VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Augusta














Usando seu belo vestido comprido de seda preta Augusta que me puxa os cabelos
Augusta que urra com a minha boca sob sua saia. Augusta a bela dama de olhos néons e
9 mm preso na meia calça

Somos cobras calçando oxford rastejando nas múltiplas estampas de sua pele pálida
somos André e Gina. Párias de nariz branco e olhos pintados

Augusta que geme enrolada junto ao vicio que queimo constantemente.

Augusta que me batiza bebida que arde garganta e me faz ver Augusta pelos olhos
fluorescentes pulseiras no meu braço que dançam no escuro som dos gritos de
Augusta que nos limpa do canto da boca com língua afiada noite adentro de si.

Augusta que me fuma
Augusta que me cheira
Augusta que me bebe
Augusta que me entende e isso basta.

André

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Muito lixo, muito luxo, mas também algum sumo (inda que espectral)


Vi esses dias, num programa em família, o novo blockbuster animado da Blue Sky. Sensorialmente, é uma boa experiência: o Chico, não estivéssemos sob o teto de um templo que nos tolhia o céu (azul escuro, àquela hora), talvez saísse voando pelo mesmo. Estética e ideologicamente, é um caso a se discutir. Inclusive, a meu ver - e com o perdão do pedagogismo -, com as crianças, pelo menos a partir de certa idade.

Rio, segundo dizem - e embora o roteiro seja de Don Rhymer -, é um projeto pessoal do diretor Carlos Saldanha. Sem ser uma obra-prima, não é um mau filme. Comparado ao grande sucesso do estúdio (e de Saldanha), a série A era do gelo, é menos grandioso (sem demérito para as utraestilizadas "tomadas aéreas" da Cidade Maravilhosa), com um roteiro muito mais simples mas também menos histriônico, sem se tornar tedioso em nenhum momento. É um pouco menos sádico, também, a bem da verdade quase complacente com os "do mal", algo em que certamente entra, com o perdão da rima, alguma má consciência social.

Enquanto entidade moral-metafísica, aliás, o "mal" fica a meio caminho da naturalização e da condição propriamente social, já que seu principal representante fáunico, uma cacatua-monstro, é um pequeno refugo da indústria cultural, embora também, na velha ideologia do moralismo individualista, uma vítima de sua própria vaidade. E se aos bandidos humanos não cabe o benefício dessas explicações, de certa forma sua condição se reflete na do personagem que é o núcleo da "mensagem humanitária" (fora a "ecológica") do filme, ou seja, o menino (convenientemente, um "pretinho") a meio caminho da criminalidade, e pelo qual um dos traficantes tem particular simpatia. Ou seja, mesmo os monstros não são tão monstros assim, e podem ter sido, um dia, humanos. Muito bonito e correto, mas, na forma como é construído, francamente complacente com o grau de desumanização a que chegamos, e nem um pouco sensível aos fundamentos político-econômicos desse estado de coisas. Mas, enfim, é um filme para crianças que tenta abordar assuntos sérios de uma forma minimamente responsável.

Ou não tão responsável assim? Afinal, que dizer desse fato ao mesmo tempo grotesco e pueril que é a falsificação, digamos, ecossistêmica do enredo, ou seja, o fato de as araras que protogonizam a história estarem deslocadas do que foi um dia seu habitat natural? (Sobre isso, cf. este post.) Sem falar nesse outro, de que o filme fantasia uma salvação para um espécie já extinta sem alertar para isso. É claro, a melancolia não é um sentimento que se inculque nas crianças nas horas de lazer, mas acho que isso só torna a morbidez latente mais pulsante sob a película das conveniências - como aliás ocorre em A era do gelo, com a diferença de que neste caso o homem não desempenhou nenhum papel no processo em questão.

Quanto à questão do deslocamento geográfico, penso que, para além de nossos sempre nocivos centrismos geopolíticos (escrevo isso como carioca), estamos diante de outra demonstração de que o Brasil continua a ser visto como massa moldável às conveniências (de novo ela), no caso, evidentemente, às simbólico-mercadológicas implicadas na cor azul. Quando o casal formado pelo ambientalista brasileiro e a ex-proprietária (de um "produto" brasileiro, e ainda que "acidental") se unem na construção de uma espécie de espaço ecoutópico que abriga também o pequeno refugo humano de nossa tragédia social, tem-se a impressão de que ainda aí grassa aquela palavra-de-ordem anunciada por Raul Seixas (outro baiano, aliás, que, assim como a arara Blu, transitou de seu Estado para os EUA e daí para o Rio), segundo a qual "a solução é alugar o Brasil". E aí já soa bem mais perniciosa a justificativa com que o Ultraje a Rigor (a banda paulistana mais carioca dos anos oitenta) se consolava da censura às imagens de sexo na tevê: "Vá lá, vai ver que é pelas crianças"...

E que dizer, ainda, dos maquinhos batedores de carteira? Se há, de fato, macacos furtadores, não creio que se associem, pelo menos espontaneamente, a marginais humanos como os do filme (salvo engano, aliás, todos "morenos"). Nesse caso, a naturalização e os processos sociais se enlançam na forma do clichê mais pernicioso, e tanto mais porquanto perfeitamente consagrado.

Mas não quero ser injusto. Rio é um belo filme, que não vai muito além mas também não se esgota na plasticidade viva, na musicalidade envolvente e no enredo simples mas engenhoso. Disso tudo, emana (vejam que sublimo a coisa) pelo menos um sumo moral: a confiança, sentimento mais do que valioso em tempos sombrios como estes. Fosse um pouquinho mais sério (um pouco mais paulistano, talvez), poderíamos ouvrir em sua trilha sonora os versos de "Para ser humano", do Ira!:

Olhe para o ser humano
E tente nele confiar
Porque esse é um mundo injusto
A se autodetonar
Porque esse é um mundo incerto
Que seus filhos vão habitar

Esse gesto, afinal, é o que o casal de protagonistas (humanos) concede ao menino-tipo, síntese puerilmente positiva do herói-bandido que habita nosso imaginário, muito embora ela, a ex-proprietária da arara e futura tutora do menino, a certa altura se arrependa desse gesto, exigindo dele, o menino, a ação necessária para reconquistá-la - a confiança e o direito a uma vida melhor, quiçá "de primeiro mundo", em solo, águas e espaço aéreo nacionais. Tudo muito bonito e esperançoso, mas não menos suspeito, a própria esperança se deixando assimilar pela lógica ideológico-espectral. Trata-se, afinal, de uma semente viva ou de um detrito a ser reciclado por mãos hábeis o bastante?

Enfim, se é o caso de escolher uma imagem que sintetiza os méritos e deméritos desse filme, eu escolheria - naturalmente inspirado pela postagem de meu amigo e colega Ademir Luiz (ver aqui) - as do episódio em que os bandidos se inserem (convenientissimamente, para eles e para eventuais fins "turísticos") no desfile da Sapucaí, a fim de escamotear e consumar seu tráfico antiecológico. Antes que o verdadeiro e esculhambadíssimo carro alegórico forjado por eles apareça, vemos um outro, luxuosíssimo, com o mesmo tema. Mas o engano do chefe dura pouco, e o nosso também... pelo menos nesse quesito.

Mas não, não sejamos injustos. Afinal, essa imagem sugestiva e divertida me lembra outra: a da censurada alegoria do Cristo de lixo que, em algum ano do milênio passado, Joãozinho Trinta tentou exibir ao fim de um desfile da Beija-Flor. Mas é claro que isso não caberia aqui (como, salvo engano, não cabe sequer um singelo beija-flor). Não nesse Rio em itálico e de molde a provocar risadas. O Cristo que vemos aí, em "panorâmicas" formidáveis, é limpo de tudo: chagas, lágrimas e pichações. Mas "tudo bem": em filmes assim a "natureza" e a fantasia sempre falam mais alto que nós, seres ditos humanos. Pelo menos os moreninhos e terceiromundistas.

terça-feira, 12 de abril de 2011

Líbia, Japão, Golfo do México: o óbvio ululante e o surdismo sistêmico


Esta não é a primeira vez que inicio a redação desta postagem. Na verdade, já a havia começado duas vezes, sendo que da primeira ela seria um comentário sobre o acidente, desastre ou  como quer que se denomine o "pequeno" horror nuclear no Japão, esse evento cujo desenrolar na verdade ainda acompanhamos, e de caráter tão assustador - sobretudo em sua possibilidade de se tornar algo muito maior - que torna banal e cotidiano um paradoxo como este, de se enunciar diminutivamente algo a rigor muito terrível, ou ainda esse outro, de sobrepô-lo à, a rigor, não menor tragédia mais propriamente natural, ou seja, o conjunto da devastação causada pelo abalo sísmico.

Mas, enfim, logo me dei conta de que não poderia tratar de um assunto tão grave sem tratar de outros. Que havia algo de profundamente errado, mentiroso mesmo, em tratar as graves ocorrências que têm se acumulado com uma velocidade algo espantosa da forma dissociada como tem feito a mídia, como se elas não participassem de uma totalidade. Sem dúvida que favorece isso a "diversidade geográfica" desses eventos, isso, no entanto, que também exige perguntar se não é, justamente, de uma amplitude que se trata.

Desnorteado como fiquei pelo noticiário a respeito do "primeiro" - e, queira Deus, último - "Columbine" brasileiro, era inevitável que minha primeira racionalização desse atordoamento fosse ver aí mais um (pois não é, nem de longe, o único) corolário  espiritual desse estado de coisas; desse estado do mundo que não posso deixar de ver refletido nesses eventos que se sucedem, e que nos são dados a engolir misturados a um pequeno coquetel de engodos, meias verdades e, mais do que tudo, hipocrisias.

Insistir no caráter acidental do que houve no Golfo do México e ainda há no Japão é quase tão esquivo (para não dizer equívoco) quanto tomar tais eventos e as convulsões (e intervenções) belicosas na África muçulmana como coisas passadas em "outro mundo". Não há apenas acidente quando tantos interesses favorecem a configuração das estruturas, dos planejamentos, das políticas, decisões e implementações das coisas. Da implementação, no caso - ou seja, de alguma forma enfeixando os três casos em questão - de toda uma política de exploração dos seres e das coisas, de erigimento e sustentação de toda uma construção "civilizacional".

