VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

domingo, 7 de agosto de 2011

Gaia: o Sistema Terra e a Aldeia Global


"Nossa terra é nossa alma. É da terra que tiramos nossos costumes, nosso presente, nosso passado, nossa vida." (Provérbio Inuit)

Quando povos europeus de etnia Viking – de origem Norueguesa - chegaram à Groenlândia, na Idade Média, depararam-se com povos aos quais denominaram skraelings, uma expressão do nórdico clássico cuja tradução remonta a palavra "desgraçados". Os povos recém-descobertos pelos europeus eram assim considerados inimigos em potencial, simplesmente por possuírem uma cultura distinta do eurocentrismo medieval. Entretanto, aquele povo panteísta amaldiçoado pelos nórdicos se denominavam Inuits, e sobreviveram há séculos numa das regiões mais inóspitas do planeta, simplesmente porque adequaram seu modo de vida às condições extremas da Groenlândia.

Os Vikings, por outro lado, tentaram fracassadamente adequar à Groenlândia sua cultura eurocêntrica com criação de ovelhas, vacas e construção de templos cristãos, e após cerca de cinco séculos de colonização, foram totalmente dizimados naquela grande ilha fria, vítimas do inverno rigoroso e de tentativas fracassadas de combater os Inuits - os grandes senhores do gelo.

Séculos depois, outros povos de origem Viking, desta vez provindos da Dinamarca, restabeleceram um processo de recolonização da Groenlândia, mas desta vez de forma mais sustentável, tentando não apenas inserir componentes econômicos de origem europeia, como também adequar-se às condições que a ilha poderia naturalmente oferecer. Os dinamarqueses encontraram ruínas medievais típicas de sua etnia na Groenlândia, mas nenhum sinal vivo dos nórdicos medievais do passado. Entretanto, se depararam com os Inuits, que permanecem ainda hoje invictos naquela terra inóspita caçando baleias, focas, e construindo refúgios no gelo em situações extremas.

O provérbio Inuit reflete um importante aspecto referente ao uso da Terra: a sensibilidade de sentir-se parte do Sistema Terra, e não seu senhor, acarretando assim num modo mais sustentável de uso dos recursos, sincronizado não apenas com a sobrevivência humana, como também consciente do que cada localidade possa oferecer. E hoje, os Inuits ainda são encontrados na Groenlândia, convivendo pacificamente com os colonos dinamarqueses.

A lição da Groenlândia talvez remonte à ideia de que somos parte do ambiente, e não seu senhor. E, se de fato quisermos viver de modo sustentável, devemos reconhecer o que de fato somos: parte do ambiente, e não seu soberano. Ao nível das espécies na biosfera ao invés de culturas, tal como prescrito na história anterior, acredito que seja essa a premissa básica da Hipótese Gaia.

A ideia metafórica do planeta visto como um "superorganismo vivo" remonta a vários séculos, com a cultura helenística. A mitologia grega descreve a Deusa Gea, a mãe dos mares e dos doze titãs, como a personificação divina da Terra. Entretanto, uma visão mais centrada no conhecimento teve início com o escocês James Hutton, no século XVIII, autor da teoria uniformitarista e um dos fundadores da Geologia moderna. Hutton ressaltava que as interações bióticas globais deveriam ser estudadas sobre a ótica da fisiologia, considerando assim que a Terra seria um todo interligado, tal como um grande ser vivo.

 
James Lovelock
A fragmentação da ciência no século XIX em visões distintas obscureceu a premissa de Hutton, e foi apenas na década de 70, a partir dos estudos do químico britânico James Lovelock, que esta visão holística foi creditada como uma hipótese científica. A Hipótese Gaia, como foi denominada por Lovelock em analogia à Deusa Gea, postula que todos os ecossistemas estão interligados para formar a biosfera, como um superorganismo que envolve o planeta. Também pode ser enunciada num contexto evolutivo, ressaltando que a vida na Terra, em particular os microorganismos, teriam evoluído em conjunto com o ambiente físico, proporcionando assim condições favoráveis para a origem e o desenvolvimento de seres vivos com maior grau de complexidade.

