VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

sábado, 29 de junho de 2019

Um Brasil procê ver (ABrazylForYouSee)



I

Chegaram quase no fim da tarde, num horário em que já era perigoso entrar na Mata. Sem falar que, apesar das carnes rijas e das peles de bebê, eram Velhos (Oldyes): ele beirava os cem, ela os cento e vinte. No dia seguinte, garantiu-lhes o guia, teriam todo o tempo do mundo.

– AllRyght, respondeu o Velho.

O guia foi dormir tranquilo, mas eles não. WhatTheFückey, não tinham cruzado o AbismoDoPanamá pra dormir! E tanto melhor, livrarem-se logo do guia. Teriam de fazer isso cedo ou tarde, e, de qualquer forma, o GuiaQuântico (QGuyde) era muito mais confiável.

Saíram às escondidas, depois de pegarem as mochilas com os Apetrechos (Apparatus), incluindo o DespistadorQuântico (QDeceyver), que os ocultaria dos rastreadores e câmeras de segurança. Um mecanismo polêmico, mas eles tinham licença de uso: eram pais e avós de AgentesFederais.

Foram a pé, confiantes na saúde, no ânimo e nos Apetrechos. Em todo caso, estes incluíam relaxadores quânticos de última geração. Tudo nos conformes para viverem uma verdadeira GrandeAventura (BygAdventure), conforme combinaram e selaram com um aperto de mãos, olhos nos olhos, faros apurados. Cheiravam a óleos.

Ele ia na frente, por pura convenção. Sabia que quem guiava, de fato, era ela, que pisava mais duro. Nunca expressaram a menor consciência disso, mas uma determinada pisada dela o fazia parar, outra mover-se, outra virar à esquerda, outra à direita.

Seguiam pela RotaDasPedrasRetorcidas, o caminho mais longo e mais árduo. Queriam apreciar a paisagem devastada. Quando alcançaram a Mata já era noite.

Na Aldeia, o Pai disse ao Filho:

Estão vindo. Vai.

E o Filho foi.

II

Não muito longe da entrada da Mata, os Velhos encontraram um EspécimeAnimal e mataram-no. Há meses não viam um, pelo menos desse porte, em seu habitat natural. Conforme o rodízio, coube ao Velho a primeira tentativa. Mas ele tinha mania de não usar os RecursosQuânticosDePrecisão (QPrecysyonTools) em caçadas, por isso o bicho fugiu; por sorte, ela foi rápida e eficaz o bastante para abatê-lo.

Cumpre notar que agiam dentro da lei, aliás, faziam-na valer: há mais de um século, mamíferos e aves só podiam viver em cativeiro ou em campos de caça privados. Não era o caso da MataDoNorte do GrandeDomínioSul (BygSouthDomayn), administrado pelos ClarosSulistas (SouthmenPale), os legítimos descendentes dos AntigosSenhores da EraAntiga (AntyquosEra), mas que ainda continha vestígios de PovosPréAntigos, os SemiHumanos, principalmente nas regiões dizimadas pela DerradeiraGuerra (UltymateWarUWar).

Com uma hora e pouco de caminhada, chegaram a uma gruta, a primeira e última indicada no GuiaQuântico. Dali em diante, tudo era incerto: desde a UWar, as instabilidades magnéticas e radioativas da área, uma vasta ÁreaInstável de milhares de quilômetros, impediam que o QGuyde atualizasse o mapeamento. Na verdade, ele o atualizava e, ao mesmo tempo, incluía uma miríade de potenciais eventos futuros no resultado, gerando um caos indecifrável.

Não era isso, naturalmente, que os havia atraído até ali, e sim os boatos, sempre desmentidos mas nunca refutados, acerca de um Brasil (Brazyl) incrustado naquela ÁreaInstável. Por muito tempo os cientistas da BAN (BygAmerycanNatyon) sequer reconheceram a existência dos Brasis, atribuindo-os às mitologias nativas da região, mas nas últimas décadas vários exemplares haviam sido registrados e mesmo apreendidos para fins de estudo e exibição pública.

Acamparam na entrada da gruta: o QGuyde indicava a presença de substâncias desconhecidas, potencialmente tóxicas, no interior. O ar nauseante da selva os excitava, por isso fizeram SexoProgramado: sob hipótese alguma ela viajava sem o QSex. Escolheram, como quase sempre, o Programa112, ou VórticeExtático, também chamado de CavalgadaGiratória. Quando ela chegou ao orgasmo, ele já estava há meia hora no 100% automático, roncando sonoramente. Esquecera de trazer o InibidorSônico, o idiota.

A vários quilômetros dali, o Filho apurava os sentidos, confirmando a direção indicada pelo Pai.

III

Acordaram com o alerta do QGuyde tão logo este identificou a presença do CorpoEstranho no limite do seu raio de ação, ou seja, a menos de cem metros da gruta.

O Velho foi o primeiro a ver o Filho. Dessa vez não vacilou: ativou o AparatoBélicoCompleto (ApparatusBellicusCompletusABC), incluindo os Recursos DePrecisão.

– Paygun!, gritou.

– Pagan, corrigiu a Velha.

