VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Chamem-me de gênio, por favor!


Terrence Malick, diretor do recém-lançado A Árvore da Vida, não frequenta festas. Essa atitude pode dizer muito sobre uma pessoa e, talvez, muito mais sobre um artista. Pauline Kael, decana da crítica cinematográfica norte-americana, desconfiava daqueles que chamam cinema de arte porque sua vasta experiência na indústria lhe mostrou que “escritores ficam em casa e trabalham; diretores de cinema vão em festas”.  Portanto, se Malick não freqüenta festas, nem colunas sociais, nem se deixa fotografar, nada mais natural que concluir que essa atitude reservada, quase monástica no ato de retirar-se do mundo, seria um indicativo de que ele é um raro cineasta sério, e, por conseguinte, um artista na acepção da palavra. Literalmente, um gênio.

Não se trata de nada novo. O escritor J. D. Salinger, autor do lendário romance O Apanhador no Campo de Centeio, é o mestre maior da fuga. Marlon Brando passou décadas recluso, super-alimentando o corpo e a lenda. Howard Hughes glamourizou sua insanidade ao isolar-se em uma cobertura de Las Vegas. A esfinge nórdica Greta Garbo pediu para ser esquecida. No Brasil, o ex-presidente João Figueiredo imitou Garbo. O vampiro curitibano Dalton Trevisan e o mestre do crime Ruben Fonseca também especializaram-se em cultivar o anonimato. De todos os auto-exilados no palácio da fama, o modelo de Malick parece ser Stanley Kubrick. Poucas aparições, poucos filmes, muito mistério.

O crítico de cinema ganhador do Pulitzer, Roger Ebert escreveu que “como Cinzas do Paraíso deixou tão boa impressão, o fato do desaparecimento do diretor se tornou um mito de proporções ‘salingerianas’”. Porém, para muitos, diferente de Salinger, Brando & companhia, a reclusão de Malick é planejada demais, encenada demais, alardeada demais. Sua fuga dos holofotes seria uma muito bem pensada estratégia de marketing pessoal para transformar um diretor de inegável talento em gênio.

Não é difícil dar certo, pois, segundo o escritor Gore Vidal, “o senhor Salinger produz obras de ficção que, por um período, foram consideradas mais sérias do que o devido por causa do modo absolutamente admirável que vive o autor”.

Quando A Árvore da Vida ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes 2011, um abafado coro de descontentes passou a especular sobre as razões do triunfo. Primeiro, aventou-se que o excepcional “Melancolia”, de Lars Von Trier, perdeu força em função das polêmicas declarações proto-nazistas de seu diretor. Segundo, que o presidente do júri, Robert De Niro, seria amigo do premiado. Maledicências? Em todo caso, ao contrário do que comumente se pensa, é muito mais fácil direcionar as premiações de um festival do que, por exemplo, do Oscar, que envolve uma eleição secreta e fechada, com milhares de eleitores. Terceiro, que a lenda erigida em torno do fugidio Malick obscurece o julgamento de suas obras. Em outras palavras, questioná-las seria sinônimo de tacanhice. Negar seu estatuto de gênio equivaleria a esbofetear um messias. Afinal, sempre se lembra que Chaplin, Welles ou mesmo Kubrick foram pouco reconhecidos, em termos de premiações, em vida.  

O que há de verdade nisso? Difícil definir com precisão. O fato é que Malick é um homem pretensioso. Isso não necessariamente depõe contra ele ou sua obra. A pretensão, se bem canalizada, pode ser um poderoso combustível. Sem dúvida, Tolstoi foi pretensioso ou planejar Guerra e Paz, assim como Proust ao iniciar a narrativa de Em Busca do Tempo Perdido” que só foi terminar sete livros depois. O conceito inicial de A Árvore da Vida, que pretende enfocar do Big Bang ao Fim dos Tempos a partir da trajetória de uma família texana, estando entre o macro e o micro, é ao mesmo tempo um tema fantástico e um não-tema. Equilibra-se entre a potencialidade do sublime e o perigo do pastiche. De fato, os espectadores mais cínicos podem justificar que essa história já foi contada no cinema antes, no belo documentário sobre a vida e a obra do astrofísico Stephen Hawking, Uma Breve História do Tempo, dirigido por Errol Morris, em 1991. Podem inclusive alegar que o filme de Morris é mais compreensível e comovente que o colosso de Malick; ou mesmo que Hawking é mais simpático e expressivo que o taciturno Jack O’Brien, personagem de Sean Penn.