Afinal, tanto quanto a usina de Fukushima (que todos sentimos, a despeito das distâncias efetivas, como bem mais próxima de nós do que Chernobyl, cujo horror nos foi apresentado como mais um entre outros atestados da falência do estado soviético) e as explorações petrolíferas da British Petroleum, também a economia da África do Norte integra um mesmo complexo produtivo votado ao atendimento de um mesmo conjunto de demandas "civilizatórias", que não podem ser seccionadas em função da localização geográfica ou dos regimes político-econômicos que compõem suas realidades particulares.

E não só o fato de as "políticas energéticas" implementadas sob a égide (mas é apenas isto: uma égide) do desenvolvimento capitalista determinarem as condições de existência contra as quais se soergueram os rebeldes na Turquia e no Egito, como também este outro, de ser cada vez mais transparente o quanto elas estão em jogo na intervenção dita internacional na Líbia (cf. aqui uma boa análise dos interesses em jogo aí), são dados que os aparelhos de agenciamento da opinião pública insistem em manter no providencial lusco-fusco das discussões - e motivações - humanitárias e regionalistas.

Elide-se, assim, algo pelo menos tão gritante e escandaloso quanto os horrores impetrados nas guerras ditas domésticas: a teia de contradições em que se enredam essas justificativas, e com elas, é claro, as ações impetradas. E, mais, elide-se o fato de que é algo muito próximo a um desespero logístico que move tudo isso, ligado ao reconhecimento implícito de um estado de crise, da condição emergencial de um estado de enorme fragilidade sistêmica. Nisso, a afoiteza do "socorro" à Líbia e os "acidentes" nos empreendimentos industriais da British Petroleum e da Tepco se igualam: no desvelmento de quão precárias são as bases materiais mais elementares - as "matrizes energéticas" - do estado do mundo que compramos e aceitamos como nosso.

De alguma forma, também Belo Monte figura nesse quadro. Por mais que isso que por enquanto é um projeto engatilhado deva ser distinto dos dolorosos eventos em curso (mesmo o derramamento de petróleo no Golfo do México continua a produzir graves consequências, ditas - como se designando algo à parte de nós - ambientais), o conluio sistêmico, ou seja, a legitimação ancorada na mesma "lógica produtiva" (que sabemos perfeitamente destrutiva) por trás desses empreendimentos é evidente, e não há retórica ou pragmática nacional-desenvolvimentista que elida isso (ainda que as questões referentes à soberania nacional tenham aí o seu peso).

De qualquer forma, sempre foi claro que também nisso Dilma Rousseff continua o governo Lula: na adoção de uma política econômica consumista-desenvolvimentista, se não inteiramente atrelada à expansão do "capitalismo internacional" (outra expressão altamente sinuosa: onde fica aí, por exemplo, a China?), certamente ligada às mesmas bases antropossociológicas, as mesmíssimas bases das sociedades de exploração e dominação do homem e da natureza que encontram não sua gênese, mas sua glorificação na predação capitalista.

E o óbvio que se tornou gritante demais para não lhe darmos ouvidos é que são essas bases que se tornaram insustentáveis; que o pouco que elas nos prometiam em troca da vida reprimida, regulada e alienada - ou seja, "conforto", "padrão de vida" e "segurança" - se assentava nas bases de um grande engodo. Fukushima é apenas a demonstração mais gritante disso; pois mesmo às consciências mais alienadas se tornou evidente que um acontecimento como o japonês lança uma sombra muito assustadora sobre essas enormes monstruosidades chamadas usinas nucleares com que se minou o planeta. Nada assim tão novo, nada que os "ecochatos" não alardeiem há décadas com enfadonha insistência, atrapalhando nossas ruminações sobre coisas tão mais complexas quanto, no fundo, inessenciais - pelo menos quando dissociadas das coisas de fato, ou seja, elementarmente essenciais.
 
E o fato é que, por mais que se clame contra o alarmismo, os alarmes têm soado por si mesmos. Nesse sentido, Fukushima é uma das peças de um quebra-cabeças muito maior mas muito fácil de se montar, e em cujo frontispício se anuncia, em letras claras o bastante para quem não quiser deixar de ver, uma falência verdadeiramente sistêmica.

Sem dúvida, a necessidade de "optar" (como se fosse assim tão simples) entre a barbárie em curso e uma outra coisa quiçá um pouco ou um tanto melhor - "socialismo" a designa, ainda? - é mais imperiosa do que nunca; mas tão imperioso quanto isso é assumir em todas as suas consequências o que isso significa na prática. Pois é evidente que os "discursos revolucionários" se tornaram pouco mais do que um substituto para a assunção de algo muito mais árduo de se conquistar ou construir.

Nenhum horizonte novo se tornará minimamente palpável enquanto a necessidade de zelar por nossas "bases civilizacionais", com todas as "conquistas" do conforto, da medicina e, claro, da nutrição - que, não obstante, incluem as doenças emergentes e as sociopatias -, enquanto essas "necessidades", eu dizia, se impuserem com a força que todos sabemos ser muito semelhante à dos vícios mais miseráveis.

Tanto mais quando essas "necessidades" se impõem tão frequemente mesmo às ditas consciências esclarecidas. É uma atitude padrão e disseminada, ligada à reivindicação de uma espécie de foro existencial privilegiado para o trabalho intelectual, o não reconhecimento cabal de que a raiz dos problemas pelos quais "nos interessamos" (não é bem o jargão acadêmico?) está ligada ao que nos consititui não apenas como partícipes dos espaços sociais e coletivos, ou seja, ao que se chama, tão objetiva quanto vagamente, a "estrutura social" (sem que, geralmente, se precise do quê: um país, uma cidade, a existência?), mas também com o que nos constitui, de forma ao mesmo tempo muito mais ampla (ou seja, coletiva) e completamente individual, como seres humanos. Não há possibilidade de um passo firme em direção a qualquer melhora efetiva se não for por aí, e na decisão de fazer do compromisso com isso um lastro ético-decisório para todo o "resto", ou seja, tudo o que nos constitui na prática, ou seja, na existência efetiva.

E, cá entre nós, há poucas coisas mais constrangedoras para a classe dos intelectuais do que a frequente aliança, dentro dela, de "consciência" e  discursos indignados com a participação ativa na pragmática destrutivo-consumista, leia-se consumidora, do mundo. Deste mundo que, de fato, se consome nas orgias cotidianas com que celebramos nosso dito ascendente "padrão de vida" - e talvez seja a última palavra, aí, que mais mereça as aspas.

domingo, 10 de abril de 2011

Dedico esse instantâneo de um fugaz gesto de ternura – uma cena ficcional com menos de um segundo, mas nem por isso menos real – à memória das crianças que não tiveram (e também às que tiveram) a sorte desses personagens fixados no cartaz do filme Elefante, de Gus Van Sant. 
Que ao menos o alento de gestos como esse se torne um dia universal.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

O horror vive

Ainda é cedo para se pensar no que houve - aliás ainda há.
Por enquanto, apenas o que se sabe, novamente
(impondo-se à consciência arrefecida dos horrores de todos os dias, inclusive aqueles impetrados pelas "forças legalmente constituídas"),
é que o horror vive.

(e disso saberemos, quem sabe, até que outras notícias nos tornem banais os rostos que serão estampados, como os de tantos horrores recentes da tragédia brasil)

E agora não há sequer o consolo dos clamores de vingança...
Apenas isto:
o horror vive.

(no meu rio de desesperos, em 07/04/2011)

(que ao menos o esquecimento - ou, quiçá, algo melhor que isto - seja pleno,
e lave tantas tantas almas tão feridas)

quinta-feira, 24 de março de 2011

Em cima do muro há um poeta em cima do muro


que passa pé frente pé no bambo muro concreto, de asas
abertas jogando de cintura ocidente-oriente
sorte se meu Greenwich fosse apenas bipolar mas
tridimensional ainda é pouco quando distorcido pelo tempo


voltimeia me confundo falando que o outro é melhor que
aquele que sou eu. e não posso ser assim?
me dedicaram certa vez “desregramento do turismo interior” e
quando me desregro me catalogam, nos assim e nos assados.


Agora como Hilst
Depois.
Depois. Depois como Clarice
Nos incluíram nos Fernandos!


E agora José?
Ta todo mundo tisperando i cê aí. Brincando de
anda no alto.
Desce que tu vai cai muleque!
se a queda fosse literal seria menos doída.


O Seu Lírico mando um e-mail
ta lá se divertindo, te deixou na mão.
Já disse pra desce daí!


Mas nós continuamos firmes cambaleando pela rosa dos ventos
agora eu os vejo por cima e reluzem ao sol suas
cabeças desmatadas pelos anos. Todos “gling-glang”.


no geral, então, sou Clarice Hilst de Andrade Pessoa?
sou aquela paria sem catálogo o vírus
que existe e complica.


Sou um profeta-pássaro tentando bater asas
e correr pro vôo. pro povo.
prum dia, quem sabe, virá categoria
pro dia que os mais novos (que verão por cima
minha brilhante clareira) serão incluídos
no que nessa se baseia um poeta em cima do muro. 


Vic Ferraz 

(Com agradecimentos do blog ao autor e à amiga e, estamos certos, futura colaboradora Dani Portela.)

quinta-feira, 10 de março de 2011

Administração para a morte


Quando Adorno nas suas críticas contundentes acerca do capitalismo avançado e das vinculações da democracia com o totalitarismo, afirma que Auschwitz é mais do que um campo de concentração, mas, sim, tornou-se uma alegoria do "capital desencantado" (ou do trabalho morto, ao contrário da máxima encontrada nos campos de concentração de que "o trabalho liberta"), isto fornece subsídios mais do que suficientes para se pensar em qualquer fenômeno contemporâneo - cultural, político, social, psicológico - que instila violência, medo, impotência e angústia nas pessoas. Se for certo que hoje, para se fazer a denúncia de situações que reforçam as condições de desumanização dos sujeitos, devemos exagerar nossas análises - "o exagero é a única forma de revelar a verdade"-, é justamente porque isto acaba por comprovar o quanto estamos acostumados com a barbarização da vida cotidiana; ou, talvez, anestesiados com o horror gerado pelo mundo administrado cujas consequências são as apatias generalizadas de grande parte de pessoas frente aos acontecimentos.

