VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Dogville e o mundo cão

Eu havia decidido encerrar minha série de "intervenções" sobre o "caso Breivik" com um outro texto, conforme adiantei, aliás, em um comentário à postagem anterior sobre o mesmo assunto. Seria uma tentativa de extrair desse pequeno tumulto discursivo (para encarar a coisa com isenção, ou seja, tentando me desprender um pouco dela) uma reflexão mais geral e, ao mesmo tempo, mais concreta no que tange ao nosso cotidiano. Esse post teria como ponto de partida o convite a pensar a relação entre ética e estética formulado por minha amiga e colega Fabiana Abi Rached (no mesmo lugar recém-citado), fazendo-o, porém, no âmbito de algo que se manifesta não só nas preferências como nas feições de muitas de minhas próprias postagens, ou seja, o espírito e as formas da "cultura pop".

Seria o caso de pensar a articulação (não raro promiscuidade) dessa "cultura" com a barbárie, mais exatamente sua propensão a celebrá-la em gestos festivos que absorvem sua propalada crítica dela. E de constatar, portanto, o conluio de algumas de minhas postagens com essa lógica (confiram, por exemplo, meus "anúncios infernais" no final deste post e vejam se não é verdade). E é claro que não é em pouca medida que se pode desconstruir de forma semelhante a ideia e as ideologias da arte em geral, inclusive em suas formas - e preferências - mais "elevadas". Ou seja, notar que no âmbito da própria "necessidade da arte", para falar com Ernst Fischer, residem as demandas mais tola e/ou insidiosamente escapistas que se explicitam na cultura pop. Tudo isso certamente como um tipo de mea culpa (seria um post bastante difícil, sem dúvida, e eu estou aliviado por resumi-lo assim), mas também como uma constatação de como essa lógica viceja no âmago de nossas "melhores intenções"... Ou seja, do quanto é preciso levar a sério o que a mesma Fabiana me disse: é preciso pensar as responsabilidades de todos de nós.

Ainda pretendo dizer algo sobre isso, inclusive no sentido de argumentar em que o pop - e, claro, a arte em geral -, a meu ver, aponta e contribui com algo para além disso. No entanto, por um acaso que não é, a meu ver, inteiramente fortuito - pois mostra como de fato essas coisas estão todas articuladas -, a questão colocada por minha amiga ganhou, repentina e inesperadamente, uma ilustração dentro do próprio contexto - o "caso Breivik" - em que foi colocada. Trata-se, naturalmente, da descoberta de que Dogville, de Lars von Trier, é um dos filmes preferidos (mais exatamente, o terceiro) de Breivik, seguida da inevitável desconfiança - aliás alimentada pelo próprio cineasta - de que as ações do "terrorista" norueguês tenham se inspirado nele. O próprio Trier viu no massacre da ilha de Utoya uma "semelhança muito desagradável" com seu filme.

Não é a primeira nem, certamente, a última vez que uma obra de arte é acusada de causar esse tipo de "efeito". E, como quase sempre, a acusação não deixa de fazer algum sentido - ou vamos supor que a arte, no máximo, "retrata" a realidade, e de modo algum interfere nela? -, mas apenas numa perspectiva muito limitada, que ignore, antes de mais nada, a complexidade das motivações que determinam um ato atroz como o de Breivik. Este pode ter se identificado com o filme de Trier - ou melhor, sua protagonista -, e até, de fato, usado-o como modelo ou roteiro de seus crimes; mas estes, certamente, tiveram uma gestação muito mais longa.

Aumentando a polêmica, o líder do partido de utradireita acusado por Trier de ser co-responsável pelos massacres de Breivik relembrou declarações recentes do diretor em defesa (ou algo assim) de Adolf Hitler: "não é o que chamaríamos um bom homem, mas simpatizo um pouco com ele". De minha parte, por mais que essa declaração me desagrade, veja nela o mesmo estilo bombástico que Trier exercita "artisticamente", e também a recusa a todo e qualquer maniqueísmo - no caso, o que faz de Hitler o símbolo de um Mal Absoluto, ou seja, um Mal como que indeterminado - que nem sempre a crítica percebe em seus filmes.

O fato é que se Breivik se identificou com Dogville, certamente o fez de forma errada, ou melhor, espuriamente parcial. A evidência - marcada de forma extrema no episódio da morte das crianças em "troca" da quebra dos bonequinhos - do quanto Grace se torna pior que seus algozes é muito grande para atribuir a seus gestos qualquer sentido de justiça. Quase desde o início, aliás, Grace piora - e muito - as coisas em Dogville, enquanto seu pietismo - na verdade a tola autocomplacência com seu "missionismo" - a cega para a enorme confusão, social e libidinal, causada por sua presença e sujeição física.