É sintomático que a pretensão de Malick alimente a pretensão de seus espectadores modelo. Em praticamente todos os comentários acerca de A Árvore da Vida o resenhista se lembra de destacar que assistiu ao filme numa sessão na qual o público comum (essa arraia miúda acéfala!) saiu reclamando e xingando, dizendo-se enganada pelo nome de Brad Pitt no cartaz; enquanto ele mesmo, ilustrado, sofisticado, cosmopolita, aberto, erudito e cool que é, adorou a obra-prima de nascença. Vale lembrar que ao fim de sua exibição em Cannes, a platéia ficou dividida. O longa longuíssimo foi igualmente vaiado e aplaudido. Em tese, o público de Cannes seria o mais ilustrado, sofisticado, cosmopolita, aberto, erudito e cool do mundo. Nesse sentido, simplesmente condenar quem não gostou do filme como bárbaro é conceder-lhe o status de evangelho, de revelação transcendente inquestionável. Algo que nenhuma obra de arte ou livro adotado como sagrado, por brilhante ou inspirador que seja, é.  

Os apóstolos de Malick costumam relembrar sua passagem como aluno de Harvard e professor de filosofia do MIT enquanto prova pró-genialidade. Títulos como esses costumam impressionar a primeira vista, mas não são argumentos indestrutíveis. Quem viu o risível documentário Quem Somos Nós?, uma patacoada pseudocientífica sobre física quântica, baseado no Best-Seller O Segredo, deve ter reparado nos altos galardões acadêmicos ostentados pelos charlatões que derem depoimentos nele. Todo acadêmico consciente sabe que, na prática, uma cátedra é apenas um emprego. O que você é não depende necessariamente dela. Vide o célebre exemplo do arqueólogo doutor Henry Jones Júnior. A força dos primeiros, e melhores, filmes de Malick, Terra de Ningum (1973) e Cinzas do Paraíso (1978), sem dúvida, utilizaram-se dos conhecimentos do professor de filosofia do MIT, mas não foram feitos apenas por eles. Ademais, boa parte dos maiores cineastas da história tiveram pouca educação formal.    

A Árvore da Vida
Filmes como A Árvore da Vida precisam passar pela prova do tempo para se estabelecerem como geniais, farsas, exercícios de estilo ou elefantes brancos. Apenas para exemplificar, 2001 – Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick, ou Solaris, de Andrei Tarkovsky, passaram, o tempo confirmou-os como obras-primas. Por outro lado, Koyaanisqatsi, produzido por Coppola, ou Império dos Sonhos, de David Lynch, tornaram-se meras curiosidades Cult. O que dizer dos pouco vistos filmes produzidos por Andy Warhol? 
2001 é lento, difícil, complexo, pesado, finamente executado e se provou cheio de conteúdo, para além da forma rebuscada. Foi, inclusive, um grande sucesso de bilheteria. Mas se Malick deseja emular Kubrick no estilo de vida, sua opção pela obscuridade narrativa coloca-o em outra esfera estética. Kubrick fazia filmes de arte para as massas, Malick faz para os cinéfilos eruditos e para a crescente população PIMBA (pseudo-intelectual-metido-a-besta). No livro De Olhos Bem Abertos, o roteirista Frederick Raphael escreveu que Kubrick “parece ser um pouco mais humano – comercial – do que esperei que fosse um grande diretor de cinema. Gosta de estrelas porque sabem o que fazem e porque lotam os cinemas. (...) ele é, começo a suspeitar, um diretor de cinema que por acaso é um gênio e não um gênio que por acaso é um diretor de cinema”. Talvez a frase sirva também para Malick.

Se Terra de Ninguém tinha os jovens Martin Sheen e Sissy Spacek e Cinzas do Paraíso contava com Richard Gere e Sam Shepard, em seu retorno às telas, depois de vinte anos ausente, com Além da Linha Vermelha (1998), Malick encheu a tela de astros: Sean Penn, George Clooney, John Cusack, Jim Caviezel, Nick Nolte e muitos outros. Leonardo DiCaprio e Mickey Rourke gravaram, mas foram eliminados no corte final. Sem ressentimentos, o importante era trabalhar ao lado da lenda viva que retornava. 

Em termos de estilo, Malick não cultiva a precisão matemática de Kubrick. Não planeja e ensaia a exaustão, filmando e re-filmando cenas milimetricamente marcadas. Seu método é o da procura incansável, na base do improviso, acerto e erro. Filma muito, muitíssimo, seguindo, acossando, seus atores com a câmera, fazendo-os emergirem no processo, captando suas reações, para depois selecioná-las na mesa de edição. Consta que filmou cerca de 300 km de negativo para produzir O Novo Mundo (2005), que recebeu três cortes diferentes. Essa técnica é perceptível nas cenas sem falas ou ações diretas, muito comuns em seus filmes, onde os intérpretes basicamente interagem entre si, com o cenário ou com a locação. Andam e olham, olham e andam. Sem rumo.
 