É neste sentido que o tema sobre "suicídio no trabalho", estudado recentemente por pesquisadores franceses (vide Cristophe Dejours nas pesquisas sobre "psicodinâmica do trabalho"), tem apontado para a similaridade das 'gestões de trabalho' encontradas nas grandes e médias empresas, com os princípios nazi-facistas de administração burocrática aplicados nos campos de concentração e nas fábricas de produção bélica do período entre-guerras. O suicídio do empregado no local de trabalho (o "antigo" trabalhador denominado, hoje, pelo discurso neoliberal de "operador", "empregado") cada vez mais corrente na Europa, mais do que um ato de desespero ou de "desequilíbrio psíquico" do sujeito mediante as pressões cruéis de trabalho, torna-se a expressão máxima das intrínsecas relações da razão instrumental com a destrutividade em prol da produção econômica. Esta forma de "morticínio administrado" (dentre outras formas de horror na atualidade, inclusive, campos de concentração, deportação de etnias, grupos de extermínio, etc) torna legítima as afirmações de Adorno sobre a continuidade de condições objetivas e subjetivas no capitalismo tardio que foram propícias ao clima cultural que permitiu Auschwitz que, por sua vez, desdobra-se em novos acontecimentos na contemporaneidade. Desses acontecimentos, por exemplo, pensamos na ocorrência de suicídios de sujeitos que, aparentemente, são considerados adaptados ao sistema, com seus salários e estilo de vida conformista, passíveis de causar inveja às milhares de pessoas desempregadas e excluídas do trabalho formal. Entretanto, tais sujeitos que até chegam a ocupar altos cargos nas grandes empresas (a de aço, automobilística, eletricidade, telecomunicações) atentam contra as suas próprias vidas nos locais de trabalho, assim denunciado o que se oculta por trás das novas organizações empresariais com suas fachadas limpas e higiênicas denominadas de "vitrines do progresso".

No filme "O Corte", de Costa Gravas, o personagem central - um engenheiro chamado Bruno Darvert - ao ser demitido após 15 anos de trabalho numa empresa de papéis não se mata, mas torna-se assassino de seus possíveis concorrentes (também desempregados) no mercado de trabalho. O filme ilustra bem o modelo econômico mundial no qual vivemos e elucida a temática aqui colocada: as pessoas sob o capitalismo tardio, em face das condições desumanas e de "darwinismo social" suscitado pelo modelo econômico neoliberal, têm eliminado umas às outras para garantir a autoconservação desenfreada pelo capital. E aquelas que não agüentam as pressões de uma racionalidade (de modelos administrativos e de uma totalidade social) que é, em si, irracional, acabam atentando contra suas próprias vidas, significando uma situação na qual as organizações sindicais tornaram-se inócuas, e na qual o sacrifício individual – princípio que rege nossas vidas no sistema capitalista -, ao lado do enfraquecimento de instituições sociais formadoras, tornou-se norma ao ponto do sacrifício ser a própria vida do sujeito. No filme, o desemprego é mostrado como fator também determinante do modo de funcionamento capitalista - as pessoas são descartáveis e somente úteis quando, contraditoriamente, passam a integrar o exército industrial de reserva.

A reestruturação das novas formas de trabalho tem ocasionado efeitos funestos na psicodinâmica dos sujeitos, assim validando as teses dos frankfurtianos (Adorno, Horkheimer e Marcuse) acerca do mundo administrado, ou da sociedade unidimensional. Ao contrário do que Marcuse pressupôs acerca da automação do trabalho e suas conseqüências positivas para o tempo livre, o homem não acabou sendo liberado para o “jogo das livres pulsões eróticas”; ao contrário, a vida da classe trabalhadora tem se tornado pior, pois tem aumentado a intensificação do trabalho associada, agora, às novas formas de controle sobre o trabalhador, assim liberando suas pulsões destrutivas e mortais. Não à toa, lembramos do aforismo de Adorno “A saúde para a morte”, em que ele fala sobre como a “velha injustiça” ainda continua sob o véu tecnológico e sob a racionalização do trabalho. A dor corporal, a dor física, sob o trabalho alienado ainda subsiste; os mecanismos psicológicos de defesa do trabalhador têm falhado mediante tais situações de crueldade e de desumanização que se escondem por trás da fachada de um ambiente “limpo”, “democrático” e altamente gerenciado por especialistas competentes do mundo do trabalho (administradores, psicólogos organizacionais, gestores). Os recursos científicos e administrativos aplicados nas empresas encobrem e esterilizam a dor e o sofrimento psicológico dos sujeitos no ambiente de trabalho, assim acirrando a competição entre as pessoas e extinguindo qualquer tipo de pensamento crítico – ou você se adapta (às custas do adoecimento psíquico) ou você morre. Eis Auschwitz como “alegoria do capital”.

Matadouros de Anjos

Recentemente, observando a semelhança entre dois textos, resolvi recolher as duas violentas pérolas e me debruçar sobre elas. Uma é de Eustáquio Gorgone de Oliveira, e outra de Luiz Alberto Brandão Santos. A primeira é Matadouros:

Matar! Matar! Matar!
Panças e bexigas floridas
Nas paredes, no chão.
Chifres serrados se tornam
Genuflexórios da dor.
E os punhais vão separando
A língua, os olhos.
Orquídeas roxas de sangue
Brotam nos ladrilhos
Do corredor.
(O sol é uma lâmpada
Que ilumina pela janela
As correntes de ferro.)
Matar! Matar! Matar!
Dentro das veias secam
Rios de violetas.
Algumas flores fogem para os intestinos.
Mas os punhais vão procurando
As raízes da vida.
Até o músculo é um vento
Que os homens retalham. (Jornal Poiesis, ano V, número 45, março de 1997)

Nesta elegia sem adeus, Eustáquio insiste em olhar para o mundo como um grande matadouro, onde a morte é organizada que o ser humano orquestra. O humanismo é o grande ausente deste texto. O ego se vê diante da contingência, sente a finitude da carne, descobre que o ser é o ser para a morte, e o texto fixa as evidências obsessivas, claramente densas e já repisadas, da extinção da vida.

O poema encena também o genuflexório onde o autor se senta para orar depois da experiência excruciante do negativo. O próprio ritual da comunhão é uma antropofagia ritual; como um apóstolo descrente, o poeta constata a profundidade do corte que atingiu a civilização definida por Jesus, e para transcrever essa medusina experiência em palavras, recorre à observação da morte em escala industrial nos matadouros de animais. Luiz Alberto Brandão narra experiência semelhante, construindo, para transmiti-la, uma poética de anjos, que segundo ele “constitui-se de dogmas absolutamente escorregadios. Deve ser, sobretudo, rigorosamente impalpável.” Novamente, uma espécie de Judas sincero arranca a carne e a devora com sofreguidão, bebe o vinho e, pândego, se embriaga ao Comer Um Anjo: “Pelo faro/ Come-se um anjo/ Minuciosamente/ Mastiga-se a fibrosa/ Textura do seu nada/ Lentamente o oco azulado dos seus pântanos de asas/ A alimentar abstrações/ E descuidos/ Basta engolir aquele ar rarefeito/ Movediço./ Com o gosto úmido de galhos altos/ De diamantes em fatias luminosas./ Sabor caudaloso de minúsculas nostalgias/ Tempera-se somente o calafrio/ Do seu imponderável sexo de rosas./ O gosto de ângulos/ Somente/ Tosta-se o puro movimento/ Que se desprende dos músculos/ Tem gosto de silvos/ De silvos e cabelos/ Granulados/ em camadas levíssimas/ Basta inebriar/ Para que sejam insaciáveis as fomes/ Mas atenção:/ Ao comer um anjo/ Prepare seu sorriso/ Mais tosco/ Mesmo gargalhe/ Pois o corpo corrói-se/ Com a absurda delicadeza dos vácuos/ Estranhezas/ Trepidações/ A estufar todas/ As têmporas e linfas/ Suspira-se granito/ Arrota-se uma infinidade de cacos vazios/ E finalmente dorme-se/ Primitivo sono de nuvens/ Ou então/ Para aqueles de paladar intratável/ Vomita-se uma canção bizarra/ Uma canção bizarra e docemente longínqua.” (Revista Literária, ano XXVII, número 25, dez.93, jan. 94)

Como no poema de Eustáquio, a experiência do eu lírico simula a aventura de Perseu, a de olhar no rosto das Górgones; é como se o eu do poeta, ao invés de decapitar a Medusa, devorasse o monstro. Daí talvez Perseu também saísse suspirando granito e arrotando cacos da cultura clássica greco-romana.

Completando a idéia de que Matadouros e Comer um Anjo são poemas de beira-abismo, são fragmentos que observam o impasse de uma civilização, diante da qual o abismo se abriu, cito Walter Benjamin, que comenta em seu texto Sobre o Conceito de História:

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso. (Magia e Técnica, Arte e Política, Walter Benjamin, p. 226, Ed. Brasiliense)

O anjo da história citado acima enfrenta o progresso, que, enfim, se mostrou algo diferente do previsto por Hegel e Marx. O principal alvo de Walter Benjamin, a meu ver, é o materialismo histórico, e para tanto dispõe de uma figura mística para o desmistificar.

O poeta, ao descrever a receita de como se come um anjo, voluntariamente equaciona comer com copular, e de fato, é comum em várias línguas esta semelhança entre os dois vocábulos. É de profanação, dessacralização que de fato estamos falando. Tanto no poema de Eustáquio como no de Luiz Alberto, o eu devorador, matador, sádico, glutão, goza ao se entregar aos instintos de morte. O anjo é o mediador entre Deus e os homens. Na Bíblia é ele quem anuncia a chegada de Jesus. Matar o anjo e deleitar-se com sua carne, como se fosse carne de frango, é bruta negação de Deus. Na ausência de Deus, não há culpa, piedade, má consciência. A subjetividade de um, em Matadouros, busca a beleza na destruição do outro, desafia Deus em seu sadismo, saboreia e deglute o sexo do seu mensageiro, pois crê que Deus, se existe, é um proprietário desleixado e pode ser desafiado.

Lúcio Jr.