Assim, a Hipótese Gaia de Lovelock relaciona o ambiente físico e o biológico como entidades fortemente conjugadas, que evoluíram em conjunto. Neste contexto de conjugação complexa, qualquer espécie que afeta adversamente o ambiente tende à extinção. Lovelock fragmentou a Hipótese Gaia em duas distintas versões, sendo a primeira denominada "forte", pois considera a Terra como um verdadeiro superorganismo, onde cada espécie é otimizada para estabilizar o ambiente e beneficiar-se do equilíbrio do ecossistema. A versão "forte" possui um forte caráter de metáfora, e o próprio Lovelock contesta sua deficiência como hipótese científica.

Entretanto, a versão "fraca" postula que algumas espécies podem exercer influência significativa sobre a biosfera, o que tem mais sentido do ponto de vista empírico. Assim, é certo que o fitoplâncton oceânico desempenha um importante papel no clima terrestre, já que o dimetilsulfeto produzido por certas algas oceânicas, ao escapar para a atmosfera, pode ser importante para a formação de nuvens.

Com relação às florestas, a visão holística de Gaia pode justificar não apenas sua manutenção, como também o indispensável estímulo para o reflorestamento de áreas degradadas sempre que possível, pois sabe-se que a cobertura vegetal florestal emana grandes proporções de vapor de água para a atmosfera, contribuindo assim para a formação de nuvens que refletem os raios solares e produzem chuva. Assim, mais florestas implicam condições climáticas mais favoráveis, e o desmatamento, por outro lado, pode implicar em alterações climáticas extremas, que podem ocasionar sérios prejuízos para as populações humanas e seu forte sistema macroeconômico alicerçado em princípios tácitos que concebem os recursos como bens infinitos.

Hoje, somos uma grande aldeia global, muito maior e mais complexa que o povo Viking medieval que orgulhosamente tentou se impor na Groenlândia. Preocupamo-nos com nossos anseios pessoais, e nos esquecemos que somos parte da Terra. Entretanto, atualmente não está em jogo apenas a sobrevivência de uma simples cultura medieval, mas da espécie como um todo. A visão de Gaia sugere que, se quisermos retardar o terrível colapso que está por vir, em conseqüência de séculos de uso insustentável dos recursos do planeta, deveremos começar a pensar como os Inuits, e humildemente enxergarmo-nos como parte do planeta, e não como seu soberano único.

Notas
* O conflito entre Inuits e Vikings na idade média foi recentemente descrito por Diamond, J. (2007). Colapso: como as sociedades escolhem o fracasso ou o sucesso. Rio de Janeiro. Editora Record.
* A estrutura geral da Hipótese Gaia foi sucintamente apresentada por James Lovelock, num dos últimos capítulos do clássico Wilson, E. O. & F. M. Peters (1997). Biodiversidade. Rio de Janeiro. Editora Nova Fronteira.
* Uma das últimas obras de James Lovelock (A vingança de Gaia - que ainda não li totalmente), descreve a visão futura do autor, sobre um provável colapso da espécie humana, devido ao uso indevido dos recursos do planeta. Lovelock comenta sucintamente as premissas básicas deste livro nas páginas amarelas da Revista Veja (ed. de 25-10-06).
* Wilson, E. O. (2002) em O Futuro da Vida. Rio de Janeiro. Editora Campus, descreve as versões fraca e forte da Hipótese Haia.
* O conceito evolutivo da Hipótese Gaia foi sucintamente apresentado por Odum, E. P. (1988). Ecologia. Rio de Janeiro. Editora Guanabara S.A.

 Daniel Blamires
(Doutor em Ciências Ambientais, e professor da Universidade Estadual de Goiás, na Unidade Universitária de Iporá.)

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Dogville e o mundo cão

Eu havia decidido encerrar minha série de "intervenções" sobre o "caso Breivik" com um outro texto, conforme adiantei, aliás, em um comentário à postagem anterior sobre o mesmo assunto. Seria uma tentativa de extrair desse pequeno tumulto discursivo (para encarar a coisa com isenção, ou seja, tentando me desprender um pouco dela) uma reflexão mais geral e, ao mesmo tempo, mais concreta no que tange ao nosso cotidiano. Esse post teria como ponto de partida o convite a pensar a relação entre ética e estética formulado por minha amiga e colega Fabiana Abi Rached (no mesmo lugar recém-citado), fazendo-o, porém, no âmbito de algo que se manifesta não só nas preferências como nas feições de muitas de minhas próprias postagens, ou seja, o espírito e as formas da "cultura pop".

