VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Nossa Palestina é aqui, sua língua o guarani


O governo de Israel foi repudiado internacionalmente pela sua política de assassinatos seletivos, de mortes deliberadas de lideranças palestinas, visando bloquear a luta desse povo pela suas terras, que foram ocupadas com a partilha compulsória da Palestina para criação do estado judeu. Mas esses assassinatos não impediram a continuidade da luta pela criação do Estado Palestino, que hoje, após décadas de dura resistência, já é reconhecido pela maioria dos países do mundo.

Foi no dia 29 de novembro de 1947 que a partilha da Palestina se deu, e desde então este é considerado pelos palestinos como um dia de resistência e afirmação deste povo aos seus territórios tradicionais, sua cultura e seu Estado. E foi também num dia de novembro, 25, no ano de 1983 que foi assassinado Marçal de Souza, líder guarani, um dos símbolos da resistência deste povo contra o extermínio físico e cultural. Duas datas simbólicas, na dura resistência desses povos.

A mesma política de assassinatos seletivos praticada por Israel é aplicada contra os povos indígenas de Mato Grosso do Sul há muito tempo. Um após um, ano após ano, vão tombando suas lideranças, numa “crônica de umas mortes anunciadas”, sob o olhar indiferente do Estado, como se os índios fossem seres humanos de segunda categoria. Caso após caso se encadeiam num fio de sangue onde salta aos olhos a omissão do Estado, em todas as esferas, para com uma situação dramática. Quanto sangue ainda será preciso correr para que se tome uma providência?

Para os que acham exagero essa comparação entre a Palestina ocupada e oprimida e a situação das comunidades indígenas de Mato Grosso Sul, particularmente os guaranis, basta uma visita a suas aldeias. Algumas são quase lugares de confinamento. Nós nos solidarizamos com a luta do povo Palestino, mas não podemos fechar nossos olhos para a nossa própria “Faixa de Gaza”.

Quantos assassinatos mais serão preciso ocorrer para que o Estado faça o que devia ter feito a muito tempo? Pois foi com a cumplicidade do Estado, quando não diretamente por ele, que essas comunidades sofreram o que podemos chamar tecnicamente de genocídio, o extermínio em massa de um povo. Como podemos aceitar que nosso país tenha recursos para fazer uma intervenção “pela paz” no Haiti, com o objetivo de ganhar respeito internacional, quando é incapaz de resolver uma situação que se arrasta há décadas sem solução dentro de nosso próprio território? Que exemplo de respeito aos direitos humanos nós passamos para o mundo?

A política de assassinatos seletivos não impediu a continuidade da luta do povo palestino. A cada líder que tombava, outro ocupava seu posto, porque as causas da origem daquela luta – a expulsão de suas terras, o confinamento em guetos e a inexistência de um Estado – ainda não foram resolvidas. Da mesma forma aqui. Após décadas de assassinatos seletivos de suas lideranças, de opressão territorial e cultural, os povos indígenas continuaram mantendo sua dura luta pela garantia de seus mínimos direitos, pelas suas terras ancestrais, pelo respeito enquanto seres humanos que tem sua própria história milenar de ocupação do continente americano.

Duas datas, dois dias, duas lutas em pontos diferentes do planeta, mas com um mesmo sentido: o levante de um povo contra a ignomínia, o desprezo, o esquecimento, a opressão material e espiritual. E lá na Palestina, como aqui, essa luta somente terá fim quando forem atacadas na raiz as causas de suas origens. Nossa Palestina é aqui, sua língua o guarani.

Não te mataram, Marçal, ampliaram a tua voz!

Eber Benjamim – Jornalista, membro do Centro de Documentação e Apoio aos Movimentos Populares


* * *

P.S. - Recebi este texto de meu amigo Eber por e-mail, mas só o li um bom tempo depois da data em que ele foi enviado, próxima ou correspondente à da morte de Marçal. Perco, assim, a data simbólica, mas não a premência da causa. Minha mestra Suzi Frankl Sperber também o leu, e, tendo declarado que gostou dele, fez algumas considerações, concernentes sobretudo à questão da Palestina, que publico como comentário ao post. Meu grato abraço ao Eber e à Suzi.