Nota póstuma: como me informa seu autor, o texto acima já foi publicado na web; entretanto, sua afinidade com o espírito do arquivos críticos justifica sua republicação aqui.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

E a classe operária salva a humanidade


Como é natural em inícios de ano letivo, meus colaboradores andam muito ocupados, e, embora eu não esteja muito menos, a obrigação de manter este blog ativo me leva a meio que improvisar esta postagem. Não que me faltem assuntos - pelo contrário, tenho bem uns dez posts entre cogitados, planejados e iniciados -, mas este é o único que me vejo em condições de desenvolver em tempo record. E como meu post anterior ("O estranho intestino"), sobre o filme Alien, este trata de algo bastante "antigo" (como dizem os adolescentes em relação a tudo que não é desta década), aliás mais ainda que o outro, com o qual, por sinal, ele guarda muitas coisas em comum.

Mas Eles vivem é um filme que eu não consigo ver pela metade. (Há um link para ele aqui, mas se você não assistiu recomendo que não leia a postagem - a do Horror Movies, não a minha!) Se as estatísticas dizem algo, creio que o fato de tê-lo visto exatas três vezes, e nenhuma delas propriamente na infância, me obriga a incluí-lo em minha lista de preferências, caso venha um dia a editar meu "perfil". Mesmo tosco e com um final risível de tão inverossímil, trata-se de um filme de pujança excepcional, como quase tudo o que fez seu diretor e roteirista, o norte-americano John Carpenter, autor, entre outras coisas, dos "clássicos" Fuga de Nova York e Halloween (a primeira versão, de 1978), de uma adaptação sumária mas enfezada do romance Christine, de Stephen King, e do estranho e sombrio, mórbido mesmo, Vampiros (ah, chegados crepúsculos...), onde, um pouco como nos filmes de zumbis de George Romero (mas de forma ainda mais ambígua, pois aqui os caçadores são, "de fato", "heróis"), os seres ditos humanos não valem muito mais que os monstros.

Eles vivem, porém, é diferente. Em certo sentido, é o máximo de humanismo a que pode chegar um diretor ácido e, por vezes, algo cínico como Carpenter. Trata-se, afinal, de afirmar que se pode, sim, tomar partido da humanidade de forma inteiramente necessária e positiva, na velha fórmula do heroísmo salvacionista; com uma diferença, porém, dos Superomens e Batmans da vida: longe de vestir uma máscara, um uniforme e/ou um aparato tecnológico - daí a diferença, também, com a tenente Ripley - que acenem com atributos sobre-humanos, é necessário que ruam todas elas (as máscaras, eu quis dizer), já que tudo é diferente de como parece ser (e são as cenas de desvendamento ou "reconhecimento", sobretudo as finais, as mais brilhantes do filme).

Mais que isso, porém, há algo no heroísmo de John Nada - nome de sugestão muito evidente para ser gratuito - que o torna um fetiche em potencial (pois o culto fetichista é indisfarçável) para qualquer simpatizante ou militante socialista: sua origem e caracterização proletárias. E isso sem qualquer "evolução" ou "sofisticação" interna além da mera consciência dos fatos e da necessidade de agir. Nem mesmo ao amor o pobre tem direito; na situação que poderia levar a isso, o abandono, ou melhor, a traição é tão precoce - digamos que anterior, mesmo, ao "envolvimento" - que não deixa de espelhar, numa intuição sociológica tão hiperbólica quanto realista, situações que conhecemos, ou, se estamos fora dessa esfera (dos pobres), estatísticas sociais que, no mínimo, intuímos.

(Mas quem somos nós, intelectuais, para nos preocuparmos com a sorte amorosa dos proletários? Que "invasionismo" é esse? O crítico responsável precisa saber distinguir, no entanto, entre o lado emocional, "romanesco", de suas motivações empáticas (pois elas sempre o são, ainda quando levam às posições mais incompreensíveis), ou seja, aquilo que não raro se avizinha do fetichismo, e os "dados empíricos" que aferem, mais que o sentido concreto e humano dessas motivações, sua justiça do ponto de vista, ou melhor, sob o próprio crivo da responsabilidade.)

O fato, porém, é que nada disso importa muito, pois Eles vivem é mesmo um filme "mão na massa". Seu elogio do vigor másculo e proletário, a serviço de uma magnífica (embora também, e justamente em sua dimensão pragmática, simplória) "desconstrução", é de causar inveja ao adepto mais fervoroso do realismo socialista. Não a puerilidade de seu sacrificialismo heróico a cargo de seu Rambo lumpen e barrigudo, ou mesmo, digamos, o lado semiótico da desconstrução que realiza, pois dessas coisas até o Plekhanov mais estreito deveria desconfiar. Sem falar na trilha sonora pop e pretensamente densa, mas menos isso do que rala, assinada pelo próprio Carpenter (que suponho ter feito mais um monte de coisas no filme).

 

A verdade é que Eles vivem exige, quando menos, a aceitação tácita de um tônus muito particular, ainda que nem um pouco raro, e que é o do macho man bronco mas cheio de razão, o sujeito tão confiante em suas mãos (sobretudo fechadas, alguém poderia dizer, e é verdade) que tem-se a impressão que elas pensam - e bem - por ele. Daí o que lhe falta em amor sobrar em pancadaria, quero dizer, o que lhe falta do amor - digamos que a plenitude do contato - sobrar na porrada.

De fato, conheço poucas cenas de luta mais empolgantes e, diga-se logo, saborosas que a briga entre John e Frank , o colega quase simpático (psicossocialmente, aliás, o filme é forte e convincente, inclusive em seu retrato da pobreza e da repressão social nos EUA nos anos 80) em quem o mocinho busca um parceiro. A seu modo, trata-se mesmo, portanto, de uma cena de amor, ainda que - aliás, perfeitamente de acordo com a lógica machista ainda imperante - apenas para um deles, já que é o herói que quer forçar o outro fazer algo que ele não quer e, dessa forma, conquistá-lo... Mas mesmo essa sugestão não desmerece algo maior e bonito: trata-se, afinal, de uma luta entre irmãos - como afinal eles se reconhecerão após ela (que, aliás, registre-se ainda, é menos de tipo ultracoreografado, estilo Peckinpah ou Tarantino, do que do tipo "luta franca", à la Eastwood em Punhos de aço).

Alguém poderia me dizer que se eu zelasse estritamente por uma coerência teórica e ideológica, deveria aplicar aqui as mesmas questões que apliquei ao filme de Ridley Scott. E teria razão, até porque não faltam - de par com sua afetividade intermasculina transmutada em fraternidade a duras rinhas - elementos misóginos em Eles vivem. E se o retrato das relações de trabalho em Alien é sociologicamente leviano e simbolicamente abstraizante, o romantismo proletário de Eles vivem não é menos simplificador (aliás, com a mesma insistência etnicista, muito embora estatisticamente legitimada: a necessidade de um afrodescendente entre os dois trabalhadores), nem seu tipo particular de "revolução" menos mitologizante (em sentido barthesiano, como diria o Lúcio). Trata-se mesmo, enfim, de um filme trash e algo mal feito - como deve soar muito tosco o corte que faço aqui para encerrar este texto com este argumento miserável: que, apesar de tudo, muito mais que o filme de Scott (e mesmo muita coisa boa que tem surgido por aí, como as recentes obras-primas de David Lynch), o de Carpenter nos dá a convicção de que se eles estão vivos, nós também estamos. Quem quer que sejam "eles", é claro; ou melhor: como se fosse assim tão fácil desatá-los desse(s) "nós".

P.S. - Como esse texto foi feito realmente às pressas, na ânsia de manter a periodicidade do blog e de dar continuidade a outras tarefas, fui obrigado a fazer algumas correções e esclarecimentos posteriores à postagem inicial. Além disso, deve ter ficado a impressão de que eu gosto menos do filme do que gosto realmente. Pelo que me lembro agora, só vi quatro filmes mais de três vezes: aqueles do Simbad que passavam na Sessão da Tarde (eram pelo menos dois, um "melhor" que o outro), que eu vi umas mil vezes; Conan, o Bárbaro, que eu vi umas seis vezes no cinema, mas também ainda na infância (senão biológica, pelo menos moral), e, esses tempos, Elefante, do Gus Van Sant, sobre o qual estou escrevendo um artigo. Além deste, depois de velho, vi três vezes Cidade dos Sonhos, do Lynch, Poderosa Afrodite, do Woody Allen, e O Desprezo, do Godard, mas este, quando tentei assistir pela quarta vez dormi na metade. Eles Vivem eu veria de novo, de boa.

P.S.2 - Também não quis dar a entender que é um defeito do filme ter um Rambo lumpen e barrigudo, apenas um limite na representação da realidade a partir da seleção de certos modelos. Na verdade, esse dado é um dos méritos do filme: um herói simplório mas autêntico, decidido a salvar o mundo não por princípios abstratos, mas pelo sentimento de uma espécie de missão ou destinação biológica, para não escrever simplesmente "instinto". No fim das contas, talvez o argumento desse parágrafo, que aliás já foi retocado mais de uma vez, seja mesmo incoerente com o que eu penso e até com outras coisas do texto. É o que dá escrever com pressa. Fica a lição.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Sacrifícios Humanos e Sociedade Ocidental

A Legitimação da Dominação na Sociedade Ocidental: Lúcifer e a Besta


Toda a história do Ocidente pode-se resumir num lema: a vítima tem a culpa, o vitimador é inocente. O Ocidente é o vitimador do mundo inteiro, um mundo inteiro é sua vítima. Mas, para o Ocidente, o mundo inteiro tem a culpa, ele é um vitimador heróico e inocente.
O sangue que o Ocidente produz não deixa manchas. Derramando esse sangue, têm-se as mãos limpas. A história do Ocidente passa de um genocídio a outro. Colonialismo, racismo, trabalho forçado em todas as suas formas, até por escravidão, aniquilamento de povos e países inteiros, destruição de culturas, extermínios, torturas e desaparecimentos em massa estão onipresentes na história do Ocidente. Todavia, o Ocidente tem as mãos limpas, nenhuma mancha de sangue se vê. Pelo contrário, o Ocidente acusa e denuncia todo o mundo,vigiando pelo respeito aos direitos humanos.

