“Falling Down”, como se sabe, é o refrão de “Man on the edge”, uma das canções de Bayley que emplacaram com o Iron (e a única dele que eu conhecia), e “The sky is falling down” é uma das canções da Shadows Legacy, a outra grande presença da noite (infelizmente, perdi a apresentação da Hollywood Cowboys, então não posso falar sobre ela). Aliás, para quem assistiu aos dois shows, ficou patente a superioridade da banda campograndense. É verdade que a “Official Blaze Bayley”, com exceção do guitarrista e violonista Thomas Zwijsen, é uma banda de jovens brasileiros. Mas acompanhar uma entidade como Blaze não é tarefa pra qualquer um, e mesmo Zwijsen, por mais que seja um grande músico (a meu ver, melhor violonista que guitarrista), não encarna a energia e mesmo o virtuosismo metal como encarnam os músicos da Legacy.
Mas não quero me ater a comparações, que sempre correm o risco de ser ou parecer maldosas. Apenas acho importante que se saiba o valor de pessoas que temos entre nós: a Shadows Legacy é uma das melhores bandas, não só de metal mas de rock, do Brasil hoje. Quem duvida, experimente ouvir o CD You're going straight to Hell que eles lançaram nessa mesma noite. Aqui uma nota a respeito. Mas vou deixar pra falar sobre a Shadows numa postagem à parte. Tanto ela quanto Blaze merecem essa consideração.
Enfim, o que é, ou melhor, o que me parece ser Blaze Bayley? Até onde pude ver, pelo show e pelas canções que ouvi no youtube, nada menos que a alma mais underground que passou pelo Iron Maiden, ou pelo menos disputa esse lugar com Paul Di'Anno. Felizmente cheguei a essa conclusão antes do show, senão não poderia compartilhá-la, já que nunca vi um show do Iron. A meu ver, tanto nas composições quanto na voz, o estilo de não apenas se afina mas como que radicaliza o das guitarras e composições de Steve Harris, na minha opinião o melhor dos dois “donos” da banda.
Sem ser a voz de potência incomparável que é a de Bruce Dickinson (como disse Wille Bruno, tentar compará-los por aí não faz nenhum sentido), a voz de Blaze é ao mesmo tempo virtuosística e densa, soturna; o que parece ter influenciado, inclusive, a fase posterior de Bruce (ouça-se, inclusive, “Man on the edge” com este). Essa densidade também se manifesta nas letras, boa parte delas – como as de Harris – de cunho existencial. Não sei avaliar a originalidade das canções de Blaze; algumas lembram muito Iron, é claro, mas o fato é que gostei de todas que ouvi. A baladona “Stranger to the light” me parece traduzir, no riffão encorpado, no jogo de vocais, no andamento dramático e na letra enigmática, com a ideia de uma busca de salvação pelas trevas, a densidade musical e existencial a que me referi.
Mas ouvir um monstro sagrado (acho que posso dispensar as aspas) como Blaze é uma coisa, vê-lo ao vivo, e em ação, é outra. Não há outro termo para designar esse tipo de fenômeno que toca o sobre-humano senão a palavra presença. Não “presença de palco”, mas presença de espírito, presença de alma. Isso que emana da voz presente (me desculpe meu mestre Derrida) e da intensidade dos gestos e olhares; inclusive esse gesto que ele mesmo às vezes ostenta de forma irônica e risonha de “trocar lâmpada” (como um jovem de alma lírica andou sarreando no face), mas que é, evidentemente, um “gesto dramático”, de quem parece querer reter e ofertar o dramático sentido do mundo, senão o próprio mundo.
Eu poderia falar mais um pouco do show, a interação com o público, listar algumas músicas (alguns amigos deve saber a playlist de cor; eu só reconheci “Man on the edge” mesmo) etc. Mas só acho honesto falar do que realmente me impactou, sobre a forma como a presença Blaze me comunicou a alma do Metal; e infelizmente só posso fazer isso em termos abstratos. Mas talvez essa imagem conceitual consiga captar um pouco do fenômeno vivo: os escritores do Romantismo Alemão falavam usavam a expressão bela alma para designar os espíritos iluminados de seu tempo; eu diria que em Blaze o metal se mostra na melhor forma de sua alma forte.
Que é também uma alma bela, sem dúvida, mas antes de tudo forte, densa. O que não é tão simples, já que toda uma dimensão imagética do Metal o faz propender a um certo infantilismo; como a própria rebeldia, aliás, tem uma espécie de infantilismo congênito (afinal, como Cristo, Lúcifer também era uma espécie de filho dileto, e alguém poderia acusar Deus de tê-lo mimado). Mas nas letras e na presença de Blaze essa propensão é apenas um impulso para a densidade reflexiva, para um sentimento da gravidade de si mesmo e do mundo (há então aí, sem dúvida, algo da “criança irônica” de Novalis).
Blaze em Campo Grande (foto de Bruno Higa) |
Não vou bancar o adorniano ortodoxo e sublinhar os elementos ou riscos fascistas ou mistificadores nisso tudo. O niilismo e a má negatividade habitam em todo lugar (inclusive em meu discurso), mas algo também os transcende o tempo todo, e sobretudo na música esse “algo” é o mais importante: é sobretudo ele que devemos buscar e com ele que devemos aprender nela.
Mas o que seria, então, essa “alma forte”? Qual sua força e “essência”? Na sua melhor forma, eu diria – me valendo de novo da “pose” de Blaze – que ela tem a ver com a coragem de encarar o mundo em sua dramática negatividade. Claro que é possível ver outras coisas nessa “pose”: afinal, é o mundo “denso e complexo” ou o potencial consumidor que Blaze olha, oferecendo, num gesto vazio, o seu produto? Mas essa duplicidade também serve para sublinhar a importância de um gesto comunicativo que é ao mesmo tempo um gesto aberto. O dia em que os niilistas (e mais ainda os cabeças-ocas) perceberem que o que eles chamam vazio pode ser visto como abertura talvez estejamos salvos de sua sanha de posse e ocupação de tudo com seus instrumentos e sentidos... (Vejam que suponho uma abertura neles para isso...)
Olhar o mundo, aliás, é também olhar nos olhos: se os outros são o mundo e seus infernos... Mas infernos – como os interiores de cada um – que de fato é preciso encarar, com os quais se deve dialogar de alguma forma. E isso é o contrário de qualquer protofascismo. O próprio gesto celebratório é também gesto comunicativo, e se ele é também identitário, e portanto potencialmente segregacionista, o próprio apelo ao outro da “pose” de Blaze (se nos recusarmos a vê-lo como mero apelo comercial) é o oposto disso.
Bem, alguém pode se lembrar do preço dos ingressos, que inclusive “obrigou” um jovem trabalhador a invadir a casa para ver e abraçar o ídolo... Mas isso tem a ver com o estado da cultura, e com a cultura do rock como uma cultura ao mesmo tempo segregada e segregacionista etc. etc. Como eu disse: a má negatividade habita em todos os lugares. Mas que habitem e circulem entre nós mais Blazers – e Willes Brunos, e Shadows Legacys, sobre os quais falarei no próximo post – que as coisas hão de melhorar.
No mais, só posso cumprimentar a todos os que tornaram esse evento possível, e que é mesmo um passo importante para Campo Grande ingressar no circuito do metal internacional.
Este post é dedicado à memória de Ernani de Almeida.
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