Grandes diretores costumam possuir marcas visuais. Basta alguns minutos para espectadores treinados saberem de quem se trata. Sem dúvida, o estilo de Malick é reconhecível. Mas, diferente de Kubrick, que costumava reconstruir-se dentro de seu estilo, ele opta pela releitura de si mesmo. Cacoetes visuais se repetem em Além da Linha Vermelha, O Novo Mundo e A Árvore da Vida. Seus personagens sempre nadam observados por câmera submarina, seus personagens sempre caminham tropegamente por campos de mato alto, o sol sempre aparece por entre galhos, sempre são mostrados insetos ou animais pequenos se arrastando na grama, os acidentes naturais ou edificações sempre são filmados de baixo para cima, sempre há cortes bruscos na condução da narrativa etc, etc, etc. 

Além da Linha Vermelha

Parece-me que, embora Kubrick seja o modelo a ser alcançado, temática e visualmente, é possível que Malick se aproxime mais da teatralidade contemplativa de Tarkovsky. Alguma influência existe, embora o mestre russo seja mais técnico ao guiar o filme e mais maduro ao abordar suas inquietações metafísicas. O silêncio de Deus em Tarkovsky provém do materialismo russo: crise de fé numa terra infestada de igrejas. Em Malick, encontramos a dubiedade de um artista que sabe que a ciência é incontestável, mas que hesita em desagradar os criacionistas. Seu Gênese é uma obra aberta.   

Roberto De Niro afirmou que não foi fácil a escolha de A Árvore da Vida para a Palma de Ouro, mas, para ele, o filme "tinha o tamanho, a importância, a intenção, o que quer que você fale, parecia se adequar ao prêmio". De fato, o filme possui lindas passagens, a trilha sonora é belíssima e a fotografia das cenas no Texas deslumbrante. Contra ele fica a enervante sensação de que Malick, às vezes, passa do tom. Deixa o filme sair de seu controle, tamanho o desejo de ser profundo e complexo. É obvio demais em ser um diretor brilhante que luta desesperadamente para ser reconhecido como gênio, optando pelo escorregadio caminho do hermetismo.

Fora isso, é possível criticar a aparência de documentário escolar das seqüências sobre o cosmos: algo entre uma coleção de slides de data-show retirado do Google e uma produção da National Geographic. O CG dos dinossauros é fraco, inexplicavelmente inferior aos de Jurassic Park, do já distante ano de 1992.  Hoje, se uma produção de Hollywood vai mostrar um dinossauro, não se espera menos que perfeição. 

Porém o grande pecado do filme é mesmo insistir monotonamente em alguns de seus temas. Por exemplo: ao invés de construir uma ou duas seqüências fortes e elaboradas mostrando o excesso de disciplina e rudeza do personagem de Brad Pitt para com seus filhos, o roteiro as fragmenta em repetitivas pequenas situações, retirando-lhes a força individual. Há muitas pequenas grandes cenas, poucas cenas grandemente estarrecedoras. Talvez o objetivo fosse dar a sensação de cotidianidade. É possível, considerando que, segundo a lenda, Malick está desenvolvendo o roteiro desde fins da década de 1970. Se for mesmo isso, das duas uma: ou Malick não seguiu o texto a risca, modificando-o no set ou na edição, ou pelo contrário, o diretor esmerou-se em mostrar que a vida é apenas uma sucessão de dias terrivelmente monótonos rumo à morte. Fica a pergunta: é preciso ser gênio para assumir o papel de profeta de um Armageddon, pessoal e universal, desde sempre anunciado? Não basta ser um bom contador de histórias? Talvez o melhor seja esquecer tudo isso e ir numa festa. Afinal, o Brooklyn não está se expandindo. Por enquanto.  

Ademir Luiz 
(Doutor em História, professor da UEG e autor do romance Hirudo Medicinallis.)

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Nader e Simin: uma esquiva ao "olhar ocidental"


O cinema europeu contemporâneo tem lançado um olhar atento à representação das culturas de países islâmicos. Na última década ganharam evidência produções de jovens diretores do continente que abordam questões como imigração, perda da identidade, tradicionalismo religioso e opressão feminina em comunidades de imigrantes oriundas de países do Magred e Turquia. É o caso de Exílios (França, dir. Tony Galif), Contra a parede (Alemanha/Turquia, dir. Faith Akin) e Quando partimos (Áustria, dir. Feo Aladag), o último escolhido como melhor filme na última Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. São produções que registram, sobretudo, conflitos vividos pela segunda geração, os filhos de imigrantes, nascidos ou criados na Europa, para quem a educação dentro do islã representa, possivelmente, mais um peso do que um elemento de identidade.