Na recente guerra do Iraque, Hussein sai com as mãos cheias de sangue. Não obstante, o presidente Bush, o general Schwarzkopf e o general Powell, também o primeiro ministro Major e o presidente Mitterand, todos têm as mãos limpas. Não se nota nenhuma mancha de sangue. Provavelmente derramaram mais sangue que o próprio Hussein, mas produziram um sangue que não deixa nenhuma manchas. Estão limpos.
Assisti uma vez na década de 60 no Chile a uma conversa entre alguns atores de teatro sobre o sangue que precisam muitas vezes nas sessões de teatro. Um afirmava ao outro: o melhor sangue é produzido em Hamburgo, na Alemanha. Lava-se só com água e não fica nenhuma mancha.

Todo o sangue que o Ocidente produz é deste tipo. Muitas vezes nem sequer é preciso lavá-lo com água. Simplesmente não se vê.

A história do Ocidente é uma longa sequência de sacrifícios humanos, que parecem ser o contrário do que são. Parecem ser castigos merecidos pelo desrespeito aos direitos humanos da parte de todos os outros. O Ocidente tem uma torre alta, da qual contempla todo o mundo para intervir onde se violam os direitos humanos. Intervém com força, com crueldade infinita, contra todos os que os violam. Nas intervenções que o Ocidente faz desde essa torre, violam-se os direitos humanos como jamais foram violados. Fazem-se guerras que jamais foram feitas; usam-se armas que não se conheciam. O resultado dessas intervenções é sempre, e sem variação, a apropriação das riquezas e dos bens, assim como também da força de trabalho, dos povos invadidos. O Ocidente conquistou o mundo e o está destruindo. No entanto, segundo a imagem que tem de si mesmo, tudo o que fez foi intervir contra os muitos violadores dos direitos humanos no mundo inteiro. A apropriação dos bens destes não passa de recompensa bem merecida por essa obra, a reparação dos danos que estes violadores tinham ocasiondo.

Essa torre de vigia que o Ocidente construiu, e que é mais alta que qualquer torre jamais construída, chega hoje até os céus. Desde essa torre se escuta o grito que faz tremer o mundo: a vítima tem a culpa, o vitimador é inocente.


FRANZ J. HINKELAMMERT, doutor em Economia pela Universidade Livre de Berlim,é nome familiar aos cientistas sociais da América Latina. De 1963 a 1973:professor da Universidade Católica do Chile. De 1973-1976:professor convidado da Universidade Livre de Berlim. De 1978 a 1982:diretor de pós-graduação em Política Econômica da Universidade Autônoma de Honduras. Atualmente coordenador da área de pesquisas do DEI, San José, Costa Rica.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Nem Lixo, Nem Extraordinário

“É bondade sua me explicar, com tanta determinação /
Exatamente o que sinto, como penso e como sou /
Eu realmente não sabia que eu pensava assim.”
(Legião Urbana, “Mais do Mesmo”)

Certa vez, do alto de sua sabedoria de Buda etílico, o grande Tim Maia afirmou que o Brasil é o único país do mundo onde cafetão sente ciúme, prostituta sente prazer e pobre é de Direita. Piada tão sociologicamente correta quanto politicamente incorreta. Paradoxalmente, quase a totalidade de nossa elite intelectual e parte considerável da elite financeira simpatizam com a Esquerda. Essa proximidade ideológica concretizou-se enquanto projeto em 2002, com a eleição de Lula, o que pode ser percebido nas reuniões de bastidores de campanha registradas no ótimo documentário “Entreatos” (2004), de João Moreira Salles.

Ação e reação. Uma vez eleito, Lula passou de aposta partidária para mito vivo e líder carismático weberiano. A mesma massa que não votava em Lula por ele ter sido pobre passou a idolatrá-lo por ele ter sido pobre e se tornado presidente. Daí para o culto a personalidade foi um passo. O filme “Lula, o Filho do Brasil” (2010), de Fábio Barreto, deveria ser o principal subproduto desse culto. Porém, sem ritmo, mal escrito, mal-dirigido e interpretado com insegurança, o melodrama fracassou nas bilheterias. Mesmo assim, apostando no prestígio internacional do operário-presidente, uma comissão do Ministério da Cultura resolveu indicá-lo como candidato nacional a uma vaga entre os finalistas ao Oscar de Filme Estrangeiro. Não deu certo. Se a inexplicável parceria de Lula com o insano presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad lhe tirou o Nobel da Paz, a qualidade duvidosa do filme de Barreto lhe tirou o Oscar. E quase tirou o Brasil do Oscar.

Quase porque a co-produção brasileira / britânica “Lixo Extraordinário”, dirigida pelo trio Lucy Walker, Karen Harley e João Jardim, registrando os dois anos em que o artista plástico carioca Vik Muniz trabalhou com catadores do aterro sanitário do Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro, foi indicado ao Oscar de Melhor Documentário. Acredito que tem chances reais de vencer, já que a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood é mais parecida com a Academia Sueca do que se imagina. Filmes bem intencionados e edificantes são sempre bem-vindos. Além de aliviar o espírito, são bons para os negócios.

O pequeno público brasileiro que assiste documentários cinematográficos também deve adorar. Eles são a nata da nata de nossos cinéfilos. Os mais cultos, os mais sofisticados e donos da maior paciência. Não se importam de assistir longos longas-metragens repletos de longuíssimos planos seqüência de paisagens quase imóveis. A experiência estética, que emula a observação de uma tela, somada ao impacto emocional e o valor da mensagem intelectual impressa nas imagens, é o que importa. Nesse sentido, “Lixo Extraordinário” é um prato cheio, ou melhor, citando Raul Seixas, é um banquete de lixo. O filme é belo, é comovente, é socialmente responsável, é um mosaico de lições de vida. Sim, é tudo isso, mas também é proselitista e condescendente.

Nas últimas décadas houve o crescimento de um subgênero dentro do universo dos documentários: o filme denúncia. Esse tipo de produção procura mostrar as mazelas do mundo, com intenção de denunciá-las e, se possível, ajudar a mudá-las. Pobreza, violência, discriminação, superação de situações limite, recuperação de excluídos sociais etc, são sua matéria-prima. Alguns dos exemplos mais importantes são “Cabra Marcado Para Morrer” (1984), de Eduardo Coutinho, “Ilha das Flores” (1989), de Jorge Furtado, e “Ônibus 174” (2002), de José Padilha.  

Apesar da excelência técnica e das claras boas intenções dos cineastas responsáveis por essas obras, é possível perceber que, em muitos casos, eles transformam-se em disseminadores de estereótipos acerca dos assuntos que pretendem denunciar. Segundo o crítico Jean-Claude Bernardet, professor de cinema da USP, em seu livro “Cineastas e Imagens do Povo”, os documentários que retratam as classes sociais menos favorecidas tendem a salientar um autoritarismo velado de quem filma sob àquele que é filmado. Para Bernardet, esses documentaristas procuram revelar a verdade do “outro”, sem, contudo, mostrar a própria. A complexidade da situação é escamoteada pelo discurso politicamente correto.

Com certo exagero, mas não sem alguma razão, Paulo Francis escreveu que “nenhum filme brasileiro dá certo porque todos os cineastas tentam demagogicamente se colocar na posição dos humildes. É falso, visceralmente. Sempre que vejo algum favelado em filme brasileiro tenho vontade de sair gritando: ‘É um santo! É um santo’”. Infelizmente, Francis não viveu para assistir o genial “Cidade de Deus”, que provou que não precisava ser sempre assim. Mas a exceção representada pela obra-prima de Fernando Meirelles continuou sendo a confirmação da regra.

A despeito das louváveis intenções da equipe de produção em geral e de Vik Muniz em particular, salta aos olhos a artificialidade de suas relações com os catadores de lixo. A edição do filme parece milimetricamente planejada para comover: desde as imagens do lixão, as sub-reptícias mensagens de encorajamento, as crises de consciência, a trilha sonora de Moby e até mesmo as lembranças da infância pobre do artista. A cena na qual a equipe discute paralelamente em inglês e português, sobre o mal que podem estar provocando àquelas pessoas, interferindo em suas vidas, mostrando-lhes um mundo diferente para depois abandoná-las à própria sorte, é sintomática.

Nada disso seria problema se a proposta não fosse ser o mais genuíno possível, se a intenção não fosse mostrar a realidade, a vida como ela é. Não que haja ingenuidade aqui. Do grande teatro nazista de Leni Riefenstahl até as denúncias tragicômicas de Michael Moore está mais do que claro que o gênero documentário não é tanto Cinema Verdade quanto é a Verdade do Cinema, ou do cineasta. “Lixo Extraordinário” pretende ser o primeiro e acaba sendo o segundo. Contava-se, talvez inconscientemente, com a conivência da platéia, uma vez que o filme não se furta em revelar que nem mesmo as fotos tiradas por Muniz, que geraram as obras da série “Imagens do Lixo”, foram flagrantes espontâneos. Algumas imagens foram detalhadamente produzidas em estúdio. A opção por realizar releituras de obras de arte clássicas não foi por acaso. Na prática, Muniz não retratou a realidade dos catadores de lixo, mas a reconstruiu segundo sua visão de artista cosmopolita. Afinal, versões feitas de lixo do “Narciso”, de Caravaggio, e do “Marat”, de David, revelam mais sobre Muniz ou sobre Tião e Zumbi, seus modelos? 

“Lixo Extraordinário” apresenta-se, é vendido e tem sido comprado como um colosso emocional. O desnudar de um artista diante do público em função de seu mergulho visceral no cotidiano de uma comunidade humilde. A realidade por trás da câmera pode bem ser isso mesmo. Faço votos que seja. Deve ter sido uma extraordinária experiência de vida para todos os envolvidos. Contudo, infelizmente, o filme, numa analise desapaixonada, não é. Possui muitos e notáveis méritos, quase todos de natureza técnica, mas a espontaneidade não é um deles. Os personagens parecem desconcertados, intimidados pela câmera, não há o realismo cru presente em “O Prisioneiro da Grade de Ferro” (2003), de Paulo Sacramento. A abordagem dos catadores de lixo é piegas, longe da objetividade jornalística de Eduardo Coutinho em “Boca do Lixo” (2007). Essa tentativa desesperada de excluir qualquer tipo de juízo de valor retirou o impacto da denúncia, diferentemente de “Meninas” (2005), de Sandra Werneck, ou “Falcão – Meninos do Tráfico” (2006), de MV Bill e Celso Athayde. Nem mesmo sua utilização da tradicional estratégia de estetizar a miséria é particularmente interessante, ficando longe da criatividade arrebatadora de “Estamira” (2005), de Marcos Prado.

