VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Não há genérico que sane esses males

“E nesses dias tão estranhos, fica a poeira se escondendo pelos cantos...”. Por muito tempo, essa canção da Legião Urbana, “Teatro dos vampiros”, foi a minha canção preferida, ou melhor: a “minha” canção. Quem viveu conscientemente os anos 90 certamente entende o motivo. “Vamos sair, mas não temos mais dinheiro; os meus amigos todos estão procurando emprego.” Quantas palavras sintetizaram com tanta propriedade o que foram esses anos quanto esses versos de Renato Russo, que eu estrago transformando em prosa?

Em 1995 eu tentava terminar o curso de Letras na UFMS, em Campo Grande. Minha namorada, Lucilene, estava grávida e eu precisava arrumar um emprego. Não era nada fácil, e qualquer coisa servia. Uma amiga, Débora, chegou a me ajudar a procurar uma vaga de frentista em postos de gasolina. Consegui algo melhor – revisor de um jornal semanal, o JBC, que pelo menos tinha uma página cultural com a qual eu também contribuía –, mas se não fosse a Dé acho que eu teria desistido.

Também trabalhei em outros “órgãos de imprensa” locais, felizmente sem assinar carteira, e mais tarde – depois de quase aceitar um bico rentável mas agourento numa campanha eleitoral –, fui para a imprensa sindical. Fazia os boletins do Sindicato dos Telefônicos e, depois, dos Eletricitários, onde assisti, no fundinho dos bastidores, a imposição dos PDVs, Planos de Demissão “Voluntária”, ou seja, as demissões em massa que visavam tornar as empresas mais "atrativas" para o sacrossanto mercado.

No centro de Campo Grande, a Praça Ary Coelho era um sinistro jardim de retirantes e desempregados, tentando se esquivar dos olhos da polícia, que aliás logo iniciou uma “política” de despachamento instantâneo, na rodoviária mesmo. Já o entorno desta, antes da “limpa” feita pelas autoridades, era um reduto de jovens viciados, muitas vezes crianças, vagando como zumbis (eram como os chamava meu amigo Sebastião) na busca desesperada por crack ou pasta-base, terminando a noite encolhidos nas calçadas, esquálidos e exaustos.

Foi na Ary Coelho que eu vivi uma experiência única – tola mas significativa – em minha vida. Perguntei a um cidadão, provavelmente desempregado, se ele podia me informar as horas, e ele me respondeu com um sonoro e raivoso NÃO. (A esquerda, por sua vez, em geral dizia um humilde sim... ao mercado, é claro.)

Próximo à rodoviária, lembro de um diálogo com um viciado, não tão jovem e muito inteligente, provavelmente com estudo e leituras. Quando eu lhe disse que já havia usado aquela enorme merda – pasta-base, a raspa do tacho da cocaína – quando adolescente, mas a havia largado para sempre, ele me olhou ansioso, esperançoso mesmo, e perguntou como eu havia conseguido parar. Eu comecei minhas explicações ingênuas e ele me lançou um olhar de desânimo: “Você nunca foi viciado...”. Era o mesmo que dizer: eu estou perdido para sempre. Tive muitos amigos que embarcaram nesse inferno; alguns sucumbiram e outros ainda lutam com ele.

Quando me mudei pra Campinas – onde, com minha bolsa de mestrado, só pude alugar um apartamento razoável à beira da Anhanguera, precisando pegar dois ônibus pra chegar à Unicamp –, Senna já havia morrido há alguns anos, mas uma de minhas grandes sensações era acompanhar, às vezes integrar indiretamente, as disputas automobilísticas nas vias estreitas do centro, onde dezenas ou centenas de lotações irregulares e quase sempre precárias concorriam em velocidade e brigavam por espaço no meio-fio com os ônibus, que, salvo engano, na época (como hoje) dispensavam motoristas e, sobretudo, os cobradores. Os donos ou empregados das lotações, naturalmente, eram muitas vezes felizes “beneficiários” dos PDVs da vida.

Mas as cenas mais impressionantes que vi em Campinas também foram na calçada. Uma senhora, com semblante e trajes humildes, havia chegado de algum lugar portando uma bagagem considerável e se instalara ali mesmo, à porta de um comércio naquela região. Com todo o aspecto de uma mãe de família, ela decaía a olhos vistos, a cada dia com os trajes mais rotos e o olhar mais desamparado. Como um cachorro abandonado, ela parecia esperar que alguém finalmente a reconhecesse ou acolhesse. E relutava em pedir esmolas, mas acabou fazendo isso abertamente.

E um sujeito, acreditem, de terno, gravata, pasta de executivo e não mais de 25 anos que, naquele mesmo lado da calçada, lamentava sua sorte em voz alta: “Eu não acreditava, eu não acreditava, mas taí, ó: eu rodei, eu me ferrei! Eu tô aqui, eu tô na rua!”. E inquiria os passantes: “Cê tá me vendo, cê tá vendo que eu tô aqui?! Na rua!”. Podiam ser mãe e filho, esses dois “desvalidos”, e é até possível que tenham mesmo se relacionado de alguma forma. Ou não, porque eu não me lembro de dias mais individualistas e egoístas que aqueles.

Bem, depois dessa crônica ligeira, cujo contexto é o auge do neoliberalismo tupiniquim do qual Fernando Collor foi o primeiro e malfadado regente, e o outro Fernando o mais bem sucedido –, um período em que, segundo a Veja, “a classe C chegou ao Paraíso”, só quero acrescentar o seguinte: espero – aliás, creio que todos devemos exigir – que as denúncias do jornalismo Amaury Ribeiro Jr. em A Privataria Tucana sejam rigorosamente apuradas, em tributo não só àqueles como a estes dias estranhos, quando o deus-mercado se revela uma entidade nada confiável. Porque se esse livro tão amplamente documentado não for a maior fraude do jornalismo investigativo brasileiro, ele mostra que havia – e ainda há – muito mais que poeira se escondendo pelos cantos.

Pra não esquecer - e combater - os maus espíritos:

Legião Urbana – Teatro dos vampiros

Nenhum comentário:

Postar um comentário