Este é o meu primeiro post com tema literário, e eu não posso deixar de me sentir grato pelas meias-coincidências que determinaram seu assunto. Pois o livro de que ele trata - o último que li, como se diz, por mero diletantismo - foi adquirido em circunstâncias quase inteiramente fortuitas, numa banca de livros usados, com o objetivo de tornar menos tediosa uma viagem de ônibus, e no entanto ele se me prestou (perdoem o preciosismo) a uma pequena mas importante catarse intelectual e emocional. Mais exatamente, essa leitura e este post compensam, em parte, e por conta de certas relações temáticas, a desistência de um velho projeto, a saber, um trabalho mais amplo sobre o filme Elefante, de Gus Van Sant.
O jovem Törless é a primeira empresa literária de vulto do escritor austríaco Robert Musil (1880-1942), embora apenas uma mostra mínima do talento que viria a aflorar no imenso (e inacabado) O homem sem qualidades. Curto, denso, um pouco menos cuidado na estruturação do enredo que na apresentação, aliás mais descritiva que narrativa, dos conflitos (sobretudo mas nem de longe apenas interiores), Törless é uma espécie de romance de formação condensado, temporal e espacialmente restrito aos dolorosos aprendizados (ou, talvez, não-aprendizados) do protagonista nos anos vividos em um Seminário para filhos de famílias endinheiradas.
Bem, devo alertar, como nas páginas da Wikipédia, que este texto contém revelações do enredo - sendo que o livro, que vale a pena ser lido, pode ser encontrado em muitos sebos, inclusive virtuais.
As experiências de Törless se ligam intimamente às de dois colegas, Reiting e Beineberg, e mais ainda - e mais intimamente ainda - às de um outro, o frágil e "desprezível" Basini, que os primeiros submetem a frequentes sessões de humilhação e tortura, física e psíquica. Daqueles três, entretanto, para apenas um deles essas sessões sinistras (não raro interpretadas como uma antevisão do nazismo) constituem exercícios de um mero poder cruel e dominatório. Tanto para o "filosófico" Törless quanto para o "budista" Beineberg são outras obsessões de domínio que estão em jogo, obsessões ligadas à própria estrutura do real, e seu conhecimento e experiência.
E se Beineberg busca fazer da mente e do corpo daquele "outro" um instrumento de comprovação de suas fés ou teorias místico-religiosas, o que Törless busca, mas no âmago psíquico, ou seja, na alma desse corpo-consciência massacrado - e não menos inutilmente que seu colega -, é um vislumbre, um sentido ou o que quer de luz que ele possa trazer, do âmago mesmo de suas terríveis experiências, para as dúvidas "cruciais", ou seja, os paradoxos que o aluno "sensível" e aplicado vê, obsessivamente, pairando ou, antes, vicejando, no fundo mesmo de quaisquer certezas, de qualquer tipo.
Um fundo onde tudo o que é razão, moral, entendimento, valores ou o que quer se vincule a um Ideal, uma Lei ou o que quer que se conceba como superior se deixa flagrar em seu conluio com uma vida, uma matéria, sempre com seu quê de sórdida, suja e, claro, falha e mortal. Um fundo onde tudo se dissolve na estrutura vertiginosa, paradoxal, da mera e absurda existência. Mas em seu próprio fundo, o próprio Törless somente vislumbra o quanto viceja o indizível. Ou melhor, os indizíveis: medo, desejo, desamparo.
Tudo isso - ou apenas isso -, de minha parte, para extrair daí uma moral pedagógica, ou, quiçá, uma lição, quem dera até um programa. Sim, pois o que talvez mais falte a Törless (cujo futuro medíocre, desvelado no final, marcará sua distância da instância autoral) e a Beineberg, e mesmo ao torpe Reiting, e mesmo ao "coitado" Basini - ou melhor, uma das poucas ou muitas coisas que talvez a escola pudesse fazer para compensar todos os abismos (sociais, morais, existenciais, metafísicos, "relacionais") que se cavam na alma das pessoas, seriam aulas de paradoxo, aulas de absurdo, de vertigem. Isso que nos faz sentir, antes que nos sintamos tentados a comprovar e/ou expurgar isso em outrem, que também somos algo semelhante a um nada, ou uns filhos do nada.
"Aulas de poesia!", alguém me sugerirá. Mas não, porque definitivamente o paradoxo, a vertigem e o absurdo não podem ser apresentados como instâncias, atributos, propriedades, de qualquer privilégio posicional, actancial, pragmático ou o que seja. Pois se eles pertencem e a eles pertence o real: o mísero real nosso - ou melhor, deles (menos os poetas que os, diz-se, sem-poesia) - de cada dia.
Porque o nosso, bem, ao menos para alguns de nós há os terços de férias. O que aliás me lembra que este é um post de Boas Férias, vindo a calhar, portanto, seu contexto livresco e escolar.
Vêem que rimar é quase uma sina? Mas deixo para outro dia a piada do Joãozinho.
E viva o Joãozinho, e vivam Basini, Reiting, Beineberg e Törless, e, claro, o imenso Musil, o melhor Joyce que uma Áustria pré-nazista poderia parir, e que muito ainda ensina. E vivam as férias!
P.S.1: Encontrei o desenho acima, acreditem, num site universitário - no da UFMS de Bonito, é claro. (Mas também poderia ser de Corumbá - é claro.) E viva - e Deus guarde, porque de nossa parte não sei não - Bonito (e Corumbá, e etc.). (Com um abraço aos tios e tias e primos e primas, inclusive ao Breno, que pertence a esses dois paraísos ameaçados.)
P.S.2: Ainda sobre Bonito (e Corumbá), como dizem "os que podem", é "uma boa pedida".
P.S.3: A título de nada: achava muito grotesco, quando estudante, a maior parte dos professores não saberem que muitos alunos "não podem nada" nas férias. Ultimamente, tampouco os professores andam "podendo" muito, mas muitos continuam sem saber.