Em “Lixo Extraordinário” tudo parece pasteurizado: as emoções, as personagens, a paisagem, a denúncia do desperdício burguês, a mensagem pró-reciclagem. Perfeito para o consumo de nossa elite letrada, repleta de responsabilidade social. É saboroso e não engorda. Está longe de ser um lixo, tampouco de ser extraordinário. 

Ademir Luiz

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

A Vida Alheia: e se Adorno tivesse um celular?


Essa postagem busca apenas pontuar algumas questões para os brasileiros que estudam Adorno e a teoria crítica. Siderados pela crítica de Adorno a Stravinski e ao jazz, trocando confidências em alemão, deslumbrados com Schoenberg, eles não têm criticado as novas tecnologias representadas pelos celulares e a internet e os produtos da indústria cultural tais como as telenovelas. A recepção de Adorno tem deixado de lado contribuições de teóricos e pesquisadores tais como José Ramos Tinhorão, Gilberto Vasconcellos e Glauber Rocha. E sem isso, o estudo da indústria cultural tem sido mero jogo aristocrático de elite restrito às universidades.

O celular ou telefone móvel generaliza-se na era do capital também móvel pelo mundo e na voga da razão comunicativa. Embora favoreça a razão comunicativa, o celular provoca um retrocesso nas boas maneiras, assim como favorece o seu uso invasivo ou irracional. Por fim, com a proliferação dos celulares, o diálogo fica praticamente impossível. O diálogo é interrompido pela chamada insistente dessas pequenas sereias do inferno.

Embora a terceira geração do Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt, hoje em dia, escute Bob Dylan após o corte com a razão negativa realizada por Habermas, mesmo Dylan é insuportável uma vez transformado em música de fundo para um celular. E, se antigamente utilizava-se músicas para fundo no celular, cada vez mais o celular é que determina os rumos da canção popular, com as canções de massa reiterando sem cessar: “beijo, me liga”, “amor, por favor, não desligue o telefone”. Não se vende mais um telefone, mas sim a luxuriante troca de mensagens que se pode fazer através do telefone. No entanto, essa troca torna a vida dos próximos insuportável, pois se dá dentro do cinema, no teatro, no trabalho, durante uma palestra, etc. E o pior é que, nesse mundo idílico do sexo verbalizado, irrompeu há alguns anos o telelumpen: o trabalhador degradado pelo liberalismo que cai no submundo do crime e, a partir do presídio, comete crimes através do celular. E os crimes através do telelumpen são justamente a perversão da linguagem do amor telefônico: o bandido afirma que seu filho foi seqüestrado e logo em seguida ouve-se a voz de um outro deles que dramatiza, claramente influenciado pelas telenovelas: “pai, eu te amo”. Se o padrão da Globo é classe média, então a classe média está sendo vítima, através do celular, de crimes inspirados em sua própria estética de classe.

O celular opera, então, com o fetiche: compra-se um celular para possibilitar o sexo verbal. As telenovelas operam com um esquema semelhante. Elas nascem e se apropriam da teorização de esquerda do realismo crítico enquanto intervenção na realidade, tornando-o realismo reacionário. Assim, as “pegadinhas” da TV mostram atores encenando e os passantes têm suas reações à situação, que tomam como real, registradas e exibidas para criar constrangimento; ao mesmo tempo, as telenovelas recriam a realidade através de amplos painéis sociais, reduzindo qualquer conflito de classe a um conflito entre “pobres” e “ricos”.

O principal assunto da novela é o dinheiro, em torno do qual tudo gira. A solução para a desigualdade social e a luta de classes é casar com um homem ou mulher rica. Os defeitos de um homem ou de uma mulher são facilmente compensados pelo acesso à sua conta bancária, na verdade bem mais cobiçada do que sua cama. Na ética prostituta da telenovela, uma aula de violino é desculpa para um encontro sexual extraconjugal. Por trás desse tipo de situação está a disposição estrutural para colocar toda a cultura para render dinheiro, desprezando tudo aquilo que, nela, não servir para esse propósito. Quem não se puder prostituir é “múmia”, no entender desse tipo de programa televisivo. Como diz o grande jornalista Laerte Braga, que deve ser urgentemente estudado pelos teóricos da indústria cultural brasileira, o lema das telenovelas e do BBB é “o bordel em sua casa”.

A apresentação realista e naturalista, assim como todo o esforço mercadológico em torno delas convida a tomarmos a representação enquanto espelho de nossas vidas. A telenovela mobiliza as fantasias das massas, exercendo enorme impacto sobre a vida cultural do País. Aliás, a telenovela praticamente destruiu o cinema e o teatro do Brasil, arrasando, através do mercado, com todas as tradições e linguagens que não a dela. Mesmo as leis de incentivo à cultura do estado subvencionam abertamente produtos com essa estética.

Nos últimos anos, com o surgimento de novas mídias, a telenovela perdeu parte de seu impacto cultural. O seu lucro é baseado na venda não só dos produtos nos comerciais, mas na venda de produtos dentro da ficção: vende-se produtos apresentados durante as cenas quanto nos intervalos comerciais, por isso a televisão dá tanto lucro. Para isso, nessa ficção cada vez mais os objetos ganham uma presença mais viva que os atores. Uma vez num restaurante, ganha enorme destaque o nome do restaurante, suas mesas e cadeiras e a refeição. Aliás, as telenovelas operam de forma gastronômica: tanto as refeições são apresentadas de forma bem atraente de forma a produzir o desejo de comer, como os atores e atrizes ganham também uma apresentação semelhante, mas apelando para fantasias sexuais e masturbatórias. O nome de um galã como Gianechinni torna-se, mais do que um nome, um adjetivo que é sinônimo de “bonito”: “ele não é Gianechinni”. Como quem trabalha em televisão é glamourizado, nasceu ao redor das televisões toda uma indústria de revistas repugnantes que se ocupam, sem nem um escrúpulo, da vida alheia, mas em especial da vida dos famosos, roubando e invadindo, de forma altamente predatória, sua vida privada, infernizando suas vidas com uma punição que resposta ao fato de ter dinheiro e fama numa sociedade como essa. E utilizando o slogan: “a vida alheia é mais interessante do que a sua”, um verdadeiro lema da alienação. Os atores que fazem a novela e todos que aparecem na televisão passam a dispor de um enorme capital simbólico, passam a ser “celebridades”, ou seja, alguém que dispõe de capital simbólico devido à sua visibilidade.

A telenovela, ao entrar em crise, produziu um subproduto diretamente articulado ao celular: o show de realidade, Big Brother Brasil. Nele, telefona-se para eliminar participante. O reality show encena o drama de um “campo de concentração”, um drama nacional. O drama de um Auschwitz onde o cárcere possibilita a lazeira do consumismo e onde se tem de falar alto para que sua voz possa ser captada pelos microfones. O microfone manda na voz do participante e a edição da realidade com a estética da telenovela, as ligações de celular e o veneno de Bial modelam seu destino, sua vida e sua morte dentro do “campo”. Cada cidadão, despido de culpa coletiva, liga para eliminar um “judeu”, ou melhor, um participante, que então vai para a câmara de gás da realidade. Lá fora, o aguarda a sentinela kafkiana e caucasóide chamada Pedro “Bial”, cujo nome é uma variação alemã de “azul”. É o “kapo” Pedro “Blau” que destila o seu azul da Prússia verbal e traz de volta os participantes para a câmara de gás do mundo real. A grande diversão, após a novela, é reencenar um dos grandes acontecimentos de nossa era, torna-se agora um mito exaustivamente explorado pelo cinema norte-americano: Auschwitz. Aos sobreviventes do BBB e de Auschwitz sempre se faz a mesma pergunta: “o que você aprendeu?” Respeitarei muitíssimo mais o deputado federal Jean Wyllys quando ele tiver a coragem de, como uma personagem do filme O Leitor, dizer: “Não aprendi nada, os campos (e o BBB) não eram terapia. Se quiser aprender alguma coisa, não vá aos campos (e não veja o BBB)”.

Após a decadência das novelas, se seguirá a decadência do formato reality show e isso se dará rapidez maior do que se deu com o produto “telenovela”. Será necessária, no futuro, uma campanha para que a sociedade se “destelevise”, assim como os estudos de Foucault produziram a luta antimanicomial. Aliás, os foucauldianos e deleuzianos precisam dizer que a grande lição do Big Brother é que uma grande empresa de televisão é hoje também uma das instituições que buscam o controle total, até mais do que escola, o presídio e o hospício. Faltou a Foucault o insight de que a prisão onde tudo se podia ver, o panóplio holandês, deu nos campos de concentração nazistas e, na atualidade, na prisão de consumo do Big Brother Brasil.

Lúcio Jr.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Anjo Negro

O Anjo Negro desceu
No Reino das Sombras e
Visitou as ruínas do mundo
As belas coisas que viu
Aterrorizaram-no até as lágrimas
Ele recolheu os restos das almas
As mais feridas e deformadas
Apaixonaram seu coração dolorido
Chorou no ventre da menina
Existe algo mais frio do que o
Coração de uma prostituta?
Pobres criaturas sagradas
A catástrofe cintilou
Na aura dos seus olhos
A Cidade de Açúcar
Cheirava a esgoto
O Príncipe Encantado das Trevas
Revelou o horror de nossa beleza.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

Santo Esquadrão da Morte

Os comerciantes que eram simples seres imorais
Tornaram-se,para nossa segurança,assassinos sociais
E nós vamos convivendo muito bem com a podridão
Na condição de vermes desesperados por proteção
Tentamos negar o lamaçal abusando da embriaguez
Mas toda nossa santidade postiça não acaba
Ou redime a nossa brutal sordidez.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Cidade de Açúcar

O cão sarnento
E a loira perfumada
Traem meu olhar
Na cidade imaginária


Os velhos e as crianças
Que não servem mais
Engordam as piranhas
Do Rio Paraguai


Cidade Imaginária
Bigfield Centenária
Índia estuprada
Pelo pau do Capital

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Cidade dos Desejos




"Aqui é um lugar de desamor."
T.S. Eliot

- I -
A realidade do sonho em um mundo onde o imaginário foi colonizado pela indústria cultural do capitalismo é semelhante aos filmes de Hollywood. As pessoas são gentis, sorridentes e ingenuamete belas. Sonho e pesadelo se confundem. O real é idealizado. Existe um poder obscuro que comanda este mundo. São os poderes das trevas. As pessoas vivem narcotizadas. Alguns perdem sua identidade e a reconstroem a partir dos mitos do cinema, pois são sua única referência. Não há desconfiança entre as pessoas, elas se enganam sem o saber, são idealistas-oportunistas. Existem vários níveis de bajulação, cada um desprezando quem está abaixo e chubolando quem se encontra acima de sua classe social. O artista sente-se independente deste jogo macabro, mas não está. Ele é dependente do dinheiro de quem comanda a indústria cultura. A rebeldia do artista se limita a um terrorismo infantil e inócuo que não representa ameaça para o sistema.