6 comentários:

  1. As observações da Suzi (o texto dos cineastas israelenses não coube, mas pode ser acessado pelo link abaixo do título):

    Há alguns acréscimos que seriam historicamente importantes:

    1. O atual Estado de Israel vem sendo governado, desde Benjamin Netanyahu, pela direita - extrema direita; os israelenses de esquerda são favoráveis a um Estado Palestino e lutam por isto.

    2. Após a 2. guerra, os judeus fortaleceram sua reivindicação por um país, o que já vinha sendo negociado desde o fim da Primeira Guerra Mundial. Diante da pressão internacional, em 1948, a Organização das Nações Unidas (ONU) propôs que a Palestina fosse dividida em dois países, um administrado pelos judeus e outro pelos próprios palestinos. A URSS e os países árabes participantes da ONU discordaram dessa proposta. Uma versão diz que foi porque acreditavam que a Palestina deveria dar origem somente a um Estado palestino. Apesar disso, Israel foi criado em maio de 1948 e até hoje não existe um Estado palestino. Vale a pena lembrar que os países árabes em verdade não queriam um Estado Palestino.

    3. Entendo que o assassinato de povos indígenas tem correspondido antes a um verdadeiro genocídio. Não se trata de questão política, mas econômica de eliminação dos proprietários legítimos de terras.

    4. Está escrito: "como se os índios fossem seres humanos de segunda categoria". Se fossem seres humanos de segunda categoria (não sei o que é isto), os assassinatos também seriam um horror! É antes o desejo de apagar a existência de seres vivos, a fim de criar uma terra arrasada - da qual querem se apropriar.

    5. Os palestinos que vivem no Estado de Israel - e os há em não tão pequena quantidade - têm os mesmos direitos de cidadania, sociais, econômicos que os cidadãos de fé judia, ou outra. Ninguém fala disto. Os índios brasileiros têm estatuto diferente dos cidadãos brasileiros digamos comuns.

    6. Não há confinamento em guetos! Os palestinos ocupam territórios e lá vivem normalmente. Veja o sentido de gueto, cf. Aurélio: Bairro, em qualquer cidade, onde são confinadas certas minorias por imposições econômicas e/ou raciais.

    7. "contra a ignomínia, o desprezo, o esquecimento, a opressão material e espiritual". Entendo que há diferenças a serem percebidas. O povo palestino tem seu direito a um Estado a fim de terem paz, pleno desenvolvimento, autonomia não ameaçada. Aqui não se reconhece que os povos indígenas têm direito a um Estado! E eles são tratados verdadeiramente com os adjetivos acima. Não há opressão material e espiritual contra os palestinos que vivem em Israel, nem esquecimento e desprezo. Há os que lá lutam por um Estado palestino - como Daniel Barenboim, Amos Oz, e, veja:

    Cineastas israelenses lançam manifesto condenando ataques de Israel
    (http://www.pstu.org.br/internacional_materia.asp?id=5418&ida=0)

    Abraços afetuosos e saudosos - e muito gratos! da

    Suzi Frankl Sperber

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  2. Eis aí uma série de questões muito mais que muito graves, sensíveis e, absurdamente, invisíveis...

    No tocante a ocupação da Palestina por Israel, para além do fato absurdo de que a ÚNICA RESOLUÇÃO DA ONU que Israel segue é a da criação do referido Estado, ainda sobre isso, tem um livro de Tariq Ali (nascido onde hoje é o Paquistão, mas antes da criação de tal Estado), que chama Confrontos de Fundamentalismos, em que o autor explica à fundo a questão do Mundo Árabe/Islâmico, não só da Palestina, mas como de toda a região. Mas, realmente, não dá mesmo pra desviar o foco da nossa Palestina...

