funcionariam perfeitamente. E o caráter jornalístico e documental é tão evidente, que ele trabalha também sobre fotos & fatos da imprensa. Deve ser neste aspecto que algumas pessoas têm dificuldade  em  qualificá-lo, apesar de seu êxito de crítica, de público e de venda. Em contrapartida, pode-se também indagar se certas ilustrações em revistas e jornais, se certas vitrinas de lojas, se certos anúncios não transcendem também o provisório e não mereceriam a perenidade dos museus.

6- Do ponto de vista estrutural & estruturante da obra de arte, VM vai na contramão de outro vezo contemporâneo: a entropia, a fragmentação, o improviso, o rascunho, o recorte, a dispersão, o aleatório, o acaso. Ao contrário, está ordenando a desordem, a confusão, a ambiguidade e a indecisão. E enquanto outros artistas se perdem entropicamente nos fragmentos, ele está fazendo a "reunião", conforme uma noção heideggeriana de arte como "reunião relevante e/ou revelante". Enfim, onde outros dispersam ele aglutina, onde outros se confundem, ele se esclarece. VM está reunindo as partes em função do todo, o átomo em função da matéria, o pigmento em função da imagem e do assunto. Oferece uma visão  gestaltiana do caos,  ordenando-o, mostrando-o pelo seu avesso.

7- Daí outra característica essencial de seu trabalho. E a palavra "trabalho" aqui faz sentido. Nele há  técnica e criatividade. Onde outros praticam  aquilo que no livro O ENIGMA VAZIO, IMPASSES DA ARTE DA CRITICA, chamei de  "irresponsabilidade estética e a estética da irresponsabilidade", esse é um autor que  não apenas se insere no seu tempo & espaço históricos,  mas tem "métier", pesquisa e desenvolve um "projectum". Seu fazer tem uma "estrutura", onde a " invariante" é o fragmento e as "constantes" são os diversos materiais que usa para preencher o conjunto.

8- Poder-se-ia alegar que ele utiliza   técnicas mais velhas que a Sé de Braga. Com efeito, nas procissões religiosas em Ouro Preto ou São João Del Rei, para ficarmos apenas no Brasil, as ruas são decoradas com pétalas de flores, utilizando uma técnica pontilhista. Igualmente, os que fazem desenho com areia colorida dentro de garrafas, como no  Ceará, ou até mesmo aqueles artistas de calçada que, em Nova York e Paris desenham nos passeios supreendentes cópias de quadros que estão nos museus, tudo isto tem a ver com a obra de VM.

Igualmente  o ilusionismo, o "trompe l'oeil", as anamorfoses que no Barroco conheceram seu apogeu, podem ser lembradas em relação a algumas de suas obras. É até possível que  alguém queira  chamá-lo de neobarroco, como se tornou moda  dizer nos últimos 40 anos.Com efeito, olha-se a obra, e  de longe vê-se uma coisa, de perto vê-se outra , e as duas visões se informam, a informação se complementa até pelo avesso. Mas o seu  ilusionismo, reconheça-se, produz efeito, não é um jogo gratuito, mas resulta em nova  informação e sensibilização estética.  Não tem nada a ver com a falsa equivocada pregação duchampiana da "indiferença".

Em síntese, a obra de VM  sendo de certo modo sintoma de sua época,  por outro lado, opõe-se ao que tenho definido como " in-significância". Ou seja, grande parte das obras expostas em galerias, museus e festivais tipo Documenta Kassel, são "enigmas vazios". São   exercícios falaciosos que, se  chamam a atenção, devem isto  à estratégia de marketing da  espetacularização.

Dou um exemplo, apenas um, das correlações possíveis entre as obras de VM e outros "contemporâneos". Consideremos  as obras de Daniel Spoeri, lá nos anos 60. No afã de ter que inventar sempre algo de novo e/ou diferente, lançou  ele um tipo de arte ligada à comida- a  "eat art" (arte comida), que consistia em expor pratos com restos de comida deixados às vezes até a podridão. Uma típica "in-significância" como tantas outras. No caso de VM ele retoma  a idéia, não a coisa. O que ele expõe não é apenas  o chocolate representando uma figura nem o macarrão parodiando a Medusa de Caravaggio, mas a representação,  a fotografia da idéia. Ou seja, enquanto em outros (como na "land art") o espetáculo é a obra, no seu caso de VM a obra é  espetáculo. Vamos a um exemplo do que digo: uma coisa "in-significante" é encher um caminhão de lixo e espetaculosamente despejar  os dejetos dentro de uma galeria de arte, com já foi feito na França e outros países; outra, bem outra,    é trabalhar sobre o lixo, reprocessá-lo teórica e tecnicamente. Enfim, a matéria bruta não é necessariamente arte. Arte é transformação, melhor ainda, transfiguração.

VM dá a sensação de descontração, de liberdade, de estar centrado num trabalho consequente. Picasso falou aquela frase de efeito que é apenas parcialmente  verdadeira: "eu não procuro, eu acho". De VM se poderia dizer que ele encontra, porque procura com atenção, paciência e criatividade.

(*) Estado de São Paulo-19.04.09