Não se deixem enganar. O belo e intenso Nader e Simin: uma separação (Irã, dir. Asghar Farhadi) não é o mais novo representante dessa vertente. O Urso de Prata que recebeu em Berlim de melhor filme e conjunto de atores parece sinalizar, justamente, um esgotamento da temática do deslocamento cultural e da opressão patriarcal que marcaram produções anteriores. Como contraponto, o filme de Farhadi nos conduz diretamente a Teerã e ao centro dos conflitos vividos por um casal à beira da separação. Diante do juiz, no entanto, a esposa afirma não ter motivos para se separar do marido, que considera um homem muito bom, mas que vai fazê-lo apenas por que este se recusa a acompanhá-la para fora do país. O abandono da casa por Simin, a esposa, marca o início da desagregação da família (há ainda um sogro com Alzeimmer e uma filha adolescente que se recusa a deixar o pai), e, sobretudo, abre caminho para que um novo e mais intenso conflito se instale na vida do casal com a chegada da dama de companhia encarregada de cuidar do sogro doente após a partida de Simin.

Estes esparsos elementos são habilmente manipulados por Farhadi a fim de construir uma trama pouco previsível, pontuada de suspense, compaixão e sensibilidade na qual há pouco espaço para as representações de vítima e algoz tão ao gosto de certa estética cinematográfica europeia. Para quem está familiarizado com certa visada ocidental sobre o oriente, Uma separação opera um deslocamento bem-vindo, pois revela seres humanos de carne e osso onde até então só havia uma cortina de fumaça.

Lucilene Soares da Costa 

Trailer com legenda em inglês

e em francês

Morrer

Um cheiro de jasmins
e eu aqui,
querendo ficar doente,
à beira da morte.
Querendo cortar os pulsos,
morrer.
Qualquer coisa que te faça chorar por mim
e vir aqui,
me ressuscitar.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Nada, nada


Um dia tão estranho!
Meu olhar não transborda mais alma.
O sentimento ainda existe,
mas parece que perdeu o encanto a meus próprios olhos.
Quem dirá aos seus olhos...

Então é sempre isso o que chamam de amor!
Se o seu feminismo é de araque,
o meu é de perfídia,
destroço maligno do macho fracassado.

Veneno escorre de minha boca.
Sou menos que nada.
Te mereço muito menos do que quem quer que seja,
mesmo que quem não te quer.

Sou nada ao quadrado:
bêbado torpe e descontrolado, inábil até a raiz
da alma que falta.

Sou nada, sou nada.
Perdão, meu enorme amor perdido,
nunca pude lhe dar
nada além de nada.

sábado, 20 de agosto de 2011

O Anjo da Morte

Chicago, Illinois

A tempestade vem chegando

Acompanhando o Anjo do Abismo

É o quarto cavaleiro

Cavalgando a morte

É o tempo do destruidor

Seu nome bíblico é Abadon

O último anticristo servindo a Besta

Ele é o Anjo da Morte

É o fim do reino da impostura.

Amém.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

Naufrágio

    oscilante
     fluido total
         descendo
     o corpo
   resquiciando vida
pelas bolhas
peso espesso declina
por natural densidade
arrastando fundo adentro
o cadáver social

   grosso barbante
     gangrena a
            perna
 com pressão
       ameaçada por
 vários indicadores

matéria concisa esconde
sem furos uma esponja
inexorável demolição do
imaginário arranha-céu

          braços flagelos
      em queda
            livre
      não sustentam a
          dúvida
           em decisão

concreto solúvel preenche
os nichos profundos da
submersa satisfação

Victor Ferraz

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Não precisa dizer,
não diga que me ama.
Dê-me sua umidade transbordante.
Deixe-me reter entre os dentes
seus mamilos pretos de tons dourados.
Deixe-me aspirar cada milímetro de sua pele dourada.
Dê-me sua voz lânguida e seu corpo lânguido,
e, sempre que puder, os dois juntos.
Mas me dê também o toque de seus olhos,
e, sempre que puder, o de suas mãos.
E, sim, derreta-se.
Derreta-se toda para que eu possa aspirá-la inteira,
como aspiro seus seios,
seus cabelos
e nacos de sua pele.
Se possível, derreta-se tanto
que sua alma transborde por sua pele
como transborda em seu odor mais íntimo,
e a qualquer hora, em qualquer lugar,
eu possa te ter a um simples toque ou o roçar de nossos braços,
sem precisar sequer roubar-te um beijo.
Não diga que me ama:
me ame
como a um cão
ou a um irmão,
ou qualquer naco da vida
que seus olhos transbordantes de amor
sabem amar sem dizer nada.

