VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Nem Lixo, Nem Extraordinário

“É bondade sua me explicar, com tanta determinação /
Exatamente o que sinto, como penso e como sou /
Eu realmente não sabia que eu pensava assim.”
(Legião Urbana, “Mais do Mesmo”)

Certa vez, do alto de sua sabedoria de Buda etílico, o grande Tim Maia afirmou que o Brasil é o único país do mundo onde cafetão sente ciúme, prostituta sente prazer e pobre é de Direita. Piada tão sociologicamente correta quanto politicamente incorreta. Paradoxalmente, quase a totalidade de nossa elite intelectual e parte considerável da elite financeira simpatizam com a Esquerda. Essa proximidade ideológica concretizou-se enquanto projeto em 2002, com a eleição de Lula, o que pode ser percebido nas reuniões de bastidores de campanha registradas no ótimo documentário “Entreatos” (2004), de João Moreira Salles.

Ação e reação. Uma vez eleito, Lula passou de aposta partidária para mito vivo e líder carismático weberiano. A mesma massa que não votava em Lula por ele ter sido pobre passou a idolatrá-lo por ele ter sido pobre e se tornado presidente. Daí para o culto a personalidade foi um passo. O filme “Lula, o Filho do Brasil” (2010), de Fábio Barreto, deveria ser o principal subproduto desse culto. Porém, sem ritmo, mal escrito, mal-dirigido e interpretado com insegurança, o melodrama fracassou nas bilheterias. Mesmo assim, apostando no prestígio internacional do operário-presidente, uma comissão do Ministério da Cultura resolveu indicá-lo como candidato nacional a uma vaga entre os finalistas ao Oscar de Filme Estrangeiro. Não deu certo. Se a inexplicável parceria de Lula com o insano presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad lhe tirou o Nobel da Paz, a qualidade duvidosa do filme de Barreto lhe tirou o Oscar. E quase tirou o Brasil do Oscar.

Quase porque a co-produção brasileira / britânica “Lixo Extraordinário”, dirigida pelo trio Lucy Walker, Karen Harley e João Jardim, registrando os dois anos em que o artista plástico carioca Vik Muniz trabalhou com catadores do aterro sanitário do Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro, foi indicado ao Oscar de Melhor Documentário. Acredito que tem chances reais de vencer, já que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood é mais parecida com a Academia Sueca do que se imagina. Filmes bem intencionados e edificantes são sempre bem-vindos. Além de aliviar o espírito, são bons para os negócios.

O pequeno público brasileiro que assiste documentários cinematográficos também deve adorar. Eles são a nata da nata de nossos cinéfilos. Os mais cultos, os mais sofisticados e donos da maior paciência. Não se importam de assistir longos longas-metragens repletos de longuíssimos planos seqüência de paisagens quase imóveis. A experiência estética, que emula a observação de uma tela, somada ao impacto emocional e o valor da mensagem intelectual impressa nas imagens, é o que importa. Nesse sentido, “Lixo Extraordinário” é um prato cheio, ou melhor, citando Raul Seixas, é um banquete de lixo. O filme é belo, é comovente, é socialmente responsável, é um mosaico de lições de vida. Sim, é tudo isso, mas também é proselitista e condescendente.

Nas últimas décadas houve o crescimento de um subgênero dentro do universo dos documentários: o filme denúncia. Esse tipo de produção procura mostrar as mazelas do mundo, com intenção de denunciá-las e, se possível, ajudar a mudá-las. Pobreza, violência, discriminação, superação de situações limite, recuperação de excluídos sociais etc, são sua matéria-prima. Alguns dos exemplos mais importantes são “Cabra Marcado Para Morrer” (1984), de Eduardo Coutinho, “Ilha das Flores” (1989), de Jorge Furtado, e “Ônibus 174” (2002), de José Padilha.  

Apesar da excelência técnica e das claras boas intenções dos cineastas responsáveis por essas obras, é possível perceber que, em muitos casos, eles transformam-se em disseminadores de estereótipos acerca dos assuntos que pretendem denunciar. Segundo o crítico Jean-Claude Bernardet, professor de cinema da USP, em seu livro “Cineastas e Imagens do Povo”, os documentários que retratam as classes sociais menos favorecidas tendem a salientar um autoritarismo velado de quem filma sob àquele que é filmado. Para Bernardet, esses documentaristas procuram revelar a verdade do “outro”, sem, contudo, mostrar a própria. A complexidade da situação é escamoteada pelo discurso politicamente correto.