Não! No, no! Khrystyan!

O Filho exibia a DuplaSaudaçãoDaTerraUnida: uma continência com a mão direita e, com a esquerda, o GestoDaTrindade (TrynytyHand), vulgarmente conhecido como UmDoisTrês (OneTwoThree).

Impressionado com a perfeição da pronúncia e do gesto (os três dedos firmemente arqueados para trás), o Velho passou o Aparato do ModoPréAtivo para o ModoDeAlerta.

– OnKnees!, gritou.

O Filho se ajoelhou.

– YouKhrystyan?

– Yes, respondeu o Filho.

– Swear!

– YSwear!

– YnLat'Englysh!

– YTestor!

– YnNamenyPatry!

– YTestor!

– YnNamenyFylly!

– YTestor!

– YnNamenyMöney!

– YTestor!

– VeryWell... NowYKyllYou!!

Não! Eu tenho um Brasil procê... Sorry! ABrazylForYouSee!

– What?!, fez o Velho.

– ABrazylForYouSee, repetiu o Filho.

– OhYes!, fez a Velha.

– KallMeSyr!, gritou o Velho para o Filho.

– YesSyr! SorrySyr!

O Pai o havia instruído muito bem.

IV

Os Velhos seguiram tranquilos, confiantes e em boa velocidade até o LimiteDeSegurança. Valiam-se de seus AceleradoresQuânticos (QAcceleretors); o Filho ia entre os dois, meio que correndo para não ser totalmente arrastado. A partir dali, no entanto, os Apetrechos não funcionariam mais; não em condição seguras, pelo menos.

– TooLong?, inquiriu o Velho.

– NoSyr!, respondeu o Filho, repetindo a DuplaSaudação.

Aconselhou-os, então, a deixarem ali os Apetrechos, que pesavam um bocado, principalmente o AparatoBélico. Eram impermeáveis, mesmo a chuvas ácidas, e inamovíveis por terceiros. Mas os Velhos se recusaram energicamente. Sobretudo ele, que amava terrivelmente seu Aparato: seu NúcleoFamiliar (FamylyarNukleus) havia feito fortuna fabricando MiniBombasAtômicas (MynyABombs) no período conhecido como EstadoDeLoucura (KrazyState).

Dois quilômetros adiante, porém, atingiram o GrandeRioMorto (BygDeadRyver) que atravessava e estendia-se para além da Mata. Era um vasto e caudaloso rio de lama química, semissólida e intensamente colorida.

– OhWonderful!, exclamou a Velha.

Ambos olhavam devidamente embasbacados, com os queixos caídos e os punhos nas cinturas. Ele, na verdade, fingia: era insensível à beleza, como ela constatara inúmeras vezes. Mas seguia fielmente as convenções.

O fato é que ali tiveram de deixar os Apetrechos. O trajeto fazia-se pelos pontos menos instáveis do lamaçal, alguns arriscados, embora em outros fosse possível até montar acampamento, conforme garantiu o Filho. Mas não era a ideia: queriam chegar à Aldeia até a LuaAlta (HyghMoon). O Filho teria preferido descansar, mas lhes assegurou que conseguiriam.

V

Foi uma travessia lenta e difícil, agravada pela discussão dos Velhos acerca do cheiro do rio, que ele afirmava ser fétido e ela Wonderful, além da pouca destreza dele. A certa altura, deu um mau passo e enfiou-se na lama até a cintura.

– OhMyGödey! YDyyng! HelpPlease! ForMyMöney!

Ela arrancou-o de lá de qualquer jeito, ardendo de vergonha do Filho, que se manteve discreta e educadamente de costas.

O Velho se desculpou: sentia-se desamparado sem os Apetrechos. Ela o mandou calar a boca: se estivesse com os Apetrechos, teria afundado até o pescoço.

Ambos, então, quedaram pasmos: ela nunca o havia advertido – muito menos ofendido – daquela forma. Não, pelo menos, em voz alta o suficiente para que ele ouvisse. Lembraram-se, então – ela primeiro que ele –, da costumeira advertência acerca das InstabilidadesPsíquicas provocadas pela permanência excessiva em ÁreasInstáveis.

Ele teve medo. Ela tomou a dianteira, apertando o passo.

VI

Não houve mais incidentes até a Aldeia. Chegaram, de fato, com a LuaAlta luzindo, só e esverdeada, sobre suas cabeças.

Esverdeadas, também, as paredes de concreto da Aldeia, tanto pelo avanço das trepadeiras quanto pela corrosão do ar. O Pai os aguardava sob um grande PórticoAntigo.

O Velho amava a ArquiteturaAntiga, e deplorou encontrar a construção, que conhecia de imagens anteriores à UWar, em condições tão lastimáveis. Mesmo sabendo da condição inabitável das ÁreasInstáveis, nunca entendera como os PovosAntigos puderam abandonar obras e lugares tão magníficos nas mãos dos SemiHumanos. No alto do Pórtico, uma EstátuaVendada, cujo significado se perdera na DerradeiraGuerra, empunhava sua EspadaPréAntiga e sua enigmática EngrenagemDePratos.