domingo, 7 de agosto de 2011

Gaia: o Sistema Terra e a Aldeia Global


"Nossa terra é nossa alma. É da terra que tiramos nossos costumes, nosso presente, nosso passado, nossa vida." (Provérbio Inuit)

Quando povos europeus de etnia Viking – de origem Norueguesa - chegaram à Groenlândia, na Idade Média, depararam-se com povos aos quais denominaram skraelings, uma expressão do nórdico clássico cuja tradução remonta a palavra "desgraçados". Os povos recém-descobertos pelos europeus eram assim considerados inimigos em potencial, simplesmente por possuírem uma cultura distinta do eurocentrismo medieval. Entretanto, aquele povo panteísta amaldiçoado pelos nórdicos se denominavam Inuits, e sobreviveram há séculos numa das regiões mais inóspitas do planeta, simplesmente porque adequaram seu modo de vida às condições extremas da Groenlândia.

Os Vikings, por outro lado, tentaram fracassadamente adequar à Groenlândia sua cultura eurocêntrica com criação de ovelhas, vacas e construção de templos cristãos, e após cerca de cinco séculos de colonização, foram totalmente dizimados naquela grande ilha fria, vítimas do inverno rigoroso e de tentativas fracassadas de combater os Inuits - os grandes senhores do gelo.

Séculos depois, outros povos de origem Viking, desta vez provindos da Dinamarca, restabeleceram um processo de recolonização da Groenlândia, mas desta vez de forma mais sustentável, tentando não apenas inserir componentes econômicos de origem europeia, como também adequar-se às condições que a ilha poderia naturalmente oferecer. Os dinamarqueses encontraram ruínas medievais típicas de sua etnia na Groenlândia, mas nenhum sinal vivo dos nórdicos medievais do passado. Entretanto, se depararam com os Inuits, que permanecem ainda hoje invictos naquela terra inóspita caçando baleias, focas, e construindo refúgios no gelo em situações extremas.

O provérbio Inuit reflete um importante aspecto referente ao uso da Terra: a sensibilidade de sentir-se parte do Sistema Terra, e não seu senhor, acarretando assim num modo mais sustentável de uso dos recursos, sincronizado não apenas com a sobrevivência humana, como também consciente do que cada localidade possa oferecer. E hoje, os Inuits ainda são encontrados na Groenlândia, convivendo pacificamente com os colonos dinamarqueses.

A lição da Groenlândia talvez remonte à ideia de que somos parte do ambiente, e não seu senhor. E, se de fato quisermos viver de modo sustentável, devemos reconhecer o que de fato somos: parte do ambiente, e não seu soberano. Ao nível das espécies na biosfera ao invés de culturas, tal como prescrito na história anterior, acredito que seja essa a premissa básica da Hipótese Gaia.

A ideia metafórica do planeta visto como um "superorganismo vivo" remonta a vários séculos, com a cultura helenística. A mitologia grega descreve a Deusa Gea, a mãe dos mares e dos doze titãs, como a personificação divina da Terra. Entretanto, uma visão mais centrada no conhecimento teve início com o escocês James Hutton, no século XVIII, autor da teoria uniformitarista e um dos fundadores da Geologia moderna. Hutton ressaltava que as interações bióticas globais deveriam ser estudadas sobre a ótica da fisiologia, considerando assim que a Terra seria um todo interligado, tal como um grande ser vivo.

 
James Lovelock
A fragmentação da ciência no século XIX em visões distintas obscureceu a premissa de Hutton, e foi apenas na década de 70, a partir dos estudos do químico britânico James Lovelock, que esta visão holística foi creditada como uma hipótese científica. A Hipótese Gaia, como foi denominada por Lovelock em analogia à Deusa Gea, postula que todos os ecossistemas estão interligados para formar a biosfera, como um superorganismo que envolve o planeta. Também pode ser enunciada num contexto evolutivo, ressaltando que a vida na Terra, em particular os microorganismos, teriam evoluído em conjunto com o ambiente físico, proporcionando assim condições favoráveis para a origem e o desenvolvimento de seres vivos com maior grau de complexidade.