Seria o caso de pensar a articulação (não raro promiscuidade) dessa "cultura" com a barbárie, mais exatamente sua propensão a celebrá-la em gestos festivos que absorvem sua propalada crítica dela. E de constatar, portanto, o conluio de algumas de minhas postagens com essa lógica (confiram, por exemplo, meus "anúncios infernais" no final deste post e vejam se não é verdade). E é claro que não é em pouca medida que se pode desconstruir de forma semelhante a ideia e as ideologias da arte em geral, inclusive em suas formas - e preferências - mais "elevadas". Ou seja, notar que no âmbito da própria "necessidade da arte", para falar com Ernst Fischer, residem as demandas mais tola e/ou insidiosamente escapistas que se explicitam na cultura pop. Tudo isso certamente como um tipo de mea culpa (seria um post bastante difícil, sem dúvida, e eu estou aliviado por resumi-lo assim), mas também como uma constatação de como essa lógica viceja no âmago de nossas "melhores intenções"... Ou seja, do quanto é preciso levar a sério o que a mesma Fabiana me disse: é preciso pensar as responsabilidades de todos de nós.

Ainda pretendo dizer algo sobre isso, inclusive no sentido de argumentar em que o pop - e, claro, a arte em geral -, a meu ver, aponta e contribui com algo para além disso. No entanto, por um acaso que não é, a meu ver, inteiramente fortuito - pois mostra como de fato essas coisas estão todas articuladas -, a questão colocada por minha amiga ganhou, repentina e inesperadamente, uma ilustração dentro do próprio contexto - o "caso Breivik" - em que foi colocada. Trata-se, naturalmente, da descoberta de que Dogville, de Lars von Trier, é um dos filmes preferidos (mais exatamente, o terceiro) de Breivik, seguida da inevitável desconfiança - aliás alimentada pelo próprio cineasta - de que as ações do "terrorista" norueguês tenham se inspirado nele. O próprio Trier viu no massacre da ilha de Utoya uma "semelhança muito desagradável" com seu filme.

Não é a primeira nem, certamente, a última vez que uma obra de arte é acusada de causar esse tipo de "efeito". E, como quase sempre, a acusação não deixa de fazer algum sentido - ou vamos supor que a arte, no máximo, "retrata" a realidade, e de modo algum interfere nela? -, mas apenas numa perspectiva muito limitada, que ignore, antes de mais nada, a complexidade das motivações que determinam um ato atroz como o de Breivik. Este pode ter se identificado com o filme de Trier - ou melhor, sua protagonista -, e até, de fato, usado-o como modelo ou roteiro de seus crimes; mas estes, certamente, tiveram uma gestação muito mais longa.

Aumentando a polêmica, o líder do partido de utradireita acusado por Trier de ser co-responsável pelos massacres de Breivik relembrou declarações recentes do diretor em defesa (ou algo assim) de Adolf Hitler: "não é o que chamaríamos um bom homem, mas simpatizo um pouco com ele". De minha parte, por mais que essa declaração me desagrade, veja nela o mesmo estilo bombástico que Trier exercita "artisticamente", e também a recusa a todo e qualquer maniqueísmo - no caso, o que faz de Hitler o símbolo de um Mal Absoluto, ou seja, um Mal como que indeterminado - que nem sempre a crítica percebe em seus filmes.

O fato é que se Breivik se identificou com Dogville, certamente o fez de forma errada, ou melhor, espuriamente parcial. A evidência - marcada de forma extrema no episódio da morte das crianças em "troca" da quebra dos bonequinhos - do quanto Grace se torna pior que seus algozes é muito grande para atribuir a seus gestos qualquer sentido de justiça. Quase desde o início, aliás, Grace piora - e muito - as coisas em Dogville, enquanto seu pietismo - na verdade a tola autocomplacência com seu "missionismo" - a cega para a enorme confusão, social e libidinal, causada por sua presença e sujeição física.