Mesmo esgotado, o Velho deu início imediato ao RitoDeCumprimentoDiferencial:

– OnKnees!

– Non'This, disse o Pai. WeSendHere!

A pronúncia era ainda melhor que a do Filho. Indeciso, o Velho olhou para a Velha. Esta sacou um recipiente alongado dos seios fartos, no qual se lia, em letras douradas, o LemaSagrado da BANYnGödey AndMöneyWeTrust, e que, aberto, revelou um novo brilho esverdeado, e muito mais intenso que o da lua.

– QDöllars!

Eles deviam saber, a julgar pelo NívelLinguístico e de ConhecimentoDosRitos, que as MoedasQuânticas dependiam da emanação dos SinaisVitais de seus Fiadores para terem Valor.

– WeNoNeedMöney, respondeu o Pai.

Ela gelou.

– NoEatHumansToo.

Ela suspirou.

O Velho tinha se borrado todo. O tecido nanotecnológico do Uniforme estava desregulado, e, ao invés de absorver as fezes, banhou-o com elas.

– K'mon, disse o Pai. SeeTheZyl.

– Zyl?!, fez a Velha.

– Zyl, Brazyl.

– OhYes!

Seguiram por uma trilha espinhenta. Os Uniformes, ao invés de protegerem do incômodo das espetadas, intensificava-o. O Velho tentou se coçar mas a Velha impediu-o com um tapa.

– Quyet!

Ele recuou, assustado e acanhado.

Depois subiram por um MorroDeEntulho, na verdade um GrandeAnelDeEntulhoDerretido cuja vista se perdia de ambos os lados. Os Uniformes passaram a absorver e intensificar a radioatividade do ambiente, de modo que o Velho e a Velha tiveram de livrar-se deles. Seguiram nus, como o Pai e o Filho que iam à frente.

Fizeram, então, a travessia das AreiasPretas, longa e tensa, imersos no breu absoluto afora o brilho verde da lua. Alguns quilômetros adiante, chegaram a outro AnelAtômicoGeológico, dessa vez na forma de uma leve depressão que exalava uma umidade nauseabunda. Na iminência de adentrá-la, a Velha curvou-se, dobrou os joelhos e vomitou. O Velho, que vinha transtornado e excitado atrás dela, penetrou-a sofregamente, com o produto de sua primeira ereção espontânea em quase trinta anos, fazendo-a atirar-se urrando na depressão. O Pai e o Filho precisaram socorrê-la.

O Velho, confuso mas afoito, lambuzado de esperma e outras coisas, seguiu em frente:

K'monBastards!

– KeepKalm! Yt'sKlose, assegurou o Pai.

Uma hora depois de ultrapassarem a ravina, ordenou:

– Stop!

O Filho já havia estacado a dois passos. Os Velhos, arrastando-se atrás, deixaram a cabeça descansar no pó vermelho do ChãoImpuro.

VII

Os primeiros raios solares, pálidos e acinzentados, tremulavam no horizonte. No fundo da cratera, o enorme CarvãoAceso ardia com uma violência trêmula e estéril, agonizando em seu próprio calor. Não demoraria trinta anos para se apagar, certamente dando origem a um DiamanteMorto (DyamondDye). O decepcionante nos Brasis era isso: tão logo se extinguiam, seus núcleos se tornavam DiamantesMortos, de BrilhoZero. Ainda assim, eram sempre impressionantes. Para muitos, o maior espetáculo da Terra.

Os Velhos já haviam visto Brasis maiores, mas jamais numa ÁreaInstável e, muito menos, Impura como aquela: Brasis que ardiam em GrandesMostras, caríssimas, para muito poucos, mas não exclusivamente para eles e seus olhos ávidos.

Empenharam-se em obter a Visão (Vysyon). A Velha, como sempre, foi a primeira a vislumbrar o EspíritoBraseiro (BrazyerSpyryt) no âmago da imensa pedra ardente. Mas logo o Velho também o distinguiu, sentindo-se excitar de novo.

O Espírito, no cerne do Brasil, agitava-se num frenesi de saltos descontrolados, lançando mãos, pés e joelhos para o alto como um ServoAutômato em pane, girando sobre si mesmo como um SimuladorDeFuracões, vibrando como um VibradorQuântico, mas com tal leveza e graça, com tal promessa de ÊxtaseArdente, que fazia quem quer que o visse querer juntar-se a ele. Por isso as grades de proteção eram obrigatórias nas GrandesMostras.

– ALyttleAndBeautyDevyl, balbuciou o Velho.

– ABygAndBeautyAndLovelyDevyl, corrigiu a Velha.

Nunca, antes, tinham sentido sua FrialdadeInterior se aquecer de forma tão intensa como diante daquela Visão. Ela pulou primeiro. Ele ainda vacilou um instante, mas o Pai ajudou-o, de leve, com o bico do pé.

O Filho, exausto e um pouco melancólico, perguntou qual dos corpos deveria ser destinado a GRANDDANU, o GrandeDeusDoAbismoNuclear. O Pai respondeu, sem vacilar e em bom português:

O dele, claro. O Brasil merece o melhor.

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