Assim, a Hipótese Gaia de Lovelock relaciona o ambiente físico e o biológico como entidades fortemente conjugadas, que evoluíram em conjunto. Neste contexto de conjugação complexa, qualquer espécie que afeta adversamente o ambiente tende à extinção. Lovelock fragmentou a Hipótese Gaia em duas distintas versões, sendo a primeira denominada "forte", pois considera a Terra como um verdadeiro superorganismo, onde cada espécie é otimizada para estabilizar o ambiente e beneficiar-se do equilíbrio do ecossistema. A versão "forte" possui um forte caráter de metáfora, e o próprio Lovelock contesta sua deficiência como hipótese científica.

Entretanto, a versão "fraca" postula que algumas espécies podem exercer influência significativa sobre a biosfera, o que tem mais sentido do ponto de vista empírico. Assim, é certo que o fitoplâncton oceânico desempenha um importante papel no clima terrestre, já que o dimetilsulfeto produzido por certas algas oceânicas, ao escapar para a atmosfera, pode ser importante para a formação de nuvens.

Com relação às florestas, a visão holística de Gaia pode justificar não apenas sua manutenção, como também o indispensável estímulo para o reflorestamento de áreas degradadas sempre que possível, pois sabe-se que a cobertura vegetal florestal emana grandes proporções de vapor de água para a atmosfera, contribuindo assim para a formação de nuvens que refletem os raios solares e produzem chuva. Assim, mais florestas implicam condições climáticas mais favoráveis, e o desmatamento, por outro lado, pode implicar em alterações climáticas extremas, que podem ocasionar sérios prejuízos para as populações humanas e seu forte sistema macroeconômico alicerçado em princípios tácitos que concebem os recursos como bens infinitos.

Hoje, somos uma grande aldeia global, muito maior e mais complexa que o povo Viking medieval que orgulhosamente tentou se impor na Groenlândia. Preocupamo-nos com nossos anseios pessoais, e nos esquecemos que somos parte da Terra. Entretanto, atualmente não está em jogo apenas a sobrevivência de uma simples cultura medieval, mas da espécie como um todo. A visão de Gaia sugere que, se quisermos retardar o terrível colapso que está por vir, em conseqüência de séculos de uso insustentável dos recursos do planeta, deveremos começar a pensar como os Inuits, e humildemente enxergarmo-nos como parte do planeta, e não como seu soberano único.

Notas
* O conflito entre Inuits e Vikings na idade média foi recentemente descrito por Diamond, J. (2007). Colapso: como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso. Rio de Janeiro. Editora Record.
* A estrutura geral da Hipótese Gaia foi sucintamente apresentada por James Lovelock, num dos últimos capítulos do clássico Wilson, E. O. & F. M. Peters (1997). Biodiversidade. Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira.
* Uma das últimas obras de James Lovelock (A vingança de Gaia - que ainda não li totalmente), descreve a visão futura do autor, sobre um provável colapso da espécie humana, devido ao uso indevido dos recursos do planeta. Lovelock comenta sucintamente as premissas básicas deste livro nas páginas amarelas da Revista Veja (ed. de 25-10-06).
* Wilson, E. O. (2002) em O Futuro da Vida. Rio de Janeiro. Editora Campus, descreve as versões fraca e forte da Hipótese Haia.
* O conceito evolutivo da Hipótese Gaia foi sucintamente apresentado por Odum, E. P. (1988). Ecologia. Rio de Janeiro. Editora Guanabara S.A.

 Daniel Blamires
(Doutor em Ciências Ambientais, e professor da Universidade Estadual de Goiás, na Unidade Universitária de Iporá.)

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Dogville e o mundo cão

Eu havia decidido encerrar minha série de "intervenções" sobre o "caso Breivik" com um outro texto, conforme adiantei, aliás, em um comentário à postagem anterior sobre o mesmo assunto. Seria uma tentativa de extrair desse pequeno tumulto discursivo (para encarar a coisa com isenção, ou seja, tentando me desprender um pouco dela) uma reflexão mais geral e, ao mesmo tempo, mais concreta no que tange ao nosso cotidiano. Esse post teria como ponto de partida o convite a pensar a relação entre ética e estética formulado por minha amiga e colega Fabiana Abi Rached (no mesmo lugar recém-citado), fazendo-o, porém, no âmbito de algo que se manifesta não só nas preferências como nas feições de muitas de minhas próprias postagens, ou seja, o espírito e as formas da "cultura pop".