No meu entendimento, o filme de Trier versa sobre a miséria da complacência populista, salvacionista e supostamente desinteressada de certa "concepção democrática" de mundo (assumida por sabe-se bem que nação), com sua visão deturpada, reducionista e infantilizada do outro, pronta a tornar-se o contrário, ou seja, visão infernal, demonizadora, tão logo - não tão logo assim, no caso de uma Grace como que caída do céu - a face contraditória desse outro se revele. Um índice do caráter hiperbólico que Trier atribui à desumanização dos habitantes da cidade emerge ao fim ou mesmo "depois" do filme, quando, durante ou após os créditos finais, são projetadas fotografias de pessoas que percebemos serem algo como "equivalentes reais" dos personagens que vimos em ação, e cujos sorrisos, olhares melancólicos etc. lembram o quanto de profundamente humano reside, apesar de tudo, no seio da realidade.

Não quero dizer, com isso, que Dogville seja um filme imune a críticas, inclusive no que diz respeito a suas implicações éticas. O próprio Trier falou sobre seu caráter "pedagógico" em sentido contrário às ações de Breivik; no entanto, eu mesmo tive a experiência de ver o final do filme - ou seja, a vingança de Grace - aplaudido por uma turma de alunos universitários, o que me obrigou a uma espécie de ritualística ou terapia de choque no sentido de inverter e expor o absurdo dessa recepção desumanizadora e, aliás, desumana (além de desistir de usá-lo, justamente, como ferramenta pedagógica). E encontrei críticas na internet, algumas não propriamente desinteligentes, abonando essa recepção. Ou seja, se a intenção de Trier era pedagógica - e não estou entrando, aqui, no mérito relativo a uma tal concepção de arte -, algo não deu certo em seu filme.

Talvez porque sob a superfície - a meu ver explícita - dessa intenção residam, mesmo, elementos ambíguos e eticamente duvidosos - mais, pelo menos, do que eu costumava admitir -, e a idealização do mafioso em carrasco sensível (que quer matar a filha mas depois lhe pede para poupar seus algozes, o que talvez também signifique salvá-la espiritualmente) talvez seja um índice disso. A própria declaração de Trier, aliás, salientando as coincidências entre o filme e o massacre na ilha me parece estranha; algo como a atitude um sujeito brilhante e confuso, indeciso entre o empenho de tornar-se um artista verdadeiramente sério e ser, mais que tudo, um polemista-propagandista de si mesmo - algo de que, naturalmente, a declaração sobre Hitler é uma manifestação bem mais direta e infeliz.

Mas eu posso estar sendo injusto. A preocupação de Trier pode ser sincera, em se tratando, aliás, de um artista que cujo primeiro grande êxito (Os idiotas) manifesta uma inequívoca força autodesconstrutora. E quem sou eu para censurar mea culpa e autopublicidades (promovo minhas postagens e outras deste blog o tempo inteiro) alheias?

De qualquer forma, não é o caso de pleitear de uma caça às bruxas. A vigilância crítica é necessária, mas ela só pode ter um sentido benéfico se assumida voluntariamente como uma demanda interior e construtiva - ou seja, se subordinada a uma demanda de fidelidade ao melhor de si. Os méritos de Dogville - um filme que admiro e aprecio, mas no qual vejo certa distância entre a qualidade (sobretudo textual, e se trata de um filme muito textual) e a intenção artística - têm relação, a meu ver, justamente com sua coragem e radicalidade no trato com as contradições da realidade, algo que a arte séria não pode senão almejar em nosso tempo. Ainda assim, as contradições talvez inevitáveis que emergem de seu choque com a realidade (e de seus próprios e vários "níveis de realidade") obriga a recolocar a questão que colocamos no início: não haverá, mesmo no âmago da arte mais séria e "profunda" que se produz hoje - inclua-se aí ou não a produção de Trier, o que é uma questão em aberto -, algo ainda aquém da responsabilidade exigida por nosso tempo?

