VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

domingo, 7 de agosto de 2011

Gaia: o Sistema Terra e a Aldeia Global


"Nossa terra é nossa alma. É da terra que tiramos nossos costumes, nosso presente, nosso passado, nossa vida." (Provérbio Inuit)

Quando povos europeus de etnia Viking – de origem Norueguesa - chegaram à Groenlândia, na Idade Média, depararam-se com povos aos quais denominaram skraelings, uma expressão do nórdico clássico cuja tradução remonta a palavra "desgraçados". Os povos recém-descobertos pelos europeus eram assim considerados inimigos em potencial, simplesmente por possuírem uma cultura distinta do eurocentrismo medieval. Entretanto, aquele povo panteísta amaldiçoado pelos nórdicos se denominavam Inuits, e sobreviveram há séculos numa das regiões mais inóspitas do planeta, simplesmente porque adequaram seu modo de vida às condições extremas da Groenlândia.

Os Vikings, por outro lado, tentaram fracassadamente adequar à Groenlândia sua cultura eurocêntrica com criação de ovelhas, vacas e construção de templos cristãos, e após cerca de cinco séculos de colonização, foram totalmente dizimados naquela grande ilha fria, vítimas do inverno rigoroso e de tentativas fracassadas de combater os Inuits - os grandes senhores do gelo.

Séculos depois, outros povos de origem Viking, desta vez provindos da Dinamarca, restabeleceram um processo de recolonização da Groenlândia, mas desta vez de forma mais sustentável, tentando não apenas inserir componentes econômicos de origem europeia, como também adequar-se às condições que a ilha poderia naturalmente oferecer. Os dinamarqueses encontraram ruínas medievais típicas de sua etnia na Groenlândia, mas nenhum sinal vivo dos nórdicos medievais do passado. Entretanto, se depararam com os Inuits, que permanecem ainda hoje invictos naquela terra inóspita caçando baleias, focas, e construindo refúgios no gelo em situações extremas.

O provérbio Inuit reflete um importante aspecto referente ao uso da Terra: a sensibilidade de sentir-se parte do Sistema Terra, e não seu senhor, acarretando assim num modo mais sustentável de uso dos recursos, sincronizado não apenas com a sobrevivência humana, como também consciente do que cada localidade possa oferecer. E hoje, os Inuits ainda são encontrados na Groenlândia, convivendo pacificamente com os colonos dinamarqueses.

A lição da Groenlândia talvez remonte à ideia de que somos parte do ambiente, e não seu senhor. E, se de fato quisermos viver de modo sustentável, devemos reconhecer o que de fato somos: parte do ambiente, e não seu soberano. Ao nível das espécies na biosfera ao invés de culturas, tal como prescrito na história anterior, acredito que seja essa a premissa básica da Hipótese Gaia.

A ideia metafórica do planeta visto como um "superorganismo vivo" remonta a vários séculos, com a cultura helenística. A mitologia grega descreve a Deusa Gea, a mãe dos mares e dos doze titãs, como a personificação divina da Terra. Entretanto, uma visão mais centrada no conhecimento teve início com o escocês James Hutton, no século XVIII, autor da teoria uniformitarista e um dos fundadores da Geologia moderna. Hutton ressaltava que as interações bióticas globais deveriam ser estudadas sobre a ótica da fisiologia, considerando assim que a Terra seria um todo interligado, tal como um grande ser vivo.

 
James Lovelock
A fragmentação da ciência no século XIX em visões distintas obscureceu a premissa de Hutton, e foi apenas na década de 70, a partir dos estudos do químico britânico James Lovelock, que esta visão holística foi creditada como uma hipótese científica. A Hipótese Gaia, como foi denominada por Lovelock em analogia à Deusa Gea, postula que todos os ecossistemas estão interligados para formar a biosfera, como um superorganismo que envolve o planeta. Também pode ser enunciada num contexto evolutivo, ressaltando que a vida na Terra, em particular os microorganismos, teriam evoluído em conjunto com o ambiente físico, proporcionando assim condições favoráveis para a origem e o desenvolvimento de seres vivos com maior grau de complexidade.

Assim, a Hipótese Gaia de Lovelock relaciona o ambiente físico e o biológico como entidades fortemente conjugadas, que evoluíram em conjunto. Neste contexto de conjugação complexa, qualquer espécie que afeta adversamente o ambiente tende à extinção. Lovelock fragmentou a Hipótese Gaia em duas distintas versões, sendo a primeira denominada "forte", pois considera a Terra como um verdadeiro superorganismo, onde cada espécie é otimizada para estabilizar o ambiente e beneficiar-se do equilíbrio do ecossistema. A versão "forte" possui um forte caráter de metáfora, e o próprio Lovelock contesta sua deficiência como hipótese científica.

Entretanto, a versão "fraca" postula que algumas espécies podem exercer influência significativa sobre a biosfera, o que tem mais sentido do ponto de vista empírico. Assim, é certo que o fitoplâncton oceânico desempenha um importante papel no clima terrestre, já que o dimetilsulfeto produzido por certas algas oceânicas, ao escapar para a atmosfera, pode ser importante para a formação de nuvens.

Com relação às florestas, a visão holística de Gaia pode justificar não apenas sua manutenção, como também o indispensável estímulo para o reflorestamento de áreas degradadas sempre que possível, pois sabe-se que a cobertura vegetal florestal emana grandes proporções de vapor de água para a atmosfera, contribuindo assim para a formação de nuvens que refletem os raios solares e produzem chuva. Assim, mais florestas implicam condições climáticas mais favoráveis, e o desmatamento, por outro lado, pode implicar em alterações climáticas extremas, que podem ocasionar sérios prejuízos para as populações humanas e seu forte sistema macroeconômico alicerçado em princípios tácitos que concebem os recursos como bens infinitos.

Hoje, somos uma grande aldeia global, muito maior e mais complexa que o povo Viking medieval que orgulhosamente tentou se impor na Groenlândia. Preocupamo-nos com nossos anseios pessoais, e nos esquecemos que somos parte da Terra. Entretanto, atualmente não está em jogo apenas a sobrevivência de uma simples cultura medieval, mas da espécie como um todo. A visão de Gaia sugere que, se quisermos retardar o terrível colapso que está por vir, em conseqüência de séculos de uso insustentável dos recursos do planeta, deveremos começar a pensar como os Inuits, e humildemente enxergarmo-nos como parte do planeta, e não como seu soberano único.

Notas
* O conflito entre Inuits e Vikings na idade média foi recentemente descrito por Diamond, J. (2007). Colapso: como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso. Rio de Janeiro. Editora Record.
* A estrutura geral da Hipótese Gaia foi sucintamente apresentada por James Lovelock, num dos últimos capítulos do clássico Wilson, E. O. & F. M. Peters (1997). Biodiversidade. Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira.
* Uma das últimas obras de James Lovelock (A vingança de Gaia - que ainda não li totalmente), descreve a visão futura do autor, sobre um provável colapso da espécie humana, devido ao uso indevido dos recursos do planeta. Lovelock comenta sucintamente as premissas básicas deste livro nas páginas amarelas da Revista Veja (ed. de 25-10-06).
* Wilson, E. O. (2002) em O Futuro da Vida. Rio de Janeiro. Editora Campus, descreve as versões fraca e forte da Hipótese Haia.
* O conceito evolutivo da Hipótese Gaia foi sucintamente apresentado por Odum, E. P. (1988). Ecologia. Rio de Janeiro. Editora Guanabara S.A.

 Daniel Blamires
(Doutor em Ciências Ambientais, e professor da Universidade Estadual de Goiás, na Unidade Universitária de Iporá.)

2 comentários:

  1. Oi, me lembro de ter começado a ler "A Vingança de Gaia" na sétima série, mas não terminei. Muitos termos que não entendia. Após ler esse artigo animei novamente. Encaro a vingança de Gaia com pessimismo, pois nos resta apenas "retardar o terrível colapso" (bem dito no artigo), e um vago e incerto otimismo, de que como um organismo, Gaia livre-se do vírus-humanidade para conseguir o equilíbrio e sobrevivência. (Não consigo me desprender da versão ("forte") metafórica.)

    Abraço, Vic Ferraz

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  2. ola, tomo aqui o direito da critica uma vez que é este o sentido do blog.
    no primeiro momento o texto apareceu um tanto anacrônico e sua própria argumentação refuta a ideia, a mensagem central "ambientalista" a qual se pretende veicular.
    (tentativas fracassadas de combater os Inuits - os grandes senhores do gelo.)
    o uso no que tange aos conceitos utilizados foi um pouco simplista e reducionista, excluindo talvez a melhor solução para os problemas ambientais que é a capacidade humana de dominar a natureza ou o seu saber
    sobre ela.

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