    De fato, (se não me engano) foi Darcy Ribeiro que disse, pelos idos de 1970/1980 que, na época, tinham índios estudando francês, inglês, viajando pro exterior e não demoraria muito até eles iream na ONU pra exigirem a criação de um País indígena dentro do Brasil, e, na opinão do indianista, a ONU daria guarida ao pedido...

    Admiro demais o Darcy (e me desculpo pelo erro possível de não ter sido ele que disse isso), mas, de todo modo, a ingenuidade dupla se mostra em acreditar na ONU e duvidar do genocídio perpetrado contra os verdadeiros (e genuínos) habitantes das terras que chamamos de Brasil...

    Triste demais da conta tudo isso!

    E, ainda, pralém de Palestinos e Índios, mundo a fora, na lista dos genocídios de antes de ontem, de ontem e de agora, entre outros, ainda temos os casos dos Tutsis (em Ruanda) ou as demais atrocidades africanas, seja no Congo, na Somália, na Nigéria, na Libperia, bem como contra os Curdos, em muitos países mundo a fora, mas, de fato, ninguém dá muita bola...

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  3. Maurício Tratemberg escreveu um artigo demonstrando como os trabalhadores são super- explorados pelas empresa israelenses, seus salários são inferiores, mesmo exercendo as mesmas funções.A mais-valia extraída dos palestinos é maior do que a dos judeus.

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  4. " Será que os árabes nos Territórios são os nossos burros de carga? Você achava o quê, que eles concordariam para sempre em ser nossos lenhadores e fornecedores de água? Que concordariam em ser nossos servos domésticos por toda a eternidade, amém? Será que eles não são seres humanos? Qualquer Zâmbia e Gâmbia são países independentes hoje em dia, e só os árabes nos Territórios têm que continuar até a última geração a limpar calados a merda dos nossos banheiros, varrer as nossas ruas, lavar os nossos pratos nos restaurantes, e limpar as bundas em nossos asilos de idosos, e ainda dizer muito obrigado? Você concordaria se o mais ínfimo dos anti-semitas ucranianos planejasse um futuro como esse para os judeus?"

    Amós Oz, Fima, pág. 179.


    " Em todo este nosso miserável país, não se consegue encontrar um único pedreiro judeu, nem um enfermeiro nem um jardineiro. Foi isto que os seus Territórios fizeram com o sonho sionista! Os árabes estão construindo a terra, enquanto ficamos sentados conversando sobre o Leviatã e o touro selvagem. E depois os matamos diariamente, e também os filhos deles, só porque eles têm o atrevimento de não se sentirem felizes e agradecidos pelo privilégio de limpar os esgotos do povo eleito até a chegada do Messias."

    Idem, pág. 180.

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  5. Acho que há um risco muito grande, na discussão sobre a Palestina, em reduzir tudo ao aspecto racialista da questão; o risco de, semelhantemente à forma como muitas feministas se opõem aos indivíduos do sexo masculino "em geral", perder de vista as mazelas e opressões em comum. Os judeus conscientes, como Amós Oz, sabem que cada recrudescimento do conflito gera mais opressão para os habitantes de Israel, também. É preciso ver a lógica que paira sobre tudo isso, e ela está além das questões locais e religiosas: é a lógica da dominação imperialista, que esmaga tanto os palestinos quanto os israelenses pobres, que também existem.

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  6. A revoltante situação acima agrava-se com a indiferença não só do Estado como também da população, que só desperta a atenção para situações semelhantes - isto quando desperta - após exibição do quadro em algum programa sensacionalista da mídia eletrônica, sobretudo televiisiva.
    E como tais programas atém-se mais às questões ditas sensacionalistas, que dão mais ibope, deixam seus editores de contemplar questões como a descrita no artigo acima.
    Consequentemente à deliberada omissão midiática potencializa-se a omissão da população mediante os repudiantes absurdos ocorridos ante os próprios olhos e que ao largo das embotadas "consciências".

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