Seria o caso de pensar a articulação (não raro promiscuidade) dessa "cultura" com a barbárie, mais exatamente sua propensão a celebrá-la em gestos festivos que absorvem sua propalada crítica dela. E de constatar, portanto, o conluio de algumas de minhas postagens com essa lógica (confiram, por exemplo, meus "anúncios infernais" no final deste post e vejam se não é verdade). E é claro que não é em pouca medida que se pode desconstruir de forma semelhante a ideia e as ideologias da arte em geral, inclusive em suas formas - e preferências - mais "elevadas". Ou seja, notar que no âmbito da própria "necessidade da arte", para falar com Ernst Fischer, residem as demandas mais tola e/ou insidiosamente escapistas que se explicitam na cultura pop. Tudo isso certamente como um tipo de mea culpa (seria um post bastante difícil, sem dúvida, e eu estou aliviado por resumi-lo assim), mas também como uma constatação de como essa lógica viceja no âmago de nossas "melhores intenções"... Ou seja, do quanto é preciso levar a sério o que a mesma Fabiana me disse: é preciso pensar as responsabilidades de todos de nós.

Ainda pretendo dizer algo sobre isso, inclusive no sentido de argumentar em que o pop - e, claro, a arte em geral -, a meu ver, aponta e contribui com algo para além disso. No entanto, por um acaso que não é, a meu ver, inteiramente fortuito - pois mostra como de fato essas coisas estão todas articuladas -, a questão colocada por minha amiga ganhou, repentina e inesperadamente, uma ilustração dentro do próprio contexto - o "caso Breivik" - em que foi colocada. Trata-se, naturalmente, da descoberta de que Dogville, de Lars von Trier, é um dos filmes preferidos (mais exatamente, o terceiro) de Breivik, seguida da inevitável desconfiança - aliás alimentada pelo próprio cineasta - de que as ações do "terrorista" norueguês tenham se inspirado nele. O próprio Trier viu no massacre da ilha de Utoya uma "semelhança muito desagradável" com seu filme.

Não é a primeira nem, certamente, a última vez que uma obra de arte é acusada de causar esse tipo de "efeito". E, como quase sempre, a acusação não deixa de fazer algum sentido - ou vamos supor que a arte, no máximo, "retrata" a realidade, e de modo algum interfere nela? -, mas apenas numa perspectiva muito limitada, que ignore, antes de mais nada, a complexidade das motivações que determinam um ato atroz como o de Breivik. Este pode ter se identificado com o filme de Trier - ou melhor, sua protagonista -, e até, de fato, usado-o como modelo ou roteiro de seus crimes; mas estes, certamente, tiveram uma gestação muito mais longa.

Aumentando a polêmica, o líder do partido de utradireita acusado por Trier de ser co-responsável pelos massacres de Breivik relembrou declarações recentes do diretor em defesa (ou algo assim) de Adolf Hitler: "não é o que chamaríamos um bom homem, mas simpatizo um pouco com ele". De minha parte, por mais que essa declaração me desagrade, veja nela o mesmo estilo bombástico que Trier exercita "artisticamente", e também a recusa a todo e qualquer maniqueísmo - no caso, o que faz de Hitler o símbolo de um Mal Absoluto, ou seja, um Mal como que indeterminado - que nem sempre a crítica percebe em seus filmes.

O fato é que se Breivik se identificou com Dogville, certamente o fez de forma errada, ou melhor, espuriamente parcial. A evidência - marcada de forma extrema no episódio da morte das crianças em "troca" da quebra dos bonequinhos - do quanto Grace se torna pior que seus algozes é muito grande para atribuir a seus gestos qualquer sentido de justiça. Quase desde o início, aliás, Grace piora - e muito - as coisas em Dogville, enquanto seu pietismo - na verdade a tola autocomplacência com seu "missionismo" - a cega para a enorme confusão, social e libidinal, causada por sua presença e sujeição física.

No meu entendimento, o filme de Trier versa sobre a miséria da complacência populista, salvacionista e supostamente desinteressada de certa "concepção democrática" de mundo (assumida por sabe-se bem que nação), com sua visão deturpada, reducionista e infantilizada do outro, pronta a tornar-se o contrário, ou seja, visão infernal, demonizadora, tão logo - não tão logo assim, no caso de uma Grace como que caída do céu - a face contraditória desse outro se revele. Um índice do caráter hiperbólico que Trier atribui à desumanização dos habitantes da cidade emerge ao fim ou mesmo "depois" do filme, quando, durante ou após os créditos finais, são projetadas fotografias de pessoas que percebemos serem algo como "equivalentes reais" dos personagens que vimos em ação, e cujos sorrisos, olhares melancólicos etc. lembram o quanto de profundamente humano reside, apesar de tudo, no seio da realidade.

