VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

sábado, 24 de dezembro de 2011

O Carneirinho do Presépio

 

O menino observa as pessoas que saem e volta-se para o presépio. Examina-o com interesse. Na missa ouviu que o reino dos céus é das crianças.

Tempestade mental. Se é das crianças o céu e viver no céu é ser feliz, então a felicidade é das crianças.

Olha o presépio. O boi. O carneirinho. Os astrônomos que foram chamados reis — os reis magos. A estrela. Tudo bonito. Tudo. Enamora-se. Bem que queria um desses. O carneirinho. Só o carneirinho. O Menino Jesus, esse não. Tem que ficar no presépio. Presépio sem Menino Jesus não é presépio. O carneirinho, esse sim. Há outros no presépio. Não tivera Natal em casa. Nunca. Não conhece Papai Noel. “Será que Papai Noel me conhece? Sabe de minha existência?”

Na sua frente, o carneirinho cresce, apequena, atrai. Por que o padre falou que o céu é das crianças?

Não ganhou brinquedo e quer o carneirinho. Será pecado? O que é pecado? Para que pecado? Se é verdade que Deus ama a gente, por que ele deixou a cobra dar a maçã para Eva e Eva para Adão para depois todo mundo ter pecado?

Ele quer o carneirinho. Todos já se foram. Ninguém vê. O Cristo, crucificado, parece dormir de cansaço e de dor na cruz, na parede, lá atrás do altar. Parece não se importar com nada ali na igreja. Coitadinho de Cristo. Sofreu muito. Mas por que, se ele é Deus? Ou ele é apenas o Filho de Deus? Se é filho não é pai e se Deus é pai não é filho?!

Coitadinho de Cristo! O padre falou que Cristo sofreu para o perdão dos pecados. Não sei não. Acho que Cristo não sofreu por mim não. Papai Noel não me conhece. Será que Cristo me conhece?!

Esfrega as mãos, nervoso. A decisão. Ergue o braço, mas o gesto fica suspenso no ar com a chegada do vigário que vem fechar a igreja. Para disfarçar a intenção, limpa com o dedinho o espelho que forma o lago nas proximidades da gruta de Belém. Por que presépio em forma de gruta? Cristo nasceu não foi num ranchinho, na estrebaria, casa de animais?

— O Sinhore vai fechá a igreja? — Pergunta ao padre que fecha a primeira porta.

— Estou fechando — Responde o padre, em seu sotaque de estrangeiro, não com aquele carinho com que falou na missa da meia-noite.

— O presepe tá bunito, né? — insiste o menino, tentando coragem para pedir o carneirinho.

— Você acha? — o padre fala indiferente e o menino entende que o vigário não está interessado naquele diálogo, quase monólogo.

— Acho — termina o menino, desconcertado, infeliz. Percebe que de nada adiantará insistir. Não vai ganhar o presente.

Absorto nos sonhos, fica a olhar o presépio sem nada ver.

“Como eu queria um carneirinho desse!”

E o vigário o acorda para a realidade:

— Vamos embora, dormir?

— Vamo.

Volta-se e ainda dirige um último olhar para o carneirinho do presépio, um ente querido que talvez jamais voltará a ver. O padre fecha a última porta e se vai.

O menino, agora com medo, corre debaixo da madrugada em direção ao aconchego que o espera debaixo da ponte, onde se juntará aos pais e aos cinco irmãos menores. Dormem. Não veem a fome, não sentem nenhum desejo. Enquanto dormem, os sentidos nada reclamam. Ele sonha com o presente de Natal que não ganhou: o carneirinho do presépio.

José Faria Nunes

O autor, em outro momento de inspiração natalina

11 comentários:

  1. Este conto (que me lembra um pouco o conhecido "Os olhos dos pobres" de Baudelaire) foi publicado originalmente na Antologia Literária Escritores e Escritoras de Ouro (Rio de Janeiro, Litteris Editora, 2002, p. 10-11), como resultado de sua premiação como melhor conto no concurso de mesmo nome. Também foi publicado no livro didático Português: Linguagens, Vol. 2, de Cereja e Magalhães (São Paulo, Ed. Saraiva, 2008, p. 158-159), e pode ser encontrado em vários sites e blogs literários, inclusive com a foto que o ilustra (orignalmente em http://singrandohorizontes.wordpress.com/2011/06/18/jose-faria-nunes-o-carneirinho-do-presepio), à qual no entanto eu dei a moldura "onírica". Meu abraço e meus agradecimentos ao meu sogro e amigo José Faria por permitir republicá-lo. (O crédito da segunda foto eu informo depois.)

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  2. Muito lindo o seu conto, amigo Faria.
    Parabéns e Boas Festas a voc~e e toda a sua família!
    Aproveito pra lhes deseejar também um maravilhoso 2012!
    Arádia Raymon

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  3. Querido confrade Faria, parabenizo pela excelente filosofia, e agradeço o convite para leitura. Tenho sede de literatura, foi um prazer imenso te ler mais uma vez. Aguardarei por novas postagens. Beijo, Deus te abençoe.

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  4. Bom dia, Ravel! e Obrigado.

    O Natal é mesmo época de repensar nosssas atitudes.

    Feliz Ano Novo.

    Paracy

    Esta foi a mensagem que eu recebi, como comentário ao conto do Faria, do querido amigo e colega Paracy Corrêa Neves. Eu a havia perdido, mas agora a reencontrei, e, mesmo atrasado, aproveito para desejar um feliz ano novo a toda Quirinópolis e seus habitantes, que têm me ensinado muito ao longo desses anos; especialmente, é claro, à comunidade uegê-quirinopolina, que inclui ou incluiu verdadeiros sábios (doutores, mestres ou especialistas, não importa) como o Paracy, a Joana (a melhor chefa, ou ex-chefa, que eu já tive), o Gilberto (o melhor chefe que eu tenho agora :), a Diniz, a Marilda, a Neidinha, o Marco Antonio, os Eduardos (há uma epidemia deles em Quirinópolis), a Fabiana, a Flávia, o Carvalho, o Antonio Carlos, o Jean, o Edevaldo, o Maurinho, o Jean, a Rosa, o Fernando, o Polissandro e muitos outros que, mesmo se deixarem de me ter como colegas eu sei que me terão - como eu sempre os terei - como amigos. Com eles, realmente, aprendi muito: coisas de ciências e de vida. Meu grande e grato abraço a todos! E também aos funcionários da UEG, que eu represento na figura do Rone e da Eliene, um dos casais mais bonitos que eu já conheci. E aos meus alunos, é claro, mas a estes eu dedicarei, um dia desses, algo mais substancial.

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  5. Gostei do conto, Ravel!

    Parabéns ao autor!

    Fábio (UEMS)

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  6. Sou grato a todos e a todas pela positiva apreciação de meu Carneirinho do Presépio, que veio a se tornar o mais conhecido de minha lavra contística.
    Ao Ravel, meu agradecimento especial pela oportunidade que deu para que este meu trabalho ganhasse mais leitores.
    O autor

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