Os crimes de acerto de contas entre os bandidos atingem sempre vítimas inocentes. "Vamos, será como no cinema! A gente finge ser outra pessoa". O superego não existe para as pessoas, elas traem-se com a maior tranquilidade e a culpa, se existe, é sempre do outro. "O inferno são os outros". A identidade desintegra-se e não nos reconhecemos, procuramos desesperadamente saber quem somos. É um mundo kafkiano, uma rede de poderes manipulando as pessoas de maneira invisível, enquadrando-as violentamente, às vezes explícita, outras vezes não, se tentam questionar esta lógica. Nesse mundo (não se sabe qual) a identidade sexual também se perde.

Tudo lhe é permitido, menos o essencial. No entanto, mesmo no inautêntico reside um pouco de autenticidade. Na cidade dos desejos nossos sonhos secretos se realizam ,mas como simulacro, uma imitação barata da vida real. Dissimulamos nossa experiência, nosso prazer e nosso sentimento. "Não há banda. Isto é apenas uma gravação." Nos iludimos constantemente. Como afirmava Kafka: nosso mundo tem como princípio básico a mentira universal.

- II -
O filme Cidade dos Sonhos do cineasta estadunidense David Lynch é uma obra ao mesmo tempo linda e triste. É uma síntese de boa parte de sua filmografia. Neste filme perturbador encontramos elementos de Veludo Azul, de Os Últimos Dias de Laura Palmer e A Estrada Perdida. A história nos mostra que só podemos amar plenamente e sermos verdadeiramente felizes nos sonhos. A vida desperta é um pesadelo sem esperança. Neste mundo aqueles que amam intensamente estão condenados à loucura e ao fracasso. Apenas os frios de coração,que não amam ninguém, a não ser a si mesmos, conseguem vencer. O mundo capitalista foi feito para essas pessoas e é nesta selva que eles triunfam. Aqueles que amam profundamente estão em extinção. Esse filme me deixou abalado, passei o dia seguinte possuído por essa história trágica. Foi um dia depois que consegui refletir sobre a lucidez pessimista representada nessa obra de um artista genial. Como tudo que acontece comigo, de maneira retardatária. A mensagem implícita de David Lynch é que nossa existência é um deserto, uma fantasmagoria que revela nosso desespero e solidão, onde não há lugar para compaixão. É um sociedade opressiva que enquadra de forma sutilmente violenta todos que tentem escapar da sua lógica destrutiva. Não há solidariedade entre os seres esmagados por essa estrutura monstruosa, somente nos sonhos encontramos instantes de felicidade real. É um filme radical. Lynch leva ao extremo sua visão pessimista, por isso lúcida, da sociedade estadunidense, sua reificação, perversidade, desumanidade e desolação. Os que amam com paixão e desvario estão condenados a serem coadjuvantes dos mais fortes, os sem-coração, os protagonistas deste teatro macabro em que se transformou o capitalismo tardio. Esse mundo se revela, sob o Véu de Maya, como um corpo em putrefação, uma estrada perdida, um pesadelo do qual não conseguimos despertar e que aguarda ansiosamente pela sua morte. Mais uma coisinha. O espectador, assim como a personagem principal e também todo ser humano oprimido por este sistema iníquo ,é jogado abruptamente do sonho para o pesadelo da vida real, sem nenhum aviso ou proteção. Somos simplesmente lançados na selva da cidade moderna, processo que durou séculos, sem termos tempo de reagir a esta agressão infame que nos é imposta. O ser humano é esmagado pelo peso de uma realidade asfixiante, sem um abrigo para sua alma desamparada. Neste meio alucinado o amor transforma-se também em mais um vício, numa droga poderosa. O exemplo disso é a vida da protagonista, Betty-Diane, que entra em um processo de destrutividade que a leva a encomendar o assassinato de sua amada. Consumida pela culpa, primeiro ela enlouquece e depois se mata. Uma profecia anunciada. Aqui é um lugar de desamor, nos lembra T.S. Eliot, outro grande poeta dos Estados Unidos, mais um crítico radical da modernidade.

- III -
Nesta dança universal da morte nossos sentidos são estimulados até a completa exaustão. Somos programados desde crianças a desejar ansiosamente uma vida de mercadorias que agora precisa ser descartada com a nossa contribuição. Este moinho satânico destrói as vidas a uma velocidade alucinate, conforma nossa condição existencial de meras fantasmagorias que povoam as cidades. Não nos damos conta que estamos caminhando para um novo holocausto planejado para atender as necessidades de lucro do capital. Atingimos o ápice de uma sociedade desumana, com uma lógica irracional que está travestida de um sentido humano e que, no entanto, despe-se de sua ideologia humanista e mostra sua face cadavérica para o horror de alguns e a resignação da maioria. É o drama barroco moderno analisado por Walter Benjamin, que envolve todos nós em uma celebração da destruição e do caos. Deus está morto, tudo é permitido e o coração deste mundo mergulha nas profundezas da noite cósmica. A história não começou, o ser humano não nasceu e estamos encenando um teatro macabro cheio de som e de fúria que nada significa. Veja Almador! A superabundância de coisas que encontramos na cidade. Quantas maravilhas disponíveis para a fruição desinteressada: mulheres bonitas, comidas de todo o mundo, diversões, carros do ano, teatro, cinema, shows, rodeios, festas, bebidas, cocaína, zuka, prostitutas, escolas, universidades, shoppings, igrejas, etc. O tempo é pouco para aproveitar tudo isso na velocidade que o capital exige. Tempo de trabalho e tempo de consumo preenchem toda nossa existência e, no entanto,estamos sempre insatisfeitos e irritados, porque somos induzidos a pensar que merecemos mais, que podemos conseguir mais, sem nos perguntarmos a razão de todo esse frenesi consumista. É um mundo dominado pela forma-mercadoria, no qual servimos apenas de suporte para a valorização do capital, onde o que existe são relações entre coisas e relações coisificadas entre pessoas. Um ótimo antídoto contra essa cultura farisaica é a proposta do romantismo revolucionário que busca reencantar as relações interpessoais, reaproximando as pessoas dos valores místicos, coletivos e solidários. É uma espécie de religião da natureza proposta por Hölderlin e Coleridge, poetas românticos que procuraram negar a reificação capitalista em sua totalidade, tanto na economia quanto na cultura, tateando desesperadamente por uma utopia que iluminasse este tempo sombrio, vislumbrando na natureza um novo tipo de sociabilidade, uma nova consciência que libertasse o ser humano das correntes da cobiça e do individualismo.

sábado, 15 de janeiro de 2011

O estranho intestino


Reassisti ontem, em parte - até onde minha paciência permitiu -, a primeira obra-prima de ficção científica de Ridley Scott, Alien (o oitavo passageiro, segundo o subtítulo brasileiro), anterior em três anos ao mais denso e humano Blade Runner. Mas a impaciência não teve a ver apenas com os méritos do filme, que não são poucos. Ocorre que só depois que o arquivo começou a rodar descobri que se tratava de uma cópia dublada em português, e, além disso, comentada (em inglês) pelo diretor. A meia solução foi reduzir o som ao mínimo, contentando-me em compreender os diálogos por meio das legendas, também em português.

No entanto, essa perda irreparável também me obrigou a um providencial distanciamento bretchiano; e o que esse distanciamento me permitiu perceber com toda a clareza é que Alien é um filme que envelheceu. Sem dúvida, a quase supressão da opressiva trilha sonora, aliada à perda das vozes originais, ajudou a atenuar o suspense e o impacto dramático das cenas iniciais; mas, com isso, o primado das imagens e dos efeitos especiais tornou-se ainda maior, e é fácil perceber que exatamente na dependência deles o filme se torna - justamente a partir de sua intensificação dramática, com a aparição do monstro - quase enfadonho, passados tantos monstros mais sofisticados e tenebrosos que se seguiram ao seu (em boa parte, aliás, estimulados por ele). O que é uma pena, porque, de um ponto de vista imanente ao filme, seus efeitos e sua cenografia são de qualidade ímpar, inclusive superando quaisquer funções meramente técnicas e sensoriais e participando de sua construção propriamente artística.

Vide, por exemplo, a sequência inicial, na qual a câmera percorre o interior a nave com um vagar - dir-se-ia uma atenção - que visa, muito mais do que ostentar a boa aplicação do orçamento, criar uma espécie de familiaridade intestina do espectador com o ambiente. (Não é a primeira vez que uso, com a ambiguidade que usarei aqui, a palavra intestino, e me permito remeter à primeira dessas vezes: http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/034/RAVEL_PAZ.pdf). Penso que essa minha impressão é confirmada pela cena que fecha a sequência, uma tomada com efeitos de luz e uma orquestração maquínica que fazem lembrar uma espécie de gênese, ou, melhor ainda, de desabrochar, pois, plasticamente, a maquinaria em questão lembra mesmo uma flor. Maquinaria esta que abriga os corpos inanimados dos tripulantes da gigantesca Nostromo (nome bastante sugestivo, para quem conhece o livro de Conrad, ainda mais em se tratando de uma nave comercial), e da qual logo vemos um deles - justamente o que será o primeiro hospedeiro do monstro - se erguer parcialmente, desentorpecendo-se aos poucos e com igual lentidão à da câmera, selando uma intenção e um processo sinestésicos que são também significantes.