Enfim, que Trier continue a fazer seus filmes, e que estes façam cada vez mais justiça a sua inteligência e sensibilidade. É tudo o que podemos desejar (na impossibilidade de lhe dizer isso :)). Vejam aí um dos benefícios da arte: o de sorrir. Essa necessidade, de novo com Fischer. Aliás, queria ter ilustrado este post com uma das imagens de rostos sorrindo no final de Dogville, mas não a encontrei pelo google. Trier, por sinal, tem uma comédia, que não vi. Enfim, que não lhe falte Amor e Humor. Sobre isto, aliás, é meu próximo post; se os dias estiverem - aparentemente, como sempre - mais ou menos amenos.

Sim, sempre aparentemente. Pois não custa lembrar isso que alguém, assinando como Márcio, postou outro dia nos comentários do yahoo após uma notícia sobre os acontecimentos na Noruega: que fatos tão ou mais atrozes ocorrem em países africanos todos os dias e mal tomamos conhecimento deles. É verdade: a África (ou as Áfricas, inclusive as nossas) não existe para nós. Por que será?

Nota importante: não pretendo sugerir, com a foto que me permiti usar neste post, que a humanidade de Hitler transpareça em seu conhecido afeto pelos cães. Mesmo porque é mais fácil, muitas vezes, nutrir afeto e piedade por seres ditos irracionais, ou, em todo caso, que não têm a complexidade e as contradições da alma humana, do que pelos homens que sofrem. E não custa lembrar que o treinamento dos oficiais nazistas - Tom Zé, citando Riana Eisler, informa isso no encarte de um disco seu - incluía abater animais domésticos, aos quais eles haviam se apegado, sem demonstrar emoções. Pensar Hitler como um ser dolorosa e  contraditoriamente humano não pode sugerir o apagamento do quão impensavelmente longe se foi aí - em seus atos - na detratação de qualquer sentido positivo que se pode atribuir a esse mesmo adjetivo: "humano".

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Mais do mesmo, sempre?

Dessa vez me eximo de dizer qualquer coisa; confiram vocês mesmos (link quebrado; confira a charge abaixo) o quanto o "evento Breivik" trouxe à tona a boçalidade dos "formadores de opinião" nacionais. Com um detalhe: o mesmo "humorista" produziu, à época do massacre de Realengo, uma charge não menos cretina, mas com sentido bem diferente no que se refere ao assassino (idem). Há algo de mais pernicioso nesses "artefatos culturais" do que, por exemplo, o que fazia o Casseta e planeta; sua pretensão a humor nem de longe escrachado, mas, pelo contrário, "refinado".

De novo cito Renato Russo no título de um post sobre o mesmo assunto. Isso não tem nenhum sentido esteticista ou o que seja; simplesmente, mais uma vez foi um verso dele que me ocorreu ao pensar no que dizer. Mas quero registrar a seriedade - e preocupação - máxima dessas palavras. É o que me faz decidir, novamente, a não ilustrar o post.

E quero esclarecer algo importante sobre esses dois últimos posts. A atrocidade cometida por Breivik é um fato irredutível em seu horror. Mas o que tem me assustado particularmente é o tipo de celebração implícita, e não de todo inconsciente, que se tem feito dele.

Aliás, esses dias o noticiário voltou a se ocupar de um fato atroz, felizmente não de consequências fatais: uma agressão absurda de um jogador de futebol por outro. Quando é que nossos "analistas" se perguntarão sobre a conexão profunda desses atos, ao invés de apartá-los em gestos que reiteram outras formas de violência simbólica, como o racismo bem mais do que implícito na charge de Alpino?

Acréscimo após a postagem: vejam, aliás, o "Top 10" recém-publicado pelo mesmo yahoo:
http://br.esportes.yahoo.com/blogs/redacao/top-10-faltas-mais-violentas-da-hist%C3%B3ria-futebol-151618199.html

Acrécimo em 28/07: Comparem as duas charges: numa Alpino usa a foto de Breivik, na outra faz uma caricatura grotesca de Wellington. Nesta, é explícito que o ponto de vista dos espectadores é o mesmo do caricaturista, ou seja, Wellington é chamado de idiota (como deve ter sido na vida real). Na outra, não é tão explícito que esse papel caiba às leitoras: pode-se entender que também elas são "criticadas"; a meu ver, porém, aqui o conluio é completo: Alpino, suas leitoras e seu Breivik "fecham" na ridicularização de alguém que só figura no título da charge: Osama Bin Laden, o terrorista "feio". O racismo, lembre-se, foi uma das motivações de Breivik.