Com certo exagero, mas não sem alguma razão, Paulo Francis escreveu que “nenhum filme brasileiro dá certo porque todos os cineastas tentam demagogicamente se colocar na posição dos humildes. É falso, visceralmente. Sempre que vejo algum favelado em filme brasileiro tenho vontade de sair gritando: ‘É um santo! É um santo’”. Infelizmente, Francis não viveu para assistir o genial “Cidade de Deus”, que provou que não precisava ser sempre assim. Mas a exceção representada pela obra-prima de Fernando Meirelles continuou sendo a confirmação da regra.

A despeito das louváveis intenções da equipe de produção em geral e de Vik Muniz em particular, salta aos olhos a artificialidade de suas relações com os catadores de lixo. A edição do filme parece milimetricamente planejada para comover: desde as imagens do lixão, as sub-reptícias mensagens de encorajamento, as crises de consciência, a trilha sonora de Moby e até mesmo as lembranças da infância pobre do artista. A cena na qual a equipe discute paralelamente em inglês e português, sobre o mal que podem estar provocando àquelas pessoas, interferindo em suas vidas, mostrando-lhes um mundo diferente para depois abandoná-las à própria sorte, é sintomática.

Nada disso seria problema se a proposta não fosse ser o mais genuíno possível, se a intenção não fosse mostrar a realidade, a vida como ela é. Não que haja ingenuidade aqui. Do grande teatro nazista de Leni Riefenstahl até as denúncias tragicômicas de Michael Moore está mais do que claro que o gênero documentário não é tanto Cinema Verdade quanto é a Verdade do Cinema, ou do cineasta. “Lixo Extraordinário” pretende ser o primeiro e acaba sendo o segundo. Contava-se, talvez inconscientemente, com a conivência da platéia, uma vez que o filme não se furta em revelar que nem mesmo as fotos tiradas por Muniz, que geraram as obras da série “Imagens do Lixo”, foram flagrantes espontâneos. Algumas imagens foram detalhadamente produzidas em estúdio. A opção por realizar releituras de obras de arte clássicas não foi por acaso. Na prática, Muniz não retratou a realidade dos catadores de lixo, mas a reconstruiu segundo sua visão de artista cosmopolita. Afinal, versões feitas de lixo do “Narciso”, de Caravaggio, e do “Marat”, de David, revelam mais sobre Muniz ou sobre Tião e Zumbi, seus modelos? 

“Lixo Extraordinário” apresenta-se, é vendido e tem sido comprado como um colosso emocional. O desnudar de um artista diante do público em função de seu mergulho visceral no cotidiano de uma comunidade humilde. A realidade por trás da câmera pode bem ser isso mesmo. Faço votos que seja. Deve ter sido uma extraordinária experiência de vida para todos os envolvidos. Contudo, infelizmente, o filme, numa analise desapaixonada, não é. Possui muitos e notáveis méritos, quase todos de natureza técnica, mas a espontaneidade não é um deles. Os personagens parecem desconcertados, intimidados pela câmera, não há o realismo cru presente em “O Prisioneiro da Grade de Ferro” (2003), de Paulo Sacramento. A abordagem dos catadores de lixo é piegas, longe da objetividade jornalística de Eduardo Coutinho em “Boca do Lixo” (2007). Essa tentativa desesperada de excluir qualquer tipo de juízo de valor retirou o impacto da denúncia, diferentemente de “Meninas” (2005), de Sandra Werneck, ou “Falcão – Meninos do Tráfico” (2006), de MV Bill e Celso Athayde. Nem mesmo sua utilização da tradicional estratégia de estetizar a miséria é particularmente interessante, ficando longe da criatividade arrebatadora de “Estamira” (2005), de Marcos Prado.

Em “Lixo Extraordinário” tudo parece pasteurizado: as emoções, as personagens, a paisagem, a denúncia do desperdício burguês, a mensagem pró-reciclagem. Perfeito para o consumo de nossa elite letrada, repleta de responsabilidade social. É saboroso e não engorda. Está longe de ser um lixo, tampouco de ser extraordinário. 

Ademir Luiz

Um comentário:

  1. Ademir: vou fazer duas observações: nunca entendi se realmente o Francis está ali se referindo ao cinema novo, mas é bem possível. Ele refere-se a Memórias do Subdesenvolvimento. Esse filme é ótimo, mas é a revolução cubana do ponto de vista de um burguês sofisticado que é obrigado a ficar na ilha enquanto todos ao seu redor se mudam.

    Se o Franz viu algum filme brasileiro, talvez tenha sido Deus e o Diabo na Terra do Sol, onde o pobre é justamente o contrário disso: é alguém ao mesmo tempo muito temente a Deus, mas que capaz de matar sem pensar duas vezes, etc.

    Não acho que Cidade de Deus é filme de exceção de forma alguma, acho que ele está bem dentro das regras. O olhar os favelados do terceiro mundo como vivendo numa frenética "rave" da morte.

    Abs!

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