VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

sábado, 9 de julho de 2011

Ainda em torno de Törless, ou do que (não) o atordoa


Este post tem algo da situação autopunitiva de um mea culpa. Afinal, ele advém de uma espécie de "retorno do recalcado"; o retorno, na verdade, de um "desprezado", sendo que as aspas sublinham não só a leviandade como a precipitação, sem falar na artificialidade, do gesto. Pois a verdade (e eu espero que o Tião, defensor ardoroso do Roberto Schwarz, leia isto) é que eu devo muito aos "sociólogos da literatura" para me referir a eles como fiz em minha resposta ao comentário de minha querida mestra, Suzi Frankl Sperber, no post anterior. E a grande - e pior - verdade é que se eu lhes dedicasse mais tempo e atenção não teria pago o pequeno ou grande "mico" que paguei, no texto referido, de tentar uma articulação exterior ao meu assunto nos post scriptuns (ou post posts) sobre os estudantes pobres, sem me dar conta de que essa articulação se dá, de certa forma, no interior do próprio objeto.

Minha própria mestra me alertou que o tema pedia mais desenvolvimentos; e embora eu jamais tenha tido a esperança - e, num post bloguístico (e é este, certamente, um de seus maiores benefícios), sequer a vontade - de esgotar qualquer assunto, a verdade é que ainda havia coisas por demais imprescindíveis a serem ditas nesse caso, e uma delas é isto: aliás, antes de tentar "definir" ou "explicar" - na verdade, generalizar - "isto", deixem-me tentar apresentá-lo na forma de uma objetividade conceitual mínima (ou seja, na forma de uma conceitualidade minimamente convincente quanto à sua "objetividade"), dizendo, apenas, que o inferno de Basini tem um explícito e inegável atrelamento econômico: pois se são seus empréstimos, dívidas e furtos que o tornam vulnerável aos ritos sinistros impetrados pelos colegas...

Mas o meu "antes" é um aquém, um deter-me: não vou, de fato, me perguntar sobre os "possíveis sentidos mais amplos" disso, ou seja, se determinados elementos do romance permitem ver Basini como um "representante" ou mesmo um símbolo de alguma condição social; uma "condição", no caso, "intermediária" (pensando, inclusive, nas relações do personagem com as pessoas pobres, mais exatamente uma prostituta, da aldeia). O fato é que, qualquer que seja o volume de seus gastos, os recursos de Basini não são suficientes para supri-los. Ainda que num nível puramente individual, portanto, e ainda que de forma relacionada a supostos "desvios" ou "patologias", Basini vive uma situação de precariedade e dependência econômica que o conduz, ainda que na forma de algum "pretexto", ao sofrimento. Basta, então, indicar que, conscientemente ou apenas por obra das frestas inevitáveis em um produto tão mergulhado no real, essa dimensão do real se infiltra aí: a condição de uma sociedade de classes, e, portanto, de alguma forma, da luta de classes.

Para ser sincero, parece-me - mesmo com o vexame do atraso da percepção (mas antes tarde do que nunca) - difícil supor que Musil fosse alheio às possibilidades de sentido (ou seja, de relações) aí implicadas; e isso porque o próprio Törless se mantém quase alheio (é quase que por instinto, ou pela dimensão inconfessável do sentimento que grassa nele, que ele finalmente o "salva") à condição humana de Basini; não na generalidade de sua individualidade humana, mas na complexidade e especificidade - inclusive social - desta. Ou melhor, ele a vê, sente (e/ou pressente) e mesmo vive, mas como quem olha e tenta dar sentido aos reflexos dela e sua degradação em si mesmo; vive-a, portanto, como um laboratório, reiteremos, para sua "radiografia". O que eu escrevi antes a propósito de Törless apenas vislumbrar "os indizíveis" em si é, portanto, uma meia verdade: pois se ele praticamente inquire o outro sobre a essência do não-ser - e, no entanto, sequer cogita perguntar "quem tu és?"; quem dirá lhe pedir que lhe conte sua história.

Essa anulação prévia do outro - e um outro, diga-se logo, a quem se ama - possui alguma dimensão social para além ou aquém das determinações mais amplas da forma e da representação literárias? Não sei, mas tenho agora a convicção - e de que sobre isso Musil nos alerta cabalmente, a nós, "intelectuais" - de que o conformismo (o, digamos, "conformismo filosófico") do velho Törless ("um homem de espírito refinado e sensível", "uma dessas naturezas de esteta e intelectual que sentem paz observando as leis e seguindo em certa medida a moral da sociedade, pois isso as exime de terem de refletir sobre as coisas grosseiras que ficam muito abaixo das sutis emoções espirituais") é um conformismo de classe.

E será que eu estarei extrapolando de novo o âmbito de meu objeto se lembrar o quão triste e sintomático (de algo, seja lá o que for) é o fato de que essa mesma palavra distintiva que encerra o parágrafo anterior ainda designa o espaço de nossas "ações pedagógicas", como a nos lembrar o quanto os lugares de poder - as inferioridades e superioridades - estão implicados neles? O jovem Törless, não se esqueça, é uma espécie de "romance escolar".

Mas puxa vida! Férias são sagradas, ou pelo menos deveriam ser. Se pudesse eu cantaria agora, com o... Herva Doce, Menudo?: Vamos a la playa, ô, ô, ô, ô, ô. Mas me contento com The Clash em surf music, que no entanto exige (até pela ausência da letra) o complemento do próprio The Clash. E nem vou criticar Joe Strummer, que morreu mas ainda vive, e sua velha trupe, o que além de fácil seria leviano para quem os adora tanto (situação não muito diferente, bem se vê, da relativa aos "sociólogos da literatura"). Bem, pelo menos desses (então) jovens rebeldes com calças (rasgadas...) e literalmente "de primeiro mundo" nenhum goiano paraguaio pode dizer que são assim, tão "alienados".  


Charles Does Surf (surf music tribute to The Clash)

The Clash - Combat Rock

(O disco acima tem a, digamos, "Holiday in Camboja" do The Clash, "Straight to Hell"; mas vejam como sou simpático e dou preferência a este rito, e não ao ainda mais infernal dos Dead Kennedys.)

Ah, sim: no fundo, no fundo, a culpa deste post é de minha amiga Fabiana, que, por mera e desprevenida compaixão, me pediu para não abandonar "meus leitores" nas férias. O que, espero, significa que eu terei pelo menos uma leitora. Em todo caso, prometo que o post de "volta às aulas" será bem diferente.



Mas (calma, calma, Eberaldo) como é que eu menciono The Clash sem linkar com esses covers brazucas, o segundo, aliás, bigfieldense?:
Redson - London's Burning
(O Sonante Filho Vermelho é o líder do Cólera, um dos muitos The Clash brasileiros, além de "ter" essa banda cover dos clashes.)
Jennifer Magnética - Should I Stay or Should I Go
(Vale o mesmo para a J.M., eu ia dizer "no contexto de Campo Grande", mas por que excluir Campão desta terra em brasas cheia de porteiras?)

  

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