VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Muito lixo, muito luxo, mas também algum sumo (inda que espectral)


Vi esses dias, num programa em família, o novo blockbuster animado da Blue Sky. Sensorialmente, é uma boa experiência: o Chico, não estivéssemos sob o teto de um templo que nos tolhia o céu (azul escuro, àquela hora), talvez saísse voando pelo mesmo. Estética e ideologicamente, é um caso a se discutir. Inclusive, a meu ver - e com o perdão do pedagogismo -, com as crianças, pelo menos a partir de certa idade.

Rio, segundo dizem - e embora o roteiro seja de Don Rhymer -, é um projeto pessoal do diretor Carlos Saldanha. Sem ser uma obra-prima, não é um mau filme. Comparado ao grande sucesso do estúdio (e de Saldanha), a série A era do gelo, é menos grandioso (sem demérito para as utraestilizadas "tomadas aéreas" da Cidade Maravilhosa), com um roteiro muito mais simples mas também menos histriônico, sem se tornar tedioso em nenhum momento. É um pouco menos sádico, também, a bem da verdade quase complacente com os "do mal", algo em que certamente entra, com o perdão da rima, alguma má consciência social.

Enquanto entidade moral-metafísica, aliás, o "mal" fica a meio caminho da naturalização e da condição propriamente social, já que seu principal representante fáunico, uma cacatua-monstro, é um pequeno refugo da indústria cultural, embora também, na velha ideologia do moralismo individualista, uma vítima de sua própria vaidade. E se aos bandidos humanos não cabe o benefício dessas explicações, de certa forma sua condição se reflete na do personagem que é o núcleo da "mensagem humanitária" (fora a "ecológica") do filme, ou seja, o menino (convenientemente, um "pretinho") a meio caminho da criminalidade, e pelo qual um dos traficantes tem particular simpatia. Ou seja, mesmo os monstros não são tão monstros assim, e podem ter sido, um dia, humanos. Muito bonito e correto, mas, na forma como é construído, francamente complacente com o grau de desumanização a que chegamos, e nem um pouco sensível aos fundamentos político-econômicos desse estado de coisas. Mas, enfim, é um filme para crianças que tenta abordar assuntos sérios de uma forma minimamente responsável.

Ou não tão responsável assim? Afinal, que dizer desse fato ao mesmo tempo grotesco e pueril que é a falsificação, digamos, ecossistêmica do enredo, ou seja, o fato de as araras que protogonizam a história estarem deslocadas do que foi um dia seu habitat natural? (Sobre isso, cf. este post.) Sem falar nesse outro, de que o filme fantasia uma salvação para um espécie já extinta sem alertar para isso. É claro, a melancolia não é um sentimento que se inculque nas crianças nas horas de lazer, mas acho que isso só torna a morbidez latente mais pulsante sob a película das conveniências - como aliás ocorre em A era do gelo, com a diferença de que neste caso o homem não desempenhou nenhum papel no processo em questão.

Quanto à questão do deslocamento geográfico, penso que, para além de nossos sempre nocivos centrismos geopolíticos (escrevo isso como carioca), estamos diante de outra demonstração de que o Brasil continua a ser visto como massa moldável às conveniências (de novo ela), no caso, evidentemente, às simbólico-mercadológicas implicadas na cor azul. Quando o casal formado pelo ambientalista brasileiro e a ex-proprietária (de um "produto" brasileiro, e ainda que "acidental") se unem na construção de uma espécie de espaço ecoutópico que abriga também o pequeno refugo humano de nossa tragédia social, tem-se a impressão de que ainda aí grassa aquela palavra-de-ordem anunciada por Raul Seixas (outro baiano, aliás, que, assim como a arara Blu, transitou de seu Estado para os EUA e daí para o Rio), segundo a qual "a solução é alugar o Brasil". E aí já soa bem mais perniciosa a justificativa com que o Ultraje a Rigor (a banda paulistana mais carioca dos anos oitenta) se consolava da censura às imagens de sexo na tevê: "Vá lá, vai ver que é pelas crianças"...

E que dizer, ainda, dos maquinhos batedores de carteira? Se há, de fato, macacos furtadores, não creio que se associem, pelo menos espontaneamente, a marginais humanos como os do filme (salvo engano, aliás, todos "morenos"). Nesse caso, a naturalização e os processos sociais se enlançam na forma do clichê mais pernicioso, e tanto mais porquanto perfeitamente consagrado.

Mas não quero ser injusto. Rio é um belo filme, que não vai muito além mas também não se esgota na plasticidade viva, na musicalidade envolvente e no enredo simples mas engenhoso. Disso tudo, emana (vejam que sublimo a coisa) pelo menos um sumo moral: a confiança, sentimento mais do que valioso em tempos sombrios como estes. Fosse um pouquinho mais sério (um pouco mais paulistano, talvez), poderíamos ouvrir em sua trilha sonora os versos de "Para ser humano", do Ira!:

Olhe para o ser humano
E tente nele confiar
Porque esse é um mundo injusto
A se autodetonar
Porque esse é um mundo incerto
Que seus filhos vão habitar

Esse gesto, afinal, é o que o casal de protagonistas (humanos) concede ao menino-tipo, síntese puerilmente positiva do herói-bandido que habita nosso imaginário, muito embora ela, a ex-proprietária da arara e futura tutora do menino, a certa altura se arrependa desse gesto, exigindo dele, o menino, a ação necessária para reconquistá-la - a confiança e o direito a uma vida melhor, quiçá "de primeiro mundo", em solo, águas e espaço aéreo nacionais. Tudo muito bonito e esperançoso, mas não menos suspeito, a própria esperança se deixando assimilar pela lógica ideológico-espectral. Trata-se, afinal, de uma semente viva ou de um detrito a ser reciclado por mãos hábeis o bastante?

Enfim, se é o caso de escolher uma imagem que sintetiza os méritos e deméritos desse filme, eu escolheria - naturalmente inspirado pela postagem de meu amigo e colega Ademir Luiz (ver aqui) - as do episódio em que os bandidos se inserem (convenientissimamente, para eles e para eventuais fins "turísticos") no desfile da Sapucaí, a fim de escamotear e consumar seu tráfico antiecológico. Antes que o verdadeiro e esculhambadíssimo carro alegórico forjado por eles apareça, vemos um outro, luxuosíssimo, com o mesmo tema. Mas o engano do chefe dura pouco, e o nosso também... pelo menos nesse quesito.

Mas não, não sejamos injustos. Afinal, essa imagem sugestiva e divertida me lembra outra: a da censurada alegoria do Cristo de lixo que, em algum ano do milênio passado, Joãozinho Trinta tentou exibir ao fim de um desfile da Beija-Flor. Mas é claro que isso não caberia aqui (como, salvo engano, não cabe sequer um singelo beija-flor). Não nesse Rio em itálico e de molde a provocar risadas. O Cristo que vemos aí, em "panorâmicas" formidáveis, é limpo de tudo: chagas, lágrimas e pichações. Mas "tudo bem": em filmes assim a "natureza" e a fantasia sempre falam mais alto que nós, seres ditos humanos. Pelo menos os moreninhos e terceiromundistas.

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