Eu
não queria ter terminado 2016 sem ter publicado alguns posts. Mas
fazer o quê, enquanto eu não puder dizer “antes cedo do que
tarde”, “antes tarde do que nunca” vai continuar sendo meu
lema.
Enfim,
este post é um deles. Pior que o atraso só tornou as coisas mais
complicadas, pois o que deveria ser um texto sobre duas bandas, agora
deve ser sobre quatro, já que as duas por assim dizer se duplicaram.
E se antes eu não sabia muito bem o que dizer, já que sou um
“crítico musical” totalmente desabilitado, pois não sou músico,
agora sei muito menos. Mas vamos lá. No fim das contas, isso vai
acabar sendo mais um texto nada crítico em louvor ao underground do
Estado – agora, não só de Campo Grande mas também de Corumbá.
Este
é o momento, aliás, de eu declarar que, desde que escrevi pela
última vez sobre o rock da capital, pouca coisa tem me sido mais
grata do que a descoberta do vigor e da qualidade que, embora
obviamente em números menores, também viceja no da Cidade Branca. E
mais gratificante ainda foi descobrir que esse vigor deve muito à
cena que mal se esboçava quando saí de lá, no comecinho da década
de 90; que amigos da época não só persistiram na cena como a
enriqueceram com projetos de qualidade indiscutível, como a
Resistência Suicida e a Sacrifício (que teve o Diogo Zarate da Jennifer Magnética nas baquetas), respectivamente dos camaradas
velhos de guerra Lorenzo e Dição.
Resistência Suicida |
E aqui eu me permito um parágrafo à parte pra registrar a surpresa e a
gratidão por descobrir, já há alguns anos, que a minha “Arquivo
de guerra” (minha entre aspas, porque a parte musical é fruto de
uma costura coletiva) ocupa lugar de honra no repertório da
Resistência, que por sinal resiste cada vez mais firme.
Capitaneadas
pelo guitarrista e vocalista Gabriel Omar Postigliatti, as bandas
corumbaenses de que vou falar (e já vou avisando que essa primeira
parte deve ficar exclusivamente nelas) emergem diretamente dessa
cena. Não por acaso, até outro dia Gabriel segurava o baixo na
segunda formação da Resistência. Foi, aliás, o próprio Lorenzo o
primeiro a me falar, com o entusiasmo de um verdadeiro apoiador, da primeira banda do Gabriel.
A
velha carne, cujos primórdios datam de 2009, é um power trio
formado pelos hermanos Gabriel (guitarra e voz), Rafael Omar
Postigliatti (ex-baixo, atual bateria) e Ian Vitor (baixo). Uma
referência que desde o começo me pareceu muito marcante na banda é
a do grunge, principalmente Nirvana e Alice in Chains, mas a esse
respeito Gabriel me esclareceu que há uma concomitância e certa
afinidade entre a banda e movimento pós-grunge Stoner Rock. Outra
vez, ele a descreveu como uma espécie de The Doors (de fato, vide
versos como “E o céu serve de leito / Pra transa do dia com a
noite”, que remetem aos de “Break on through”, de ) com uma
pegada punk.
Mas
com certeza as peculiaridades d’A
velha carne também se devem a outras vivências e influências.
Entre estas, um pouco de atenção às letras e ao próprio nome da
banda (mas não vou entrar em detalhes) revela ecos de ninguém menos
que os Titãs; os velhos Titãs, bem entendido, dos anos 80 e começo
dos 90, apesar da roupagem pop que envolve as canções mesmo dessas
fases áureas. Por outro lado, as performances de Gabriel às vezes
me lembram as de Paulo Miklos (apesar dos tons, timbres e estilos
muito diferentes), que, como ele (por exemplo, em “Diversão”),
tenta extrair o máximo de sua voz.
A velha carne (formação atual) |
E
se eu brinquei com a palavra “hermanos”, não foi por acaso: em
que pese todas as broncas que já levei dos irmãos Omar por causa
disso, em que pese a sonoridade muito mais suave (pelo menos a partir
do segundo álbum), as inflexões ultradelicadas dos vocais de
Marcelo Camelo, etc., eu sustento que há ressonâncias diretas da
banda carioca na corumbanse. Algo, aliás, que se coaduna com os
vínculos quase umbilicais entre Corumbá e o Rio. Não que A velha
tenha algo a ver com o samba, mas confira o leitor, por exemplo, a
introdução de “Coração nobre, espírio podre”, a faixa que
abre a demo gravada em 2015 (ver os “anexos” abaixo), e me diga
se não há um swing meio los hermanístico aí. E pelo menos uma
letra, a de “Conselho”, me remete diretamente a algumas dos
Hermanos:
O
problema que você apresenta nos pertence também
Eu
ouvirei um pouco, tentarei ajudar
Nós
andamos rumo ao fim da estrada sem saída
Muito mais que as influências, porém, são propriamente as vivências que fazem d’A velha carne uma banda única, e uma das melhores do underground brasileiro. O que há de mais forte e singular nas canções, sobretudo nas letras, de Gabriel Omar é a forma como elas, mais que espelhar, exalam as carnes, as almas, o sol e os chãos calcinantes da velha Cidade Branca, como se o som pesado e distorcido da banda emanasse diretamente de seu asfalto tórrido. Eu mesmo já fiz versos não muito distantes destes de “Corpo líquido”, a última faixa da demo (e essas afinidades me deixam tão feliz que me permiti incluir a versão “punkacústica” da minha “Agonia” nos anexos):
Derretido
pelo calor do sol
Tornou-se
um líquido no asfalto
As
rodas dos carro te esparramam
O
salto da moça te perfura
O
sapato do cara te esmaga
Mais
que isso, ainda, é admirável como as canções d’A velha extraem
desse lugar tão aparentemente isolado algo de universal. A província
deformada, como eu já quis chamá-la, com suas quebradas sujas, seus
labirintos físicos e mentais povoados de fantasmas. Não por acaso,
“Tudo que se sente” é a canção-chave da banda:
Tão
profundo era o sono que
Pesadelos
e sonhos pareciam reais
Através
de desejos secretos e obscenos
Lembranças
remotas quase esquecidas
Tudo
que se sente embutido na velha carne
Em
outras letras, as agruras psicológicas se desdobram em imagens
metafísicas, que na voz meio operística de Gabriel compõem
espécies de hinos antievangélicos. Além de “Coração nobre,
espírito podre”, é o caso de “Tema da descida”, também da
fase inicial da banda:
Descendo
a escada até tocar o chão
Ouvi
o sussurro de Deus
Olhos
e punhos fechados
Até
onde posso descer?