Pois é evidente que toda a construção significacional do filme se pauta nessa entranhização de corpos estranhos, e que a estranheza desses corpos - sobretudo, é claro, do mais aterrador deles - tem a ver com certa indefinição entre as condições de ser e de coisa. Aliás, a nave, ou o computador que a comanda ou orienta, é chamado de "Mãe" pelos tripulantes. Momento intermediário entre a abertura e a assunção do monstro, a sequência da exploração da nave alienígena da qual ele advirá também cristaliza essa ambiguidade. Vista de fora, essa nave - aparentemente abatida ou abandonada em um planeta semelhante a Saturno - lembra um gigantesco ser caído (os próprios astronautas a definem como indescritível), e por dentro, por vezes, temos a impressão de distinguir o esqueleto de um organismo biológico. Não é o caso, mas no desenrolar da sequência nos depararemos com duas espécies de organismos, e do primeiro deles - o tripulante morto, com características humanas mas muito maior, e que servira de hospedeiro a um monstro - um dos astronautas dirá que "parece que cresceu da cadeira".

A outra espécie de organismo presente na nave são justamente os ovos botados, ao que tudo indica, pelo monstro oriundo das entranhas do tripulante morto (não podemos chamá-lo de alienígena, pois não é impossível que aquele seja seu planeta de origem), e entre os quais o oficial Kane terá a infelicidade de encontrar o "oitavo passageiro" de sua própria nave. Ou melhor, não propriamente ele mas uma espécie de mãe, pai, ou, seja como for, primeiro hospedeiro seu, e que precisará encontrar - aliás, encontrará em Kane - um hospedeiro para abrigá-lo até o amadurecimento de sua forma final: o bichinho hoje já não tão aterrador que vemos surgir lá pelos 50 minutos do filme.

Note-se que essa complexidade procriativa encontra correspondência na complexidade maquínica que não só compõe visualmente a diegese do filme como configura sua espécie de espacialidade viva, com a qual os personagens interagem o tempo todo; como o próprio Alien se afigura muito claramente a uma máquina, com sua cabeça interna retrátil e seu sangue semelhante a "ácido molecular" que chega a corroer a maquinaria da nave.

O que me interessa nisso tudo é sugerir a espécie de lugar de intersecção que o conceito de máquina assume aí. Para ir direto ao ponto, creio que a atenção a esse dado permite uma leitura que desloque um pouco a interpretação usual do Alien como figuração de um Outro extremo ou absoluto, um Inteiramente Outro de assimilação impossível pelos padrões da sociabilidade humana. Sem dúvida que essa leitura é pertinente e valiosa; seus termos exigem, inclusive, a análise das relações - de classe, gênero e etnia - que, antes mesmo do abalo antropológico que o Alien produzirá na Nostromo, já grassam dentro dela.

No entanto, também no que tange à forma como o Alien espelha essas relações é um dado relevante que sua entranhização se produza tão intimamente ligada a esse terreno partilhado que é o das experiências e/ou existências maquínicas. Esse terreno institui uma esfera em si mesma marcada pela estranheza, a reificação etc., mas que, enfim, é também a esfera de uma espécie de solidariedade orgânica, ou maquínico-orgânica.

Nesse sentido, o que se entrevê em Alien é algo semelhante ao germe de uma utopia, de um mundo de pertencimento mútuo entre os seres; um mundo, naturalmente, que se esboça sob o signo do feminino, pois é a imagística (tão biotecnológica quanto arquetípica) das entranhas vivas, por onde perambulam seres vivos, que congrega os seres e as coisas (na própria Nostromo, além da Mãe e da flor-dormitório, vemos por vezes imagens que lembram entranhas).

Mas é claro que essa utopia é, já em sua raiz, corrompida por um espírito infernal que a transforma em ameaça distópica. Isso se cristaliza principalmente na própria figura do Alien, máquina andrógina, unidade monstruosa do masculino com o feminino enformada pelo aparato biomaquínico, com seu falo dentado e assassino que emerge de uma boca-vulva igualmente dentada. Não é à toa que será uma personagem feminina tornada aparato bélico a oponente (e contrapartida) humana do monstro.

Isso tudo reflete contradições básicas do cinema de ação hollywoodiano, mas é preciso analisar essas contradições de um ponto de vista que leve em conta o fundamento das relações sociais, ou seja, o trabalho; e, nesse sentido, a inversão da práxis humana em fetichismo biotecnológico é um dado signfiicativo. O que mais se assemelha ao trabalho produtivo, na Nostromo (em sua condição de nave comercial, quase um símbolo da expansão da sociedade de consumo a níveis interplanetários), se reduz à manutenção ou reparo da nave, ou então ganha uma espécie de caráter mágico, por exemplo nos artefatos criados para deter o monstro quase imediatamente após sua aparição. O resto (inclusive fartas refeições) a Mãe máquina suprirá, com exceção, é claro, da proteção diante do que ameaça destruir seus filhos e suas próprias entranhas. Como se vê, este é mesmo um mundo em que os seres, humanos ou assemelhados, parecem nascer das cadeiras, e não o contrário. A mesma ânsia e fetichista que pesa sobre o feminino pesa sobre o trabalho.

Enfim, corrompido em fetichismo biotecnológico, o cerne potencialmente utópico ou a antevisão panteísta de Alien - a entranhada unidade de seres e coisas - redundam em retorno monstruoso do recalcado, e com tal virulência que sua forma maquínico-intrumental - leia-se belicosa - incide diretamente sobre a própria imagem do feminino (ao mesmo tempo que se afirma, nisso, que não se pode prescindir dele, o feminino, que ao mesmo tempo legitima o aparato, e assim por diante). A face bela e endurecida da tenente Ripley é um contraponto exato ao rosto frágil e humano - o mais humano do filme - de Kane, e entre eles, mediando-os, há o rosto radicalmente desumano (o prolongado close da primeira aparição reafirma isso) do monstro. Ou não tão radicalmente assim?

Sem ser a recusa da condição maquínica, no entanto, o filme de Ridley Scott deixa entrever, nessa própria condição, um germe de esperança de ir além dela. Mas para que essa semente benigna viessa à tona, seria preciso que, um pouco como a baba ácida do Alien, ela furasse as camadas de nossa constituição, práticas e produtos maquínico-instrumentais para trazer à tona uma face, não direi mais humana, mas mais benévola que a do monstro que vive em nossas entranhas.

Em outros termos, seria preciso que Alien fosse um filme que se desconstruísse, ao invés de se reiterar em sequências cada vez mais zelosas de sua engenharia biotecnomonstruosa. E agora, quando Scott anuncia um novo produto fílmico, segundo dizem inicialmente planejado para dar continuidade à saga do monstro, é inevitável a curiosidade, ainda mais diante de seu nome (Prometheus), quanto a saber por quais caminhos ele irá aquém e/ou além do humano.

Citei:

Theodor-W Adorno. "Engagement", em Notas de literatura. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Arquivo e crítica

Não sou capaz, agora, de dizer o quanto de inspiração e de transpiração contribuiu no ato ou processo mental que resultou nesse nome: arquivos críticos. Mas sei perfeitamente que essas duas palavras advêm de regiões distintas, quase opostas - ainda que também muito próximas -, de meu pequeno universo de interesses intelectuais. Mais propriamente, de dois nomes diferentes: respectivamente, os de Jacques Derrida e T.-W. Adorno.

Seria muito, para uma postagem inaugural, tentar uma comparação entre esses filósofos (mas remeto a uma excelente: http://www.apario.com.br/forumdeutsch/revistas/vol9/adornofabio1.pdf); basta, por enquanto, registrar esse dado elementar: o tipo de desconstrução que Derrida faz do conceito de arquivo (no ensaio Mal de arquivo) não é muito diferente do que ele faz do de crítica (por exemplo em Espectros de Marx). Na economia da desconstrução derridiana, portanto, ambos os termos possuem sinal em certa - ou boa - medida negativo. Para Adorno, pelo contrário, o conceito de crítica é fundamental, como atesta, aliás, o projeto de uma Teoria Crítica da sociedade.

No entanto, este não é um blog de filiação estrita ou exclusivamente adorniana. Ele se pretende aberto a um leque de discussões e proposições que não exclui os pontos de vista e postulados da desconstrução; aliás, encontra neles um de seus interesses fundamentais - embora não se confine a eles -, e é justamente isso, e não um espírito meramente polemista, que me leva a tomar emprestado essa palavra, arquivo, do discurso de Derrida. Não se trata, portanto, de acolhê-la reinstaurando a positividade que este lhe recusa, não obstante a evidência do sentido fundamentalmente positivo que ela possui aqui.

Mas esse é um paradoxo em boa medida aparente: não apenas a leitura derridiana do arquivo não resvala para o maniqueísmo - postulando, pelo contrário, um tipo de duplicidade (ou heterogeneidade) de sentido que é constitutiva da desconstrução -, como a crítica adorniana é de espírito declaradamente negativo, ou seja, encontra no próprio seio da negatividade o precário lugar de encontro - não direi conciliação - do pensamento com a vida contraditória.

O que a expressão "arquivos críticos" postula, portanto, é uma aproximação assumidamente dúplice e problemática, mas, espero, prolífica. Ela guarda a esperança de que essa aproximação engendre um tipo de relação na qual tanto essas noções quanto as próprias práticas ligadas a elas tensionem mútua e incessantemente seus limites.

Nisso, evidentemente, o suporte blog é fundamental, pois o arquivo, em um blog, só é morto na medida de seu desinteresse. Mas este não é o único desafio que ele deve assumir, como exigência mesmo de sua pretensão crítica: se o desinteresse pode confiná-lo ao esquecimento, a comunicabilidade a qualquer preço o confinaria à esterildade. É o caso, então, de cultivar uma potência crítica cuja destinação ou pragmática arquivística institua os riscos imprescindíveis para torná-la não autossuficiente, mas, no âmago mesmo de sua precariedade, fiel a si mesma.

O que mais eu pudesse dizer agora soaria desnecessário e redundante. O gesto que deve suceder essas palavras precisa ser mais humilde e, espero, eficaz que o de um blá blá blá filosófico ou pseudoisso: o de convite ao exercício crítico-arquivístico. E que nenhum arquivo jaza morto; que nenhum gesto crítico fique imune a outros crivos críticos.

Citei:

Jacques Derrida. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Relume-Dumará, 2001.

Jacques Derrida. Espectros de Marx: o estado da dívida, o trabalho do luto e a nova Internacional. Relume-Dumará, 1994.