Não quero dizer, com isso, que Dogville seja um filme imune a críticas, inclusive no que diz respeito a suas implicações éticas. O próprio Trier falou sobre seu caráter "pedagógico" em sentido contrário às ações de Breivik; no entanto, eu mesmo tive a experiência de ver o final do filme - ou seja, a vingança de Grace - aplaudido por uma turma de alunos universitários, o que me obrigou a uma espécie de ritualística ou terapia de choque no sentido de inverter e expor o absurdo dessa recepção desumanizadora e, aliás, desumana (além de desistir de usá-lo, justamente, como ferramenta pedagógica). E encontrei críticas na internet, algumas não propriamente desinteligentes, abonando essa recepção. Ou seja, se a intenção de Trier era pedagógica - e não estou entrando, aqui, no mérito relativo a uma tal concepção de arte -, algo não deu certo em seu filme.

Talvez porque sob a superfície - a meu ver explícita - dessa intenção residam, mesmo, elementos ambíguos e eticamente duvidosos - mais, pelo menos, do que eu costumava admitir -, e a idealização do mafioso em carrasco sensível (que quer matar a filha mas depois lhe pede para poupar seus algozes, o que talvez também signifique salvá-la espiritualmente) talvez seja um índice disso. A própria declaração de Trier, aliás, salientando as coincidências entre o filme e o massacre na ilha me parece estranha; algo como a atitude um sujeito brilhante e confuso, indeciso entre o empenho de tornar-se um artista verdadeiramente sério e ser, mais que tudo, um polemista-propagandista de si mesmo - algo de que, naturalmente, a declaração sobre Hitler é uma manifestação bem mais direta e infeliz.

Mas eu posso estar sendo injusto. A preocupação de Trier pode ser sincera, em se tratando, aliás, de um artista que cujo primeiro grande êxito (Os idiotas) manifesta uma inequívoca força autodesconstrutora. E quem sou eu para censurar mea culpa e autopublicidades (promovo minhas postagens e outras deste blog o tempo inteiro) alheias?

De qualquer forma, não é o caso de pleitear de uma caça às bruxas. A vigilância crítica é necessária, mas ela só pode ter um sentido benéfico se assumida voluntariamente como uma demanda interior e construtiva - ou seja, se subordinada a uma demanda de fidelidade ao melhor de si. Os méritos de Dogville - um filme que admiro e aprecio, mas no qual vejo certa distância entre a qualidade (sobretudo textual, e se trata de um filme muito textual) e a intenção artística - têm relação, a meu ver, justamente com sua coragem e radicalidade no trato com as contradições da realidade, algo que a arte séria não pode senão almejar em nosso tempo. Ainda assim, as contradições talvez inevitáveis que emergem de seu choque com a realidade (e de seus próprios e vários "níveis de realidade") obriga a recolocar a questão que colocamos no início: não haverá, mesmo no âmago da arte mais séria e "profunda" que se produz hoje - inclua-se aí ou não a produção de Trier, o que é uma questão em aberto -, algo ainda aquém da responsabilidade exigida por nosso tempo?

Enfim, que Trier continue a fazer seus filmes, e que estes façam cada vez mais justiça a sua inteligência e sensibilidade. É tudo o que podemos desejar (na impossibilidade de lhe dizer isso :)). Vejam aí um dos benefícios da arte: o de sorrir. Essa necessidade, de novo com Fischer. Aliás, queria ter ilustrado este post com uma das imagens de rostos sorrindo no final de Dogville, mas não a encontrei pelo google. Trier, por sinal, tem uma comédia, que não vi. Enfim, que não lhe falte Amor e Humor. Sobre isto, aliás, é meu próximo post; se os dias estiverem - aparentemente, como sempre - mais ou menos amenos.

Sim, sempre aparentemente. Pois não custa lembrar isso que alguém, assinando como Márcio, postou outro dia nos comentários do yahoo após uma notícia sobre os acontecimentos na Noruega: que fatos tão ou mais atrozes ocorrem em países africanos todos os dias e mal tomamos conhecimento deles. É verdade: a África (ou as Áfricas, inclusive as nossas) não existe para nós. Por que será?

Nota importante: não pretendo sugerir, com a foto que me permiti usar neste post, que a humanidade de Hitler transpareça em seu conhecido afeto pelos cães. Mesmo porque é mais fácil, muitas vezes, nutrir afeto e piedade por seres ditos irracionais, ou, em todo caso, que não têm a complexidade e as contradições da alma humana, do que pelos homens que sofrem. E não custa lembrar que o treinamento dos oficiais nazistas - Tom Zé, citando Riana Eisler, informa isso no encarte de um disco seu - incluía abater animais domésticos, aos quais eles haviam se apegado, sem demonstrar emoções. Pensar Hitler como um ser dolorosa e  contraditoriamente humano não pode sugerir o apagamento do quão impensavelmente longe se foi aí - em seus atos - na detratação de qualquer sentido positivo que se pode atribuir a esse mesmo adjetivo: "humano".