Acréscimo em 10/01/2012: Descobri que os links para as charges de Alpino estão quebrados, então me vejo obrigado a publicá-las aqui. Como só as obtive em formato reduzido, transcrevo as falas dos balões:

"Melhorou e muito..."

"A maioria das pessoas acham que sou um idiota..."
"Isso foi antes... Agora todo mundo tem certeza...

Já sonhei em ser cartunista, e não posso deixar de admirar o traço de Alpino. Essas charges, no entanto, me fazem duvidar de sua inteligência - cronística, "humorística" ou o que quer que seja.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Sim, a ignorância é vizinha da maldade

Um exemplo do que eu disse no penúltimo parágrafo (ou primeiro acréscimo) do post anterior:

"A mistura de raças em países como o Brasil resultou em “altos níveis de corrupção, baixa produtividade e conflitos entre as diferentes culturas” para Anders Behring Breivik, o norueguês que assumiu a autoria dos atentados em Oslo. A observação está presente no manifesto “A European Declaration of Independence – 2083” (Uma declaração de Independência Europeia - 2083) – atribuído a Breivik e divulgado na internet horas antes do massacre na Noruega."

O título dessa matéria do yahoo (leia aqui), que certamente suscitará tantas discordâncias quanto concordâncias dos leitores, é "Para atirador da Noruega, mistura de raças do Brasil é 'catastrófica'", e a ela não se segue nenhuma avaliação crítica. Ilustrando-a, vemos o "atirador" fazendo mira com uma arma de alto poder de destruição sob um fundo branco, fundindo-se portanto ao fundo da matéria, num conluio mais do que sintomático.  A "reportagem" ainda contém expressões francamente elogiosas ao "manifesto", como "a declaração" e "cheio de referências históricas", e se permite até transcrever um "conselho" de Breivik: "Seja extremamente cuidadoso quando lidar com material radiológico". Quanto zelo, diria um incauto chegado na Terra neste instante.

Esse tratamento no mínimo displicente - e no limite conivente, para não dizer bajulatório - diante de gestos e ideias atrozes deveria envergonhar qualquer jornalismo, mesmo o mais apressado ou marrom. Ele torna o título do meu post anterior mais sério e menos pessoal do que eu imaginava quando o escrevi.

Eu pensei em corrigir Renato Russo, que cito no título deste: a ignorância é vizinha do fascismo. Mas que isto fique registrado assim, em letras menores, seja porque nada disso é para trocadilhos de qualquer espécie, seja porque alardear a estupidez que viceja nos atos humanos não é a melhor forma de combatê-la. Permitam-me, no entanto, insistir nessa triste verdade: o fascismo anda à solta. Resguardemo-nos dele, em nossos atos, palavras e sentimentos.

Acréscimo em 26/07: Alguém popderia me perguntar como fica o "caso Juan" nisso tudo. Eu responderia com outra pergunta, mais uma vez citando Renato Russo: "Qual é a diferença?" A falta de um "programa"? O número de vítimas (mas também de executores) da covardia extrema? A diferença, no caso, é que esse tipo de "ação" se tornou comum demais e eu me esqueci dela. Aliás, o verso que antecede aquela interrogação (numa canção sobre o fascínio da violência) é "Nós assistimos televisão também". Há muito tempo isso tudo já foi longe demais, e não se desenha nenhum horizonte concreto para além disso.

Quero acrecentar outra coisa: no outro post eu me referi a "motivações racialistas" para explicar a complacência da mídia com as "ideias"de Breivik, mas é claro que há outras elementos envolvidos, inclusive nosso conhecido complexo de infeioridade frente aos "países desenvolvidos". Há um post neste blog, sobre outra questão, mas que toca diretamente nesse assunto.

domingo, 24 de julho de 2011

Algo de "inteligente" a dizer sobre isso?