Encontre-me
embaixo
Na
terra dos anjos sem asas
Um
aparte pra dizer que o ar dantesco desses versos me lembra os do
poeta campograndense Jânder Baltazar Rodrigues, autor do Campo Grande do Inferno; com a diferença, é
claro, de que nos de Gabriel Omar o sopro “metafísico” convive
com figurações não só carnais como libidinais.
O
fato é que pelo nível e atualidade das letras, pela densidade e
vigor sonoros, com uma qualidade que aumentou com a ida de Rafael
para a bateria (na demo, as baquetas são de um tal de o que a demo
não registra, mas o vídeo ao vivo de “Corpo líquido” sim), A
velha carne tem tudo para ocupar um lugar de destaque, mais que no
underground local ou mesmo nacional, na cena musical brasileira:
nesses anos temerários, em que as farras (ricas e pobres) do
populismo finalmente acabaram, talvez não seja de espantar se o rock
brasileiro finalmente renascer das cinzas.
Se
a alma punk está presente n’A velha carne, A cidade e o
selvagem tem a alma e a carne punks. Fundamental quanto a isso é
a presença de dois músicos oriundos da excelente Alcoólatras, que
há poucos dias impressionava com a autenticidade de seus covers
raivosos de Cólera, The Clash, Dead Kennedy e Ramones e agora
trabalha suas próprias criações: Felipo Ronaldo, nas baquetas, e
no baixo Rodrigo Daltro, vocalista dos Alcoólatras.
A cidade e o selvagem |
Mas
a sonoridade d’A cidade, projeto bem mais recente, não deixa de
conter elementos experimentais (principalmente quando um charango, de João Carlos Ibanhez, se soma à banda), assim como as letras, de cunho muito
mais político e social (há, inclusive, uma sobre os sem terra), não
deixam de conter elementos existenciais. E certamente é algo
importante que esses elementos se casem tão bem, por exemplo, em
“Escravo da rotina”, não só pela qualidade que isso atesta como
porque faz perguntar se os trabalhadores brasileiros já não
estariam prontos pra esse tipo de percepção.
Aos
berros um olhar
Tentava
acalmar o mundo
Estava
no lugar errado
Para
se tentar sozinho
Então,
os olhos ficaram cegos
Pelo
brilho das correntes
Correntes,
correntes
(Não
deixam suas ideias desabrocharem)
São
os ferros que prendem o cérebro ancorado
Do
escravo da rotina
Depois
de um dia exaustivo de trabalho
Basta
refletir um pouco mais
Saia
do seu leito
Olhe
para fora
Mais
estranha e dissonante, “Sistema de
suor” volta a encenar a fusão de coisas dos mundos com visões quase transcendentais:
No
buraco do mundo
A
carniça fede e os urubus se excitam
O
clima é pesado, o coração martela
Um
medo compartilhado
Alimenta
a fome dos patrões
Num
olhar para o alto
Vê-se
o pano de fundo, o céu
A
fumaça passeia e se une às nuvens carregadas sobre todos
Sem
mais o que dizer. Na minha humilde opinião, essas bandas, assim como
os Alquimistas e a Sexyburger, das quais vou falar na
continuação deste post, merecem figurar na proa do cenário
underground nacional. Essa cena que, volto a insistir, nos próximos anos talvez se
revele mais forte e importante do que se pensa. Nossos dias de Seattle hão de chegar.
“Anexos”
Excelente! não conhecia estas vivências corumbaenses do rock nem essa capacidade de análise musical do Ravel, que teima eu não dizer-se crítico. E se isso não for crítica, que não o seja, seja outra coisa, mas seja. Parabéns! precisamos dos dizeres de quem tem um olhar sensível à arte.
ResponderExcluirJair Damasceno
Vale a pena conferir Jair.
ResponderExcluirMuito boa palavras pra descrever os meninos...sao muito bons mexxmo.
Parabéns pelo texto, Ravel! Muito bom o CD d'A velha carne também! Valeu por compartilhar!
ResponderExcluirAbraço,
Fábio Df