No meu entendimento, o filme de Trier versa sobre a miséria da complacência populista, salvacionista e supostamente desinteressada de certa "concepção democrática" de mundo (assumida por sabe-se bem que nação), com sua visão deturpada, reducionista e infantilizada do outro, pronta a tornar-se o contrário, ou seja, visão infernal, demonizadora, tão logo - não tão logo assim, no caso de uma Grace como que caída do céu - a face contraditória desse outro se revele. Um índice do caráter hiperbólico que Trier atribui à desumanização dos habitantes da cidade emerge ao fim ou mesmo "depois" do filme, quando, durante ou após os créditos finais, são projetadas fotografias de pessoas que percebemos serem algo como "equivalentes reais" dos personagens que vimos em ação, e cujos sorrisos, olhares melancólicos etc. lembram o quanto de profundamente humano reside, apesar de tudo, no seio da realidade.

Não quero dizer, com isso, que Dogville seja um filme imune a críticas, inclusive no que diz respeito a suas implicações éticas. O próprio Trier falou sobre seu caráter "pedagógico" em sentido contrário às ações de Breivik; no entanto, eu mesmo tive a experiência de ver o final do filme - ou seja, a vingança de Grace - aplaudido por uma turma de alunos universitários, o que me obrigou a uma espécie de ritualística ou terapia de choque no sentido de inverter e expor o absurdo dessa recepção desumanizadora e, aliás, desumana (além de desistir de usá-lo, justamente, como ferramenta pedagógica). E encontrei críticas na internet, algumas não propriamente desinteligentes, abonando essa recepção. Ou seja, se a intenção de Trier era pedagógica - e não estou entrando, aqui, no mérito relativo a uma tal concepção de arte -, algo não deu certo em seu filme.

Talvez porque sob a superfície - a meu ver explícita - dessa intenção residam, mesmo, elementos ambíguos e eticamente duvidosos - mais, pelo menos, do que eu costumava admitir -, e a idealização do mafioso em carrasco sensível (que quer matar a filha mas depois lhe pede para poupar seus algozes, o que talvez também signifique salvá-la espiritualmente) talvez seja um índice disso. A própria declaração de Trier, aliás, salientando as coincidências entre o filme e o massacre na ilha me parece estranha; algo como a atitude um sujeito brilhante e confuso, indeciso entre o empenho de tornar-se um artista verdadeiramente sério e ser, mais que tudo, um polemista-propagandista de si mesmo - algo de que, naturalmente, a declaração sobre Hitler é uma manifestação bem mais direta e infeliz.

Mas eu posso estar sendo injusto. A preocupação de Trier pode ser sincera, em se tratando, aliás, de um artista que cujo primeiro grande êxito (Os idiotas) manifesta uma inequívoca força autodesconstrutora. E quem sou eu para censurar mea culpa e autopublicidades (promovo minhas postagens e outras deste blog o tempo inteiro) alheias?

De qualquer forma, não é o caso de pleitear de uma caça às bruxas. A vigilância crítica é necessária, mas ela só pode ter um sentido benéfico se assumida voluntariamente como uma demanda interior e construtiva - ou seja, se subordinada a uma demanda de fidelidade ao melhor de si. Os méritos de Dogville - um filme que admiro e aprecio, mas no qual vejo certa distância entre a qualidade (sobretudo textual, e se trata de um filme muito textual) e a intenção artística - têm relação, a meu ver, justamente com sua coragem e radicalidade no trato com as contradições da realidade, algo que a arte séria não pode senão almejar em nosso tempo. Ainda assim, as contradições talvez inevitáveis que emergem de seu choque com a realidade (e de seus próprios e vários "níveis de realidade") obriga a recolocar a questão que colocamos no início: não haverá, mesmo no âmago da arte mais séria e "profunda" que se produz hoje - inclua-se aí ou não a produção de Trier, o que é uma questão em aberto -, algo ainda aquém da responsabilidade exigida por nosso tempo?

Enfim, que Trier continue a fazer seus filmes, e que estes façam cada vez mais justiça a sua inteligência e sensibilidade. É tudo o que podemos desejar (na impossibilidade de lhe dizer isso :)). Vejam aí um dos benefícios da arte: o de sorrir. Essa necessidade, de novo com Fischer. Aliás, queria ter ilustrado este post com uma das imagens de rostos sorrindo no final de Dogville, mas não a encontrei pelo google. Trier, por sinal, tem uma comédia, que não vi. Enfim, que não lhe falte Amor e Humor. Sobre isto, aliás, é meu próximo post; se os dias estiverem - aparentemente, como sempre - mais ou menos amenos.

Sim, sempre aparentemente. Pois não custa lembrar isso que alguém, assinando como Márcio, postou outro dia nos comentários do yahoo após uma notícia sobre os acontecimentos na Noruega: que fatos tão ou mais atrozes ocorrem em países africanos todos os dias e mal tomamos conhecimento deles. É verdade: a África (ou as Áfricas, inclusive as nossas) não existe para nós. Por que será?

Nota importante: não pretendo sugerir, com a foto que me permiti usar neste post, que a humanidade de Hitler transpareça em seu conhecido afeto pelos cães. Mesmo porque é mais fácil, muitas vezes, nutrir afeto e piedade por seres ditos irracionais, ou, em todo caso, que não têm a complexidade e as contradições da alma humana, do que pelos homens que sofrem. E não custa lembrar que o treinamento dos oficiais nazistas - Tom Zé, citando Riana Eisler, informa isso no encarte de um disco seu - incluía abater animais domésticos, aos quais eles haviam se apegado, sem demonstrar emoções. Pensar Hitler como um ser dolorosa e  contraditoriamente humano não pode sugerir o apagamento do quão impensavelmente longe se foi aí - em seus atos - na detratação de qualquer sentido positivo que se pode atribuir a esse mesmo adjetivo: "humano".

5 comentários:

  1. Querido Ravel, o seu texto me fez pensar em muita coisa, nao sei se conseguirei expressar neste pequeno espaco. Primeiro, o filme Dogville me impressionou bastante, e tambem me fez pensar o quanto a "neutralidade", conformismo, apatia e pietismo de certas pessoas corroboram com o horror, ate, inclusive, fomentando o mesmo. A "superioridade" de Grace de enfrentar todos os abusos mostra-se como a outra face do totalitarismo - por tras de sua complacencia esconde-se uma arrogancia e um odio a humanidade, e as suas fragilidades (disse Freud que amar a todos indistintamente, acaba por fazer injustica ao objeto - ao amor, ao objeto que deve necesariamente ser amado.)Por isto, a personagem se revela tao mais cruel que seu algozes... mas essa e outra discussao.
    Segundo, a imagem que voce colocou nao faz pensar num Hitler mais "humano". Ao contrario: me lembra das relacoes reificadas que pessoas com carater autoritario estabelecem com seres vivos (coisas, objetos, humanos e animais sao a mesma coisa!). Tais pessoas se relacionam com tais seres de forma utilitaria, e nao tem capacidade (como voce muito bem ilustrou)de identificacao com o outro. Muito bom seu texto!
    E tambem presenciei pessoas no cinema aplaudindo a personagem no final do filme, o que me chocou um pouco. (Alias, sei de psicologos que indicam o filme neste intuito pedagogico, para focar a questao da "reviravolta" da personagem como exemplo... acredita?) De fato, as ambiguidades de obras de arte seria devem ser pensadas, pois o publico que a recebe ja e muito suspeito, ou seja, o problema nao esta na arte, mas nas pessoas, na sua formacao.. Enfim, nao sei se fui clara.
    Abracao!!
    Ana Paula

    ResponderExcluir
  2. Oi, Ana!
    Obrigado por seu comentário. Estou numa correria danada mas não resisto a parar um pouco pra comentar que me assombra muito, isso de psicólogos usarem a Grace como exemplo para fins motivacionais. Aberrante, grosseiro, esses sujeitos precisam de psicólogos de verdade. Também concordo com vc quanto ao problema estar mais na formação dos espectadores, mas a questão são os "fins pedagógicos" de Trier. É possível ser pedagógico e "radical" ao mesmo tempo? Talvez esteja aí o problema, ou essa pode ser uma falsa questão, não sei... Por outro lado, há realmente algumas coisas que me incomodam no filme, embora só o que eu lembre agora seja a composição do pai da Grace. Por último, a foto do Hitler. Sim, ela é bem estranha. Até o cachorro é bem estranho, parece amendrontado. Mas sempre que me vem essa tendência quase inevitável ("quase inata", eu quase escrevo) a tranformar Hitler em objeto de ódio, eu me lembro que ele quis ser pintor, ou seja, "artista", com ou sem aspas. Hitler também foi criança, diz uma canção da Adriana Calcanhoto. É piegas e talvez ingênuo, mas serve para lembrar que a monstruosidade de ninguém (inclusive Breivik, ostentando aquele cinismo assustador) é indeterminada. Ou seja, de alguma forma esses e outros monstros são também vítimas. Do quê? De uma lógica perversa, sustentada por outros monstros.
    Mais uma vez obrigado, e um abração!
    Ravel.

    ResponderExcluir
  3. Outra coisa: essa relação entre tadicalidade artística e findas pedagógicos, na verdade um certo didatismo, eu abordaria no texto que desisti de escrever sobre Elefante, de Gus Van Sant (de quem gosto mais que de Trier), e que aliás tem relações diretas com tudo isso. Talvez um dia eu retome esse texto mais diretamente a partir dessa questão.
    Outro abraço,
    R.

    ResponderExcluir
  4. Ravel, concordo com você que aquele que comete atrocidades é também uma pessoa que foi "vítima" desse mesmo processo de desumanização, e que suas atrocidades saõ mataerializadas, levadas em frente, porque há muitas pessoas com as mesmas disposições psíquicas para tal. Não devemos recair em discussões simplistas acerca disto. Mas, de fato, a foto provoca medo, e não "compaixão"..
    Abração!
    AP

    ResponderExcluir
  5. Compaixão pelo cão, talvez?, rs (se isso tem alguma graça). A propósito, quero recomendar um livro que tem, de alguma forma, relação com o assunto: Rita no Pomar, de meu colega e amigo Rinaldo de Fernandes. Excelente. Recém-publiquei um texto sobre ele: http://www.iel.unicamp.br/revista/index.php/remate/article/view/1131/1105
    Agora eu vou!
    Abraços!

    ResponderExcluir