Duas tragédias - muito diferentes em comoção e, sobretudo, proporções, sem que haja uma relação direta entre esses termos - têm ocupado o noticiário desses dias: a morte de Amy Winehouse e o massacre que vitimou, até agora, pelo menos 93 pessoas, em sua grande maioria jovens e adolescentes, na Noruega. O perfil deste blog praticamente me obriga a pelo menos registrar - "arquivar" soa mais inadequado do que nunca - esses tristes eventos.

Como disse, são eventos muito desproporcionais, e há algo de uma coincidência sinistra em sua proximidade, inclusive pelo fato de que é bem possível que tenha sido a morte da cantora britânica o que suscitou mais lágrimas e homenagens ao redor do mundo. Mas qualquer comentário para além disso é abusivo e pernicioso. Amy Winehouse foi uma artista notável, e sua perda precoce - com a mesma idade, como se sabe, de outros músicos igualmente talentosos - é digna, sim, da comoção que despertou. Mais do que isso, é digna da revolta por sabermos que este é mais um caso a atestar essa verdade que Renato Russo sintetizou em um belo e doloroso verso: "E há tempos são os jovens que adoecem".

Mas que dizer do que houve na Noruega? Que dizer do que fez Anders Behring Breivik? Que palavras minimamente inteligentes podem ser ditas diante disso? Tudo o que a análise psicossociológica mais completa possa dizer a respeito é fútil e redundante diante disso que podemos até não dizer com todas as letras, mas sabemos muito bem: que isso é "só" mais um sintoma de um estado de corrosão extrema, da falência estrutural e espiritual desse nosso belo projeto de "civilização".

Não quero com isso minimizar a singularidade do acontecido, tão cheio, aliás, de tragédias individuais. Embora - e é triste constatar e admitir isso - a distância geográfica, as diferenças culturais etc., ou seja, tudo o que torna a realidade dos países nórdicos uma realidade "outra" para um brasileiro, sem dúvida diminua o impacto dessas notíciais em mim. Do contrário, eu talvez adotasse simplesmente - e novamente - aquela sábia divisa, dizem que chinesa, segundo a qual o silêncio sim, é o verdadeiro ouro. Pois é inevitável a sensação de que usar o que houve para "reclamar do sistema" contém algo de leviano.

Mas muito mais leviano não é o que faz "o sistema"? Sim, o Monstro Sist, o sistema de destruição programática da vida. E, já que citei Raul Seixas, e embora talvez não devesse escrever isso num autonomeado espaço crítico, o sentimento mais forte - não direi mais profundo, porque espero que não seja - que me advêm diante disso se traduz naqueles versos em que ele e/ou Paulo Coelho amealham visões proféticas do Apocalipse a Eliot, e as sintetizam num refrão que diz, simplesmente: "Está em qualquer profecia que tudo se acaba um dia". Lembrar - saber - disso, às vezes, é a única coisa que consola de "ver o noticiário" nesses dias.

Nota em 25/07: Se é o caso de dizer algo mais "específico" a respeito dos "atentados" na Noruega, não basta, a meu ver, obervar como eles atestam a ressurgência do espírito nazista (não sendo uma completa surpresa que isso se dê num país nórdico - vide o que os filmes de Bergman testemunham a respeito), ou reforçam, pelo "antiislamismo" de Breivik, a complexidade da situação instaurada pelas ditas "invasões bárbaras". O dado mais surpreendente nisso tudo, a meu ver, é a deferência com que a mídia tem se referido às "ideias" de um fanático tão inconsequente e incoerente quanto qualquer outro (aliás, "qualquer outro" é uma generalização absurda). Eu também acharia louvável a forma como a mesma mídia tem se referido a ele - "o suspeito", e não, por exemplo, "o assassino" ou "o maníaco" -, não fosse o caráter de absoluta exceção desse tratamento, de motivações racialistas evidentes.

Na mesma data: Também quero acrescentar algo - necessariamente mais leve - a respeito de Amy Winehouse. A primeira vez que a vi - e ouvi - foi numa gravação de um show, num dvd que um amigo e ex-aluno, José Fernando, me apresentou. Pelo descompasso entre a figura - já entào algo deteriorada - e a voz, perfeita, e vigorosíssima, cheguei a pensar que se tratasse de um playback, e tive que ser convencido do contrário. Enfim, desde então tenho essa impressão: de que a voz de Amy Winehouse é uma "entidade" como que independente de seu corpo.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Sobre a atualidade do tema "tabus acerca do magistério", ou o 'bullying' em questão


Para as minhas aulas nos cursos de licenciatura, tenho certo apreço pelo texto de Adorno chamado "Tabus acerca do magistério", que, insistentemente, venho utilizando como ponto de partida (juntamente com os textos "Educação após Auschwitz" e "Educação contra a barbárie") para reflexões em sala de aula. Nesse texto, Adorno aponta questões cruciais encontradas nos fatores objetivos e, principalmente, subjetivos envolvidos na profissão do magistério, nas relações entre professores e alunos e na estrutura escolar de ensino, perpassando por temas tabus relacionados à profissão docente - ainda bastante vigentes hoje, tendo em vista os preconceitos referentes ao magistério -, e à violência inerente às relações institucionais escolares, sendo essa o reflexo de uma sociedade extremamente desigual com tendências à barbárie. No último semestre, tendo em vista trabalhar (e criticar) o tema "bullying", bastante explorado pelo mass media, resolvi passar o filme "If...", de Lindsay Anderson, premiado em 1969, juntamente com o texto de Adorno.

O filme, que trata da rebeldia de estudantes numa instituição de ensino inglesa tradicional, é considerado obra cinematográfica de referência para o tema "revolução cultural" e rebelião juvenil na década de 60. Não obstante ser uma obra inesquecível do cinema britânico (destaco algumas cenas "surrealistas" permeada de simbolismos e de tiradas poéticas), e apresentar um sistema rígido de ensino (contrastante com as reformas pedagógicas atuais do século XXI, úteis às políticas neoliberais, tais como o lema "aprender a aprender", entre outros), para meus intuitos, o filme também ilustra as hierarquias oficial e não-oficial existentes nas escolas e que seguem ainda existindo hoje no âmbito escolar, discutidas por Adorno no texto, e que acabam por constituir as relações de poder, contribuindo para a aversão de crianças e jovens contra a educação escolar e o corpo docente que a constitui: aquela hierarquia que diz respeito a uma espécie de aluno que se destaca por seu bom comportamento e bom desempenho de notas que, prestigiado como "aluno exemplar", enquadra-se bem nos moldes de uma sociedade extremamente individualista e competitiva; e aquela - a hierarquia não-oficial - que aponta para aqueles tipos de sujeitos que se destacam pela força física. Esses últimos, no entendimento de Adorno apresentados como os "ressentidos" - pois excluídos de uma formação cultural e intelectual e que desenvolvem certa aversão aos homens de estudo e ao "espírito" -, são os possíveis tipos sociais afinados com as personalidades dos algozes e carrascos, necessários às políticas totalitárias. Inclusive, nas palavras de Adorno, o nazismo explorou essa dupla hierarquia muito presente, inclusive, fora das escolas, assim incitando o repúdio e o desprezo das massas pelo trabalho intelectual, ao mesmo tempo, propiciando um clima social para a constituição de sujeitos bem adaptados e eficientes, sempre prontos para cumprir as ordens - o caráter manipulador descrito por Adorno na pesquisa "A Personalidade Autoritária", obra também citada nos ensaios de Adorno sobre educação.

Como Adorno mesmo afirmou: "A pesquisa pedagógica deveria dedicar especial atenção à hierarquia latente na escola". E dessa afirmação, destaco a sua pertinência e relevância para elucidar o problema do bullying, ou seja, a pesquisa psicológica e sociológica atuais deveriam se voltar para aquilo que Adorno há muito tempo já havia indicado nas suas "especulações pedagógicas": a de que a chave para a desbarbarização de pessoas reside na transformação decisiva da sociedade e em sua relação com a escola. O nosso processo educacional e civilizatório, que é delegado aos professores e mestres, orienta-se para o nivelamento no sentido de que as idiossincrasias e as "naturezas disformes" devam ser eliminadas nos alunos. Não obstante, tal tipo de educação pela "dureