VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Um passo infeliz

Os motivos pelos quais vira e mexe escrevo sobre "produtos culturais" destinados a crianças são basicamente esses três: tenho filhos pequenos, acho que esses produtos têm uma função "formativa" central na semicultura contemporânea e, finalmente, não só fui amplamente "formado" (ou seja, um tanto deformado) como nunca perdi totalmente o apreço por eles. Trocadilhos à parte, estou certo, por exemplo, de que devo muito de meu senso de realidade aos mistérios sempre humanamente explicáveis (pelo menos na fase "clássica") do Scooby-Doo.


Mas a verdade é que está cada vez mais difícil assistir desenhos infantis, digo, para crianças. Passado o bom momento da Pixar, que trouxe certo sopro de criatividade - mas também, convenhamos, muito mais de histeria - ao mercado, sobram os derivados, cada vez piores. Happy Feet - pelo menos Happy Feet 2, que eu vi esses dias - é um deles, e dos piores. Às piadas histéricas e escatológicas se soma (ou se subtrai) um roteiro praticamente nulo: o mundo está "mudando", e devido a isso a "nação" dos pinguins imperiais fica presa em um abismo de gelo e os heróis precisam salvá-los. Contando com a ajuda de um falso pinguim e uma manada (?) de elefantes marinhos, tudo se resume às pirotecnias aéreas, dançantes e semicatastróficas - ou seja, a catástrofes coreografadas - para que isso ocorra.

Isso tudo ou esse quase nada não seria tão triste se não fosse tão marcadamente protofascista. As coregorafias de massa, além de fazerem o elogio da servidão coletiva, se prestam à apologia deslumbrada e desbragada da técnica. Não apenas a ausência de roteiro se escora nos "efeitos especiais" (haverá uso inteligente para "tecnologia 3D"?) como tudo se trata, no fim das contas, de desempenhos técnicos: a dança salvadora, os homens (caçadores? ambientalistas? não entendi; acho que teria que ver o primeiro filme e não farei isso) que iniciam uma operação-resgate mas são expulsos por uma tempestade em si mesma espetacular, os voos do falso pinguim etc. O de praxe, mas até a estratégia que o pinguinzinho empreende para convencer o elefante marinho a ajudá-los é um desempenho técnico-operístico de extremo mau gosto, um dos pontos culminantes desse "musical" militaresco-neoevangélico, aliás uma fusão de brutalidade technopop e histeria religiosa. O que, aliás, me fez lembrar que nas igrejas neoevangélicas (não quero acusá-las em bloco, há "crentes" e pastores de boa índole) costumavam circular versões "de Jesus" (oh pobre) de "músicas" como as do Bonde do Tigrão.

Enfim, não é um conselho nem um alerta, apenas uma dica ("cultural"): não levem seus filhos para verem essa droga. Ou, se fizerem a besteira de levar, como eu fiz, torçam para que eles façam como os meus: um não gostou de nada no filme, a outra se recusou terminantemente a usar os óculos 3D, e esperneou o tempo inteiro. Me arrependi de não ter saído. E depois que saí pensei nas condições dos pinguins do aquário de Santos, melancólicos, confinados num ambiente pequeno, aparentemente abafado e cheirando a podridão. Não se enganem, a "paisagem" que se vê à esquerda, ao fundo, é apenas o vidro.

Isso que se faz com os pinguins - símbolos de usos e, agora, temores de nossos padrões civilizados - não se deveria fazer com ser nenhum, nem concreta nem simbolicamente. E tornar as crianças cúmplices desses crimes não o aliviam em nada.


E tenho dito.

* * *

P.S. em 05/12 - Já  que dei uma contradica, não custa dar uma dica de verdade, embora infelizmente não sirva para essas férias. Todo ano acontece o Festival Internacional de Cinema Infantil (FICI), dirigido por Carla Camurati. São filmes de vários países, e a maioria fora dos padrões e circuitos comerciais. Assisti uns poucos filmes este anos, e dentre eles os que mais me encantaram foram os curtas animados produzidos na Letônia. Mas se é o caso de criar um contraponto para o filme sórdido da Warner, cito o curta O caminho das gaivotas, que de certa forma também fala, como Happy Feet 2, sobre o fim catastrófico de um mundo e o nascimento de outro, mas com sentidos e espíritos muito diferentes. É uma coprodução cubano-brasileira, e penso que tanto nesse caso quanto no dos filmes letonianos os elementos ou rastros socialistas constituem diferenciais importantes. O FICI deste ano já se encerrou, mas o do próximo, que será a décima edição, também deve trazer muita coisa boa. É pena que não abarque todas as cidades que possuem Cinemark - parceiro do projeto -, inclusive Campo Grande, onde planejo morar. Aliás, todos sabem que acesso à cultura (de verdade), no Brasil, é um problema sério.

P.S. em 07/12 - Um lançamento de natal que vale mais a pena é Operação Presente, da Aardman. Vale a pena, eu disse, mas não tanto - e sem trocadilhos - quanto o questionador A fuga das galinha (do qual, inclusive, se distancia esteticamente, aproximando-se do padrão Disney-Pixar), salvo engano o primeiro grande sucesso do estúdio. Agora o sentido geral é francamente conciliatório - tecnologia e tradição, conflitos de gerações etc. -, e, principalmente, em nenhum momento se questiona o sentido mercadológico do natal. Mesmo assim, o desenho consegue levar um pouco de reflexão às crianças, inclusive porque seu happy end é também uma alegoria do estado de irresponsabilidade em que o mundo vive hoje.

Um comentário:

  1. Uau! Conseguiu ver tudo isso no Happy Feet 2?
    Parece tão inocente!

    Bem, se não viu recomendo uma animação belga feita por quem praticamente reinventou o 3D:
    As Aventuras de Sammy. Escrevi sobre ele:
    http://claqueouclaquete.blogspot.com/2011/01/critica-as-aventuras-de-sammy.html

    Abração.

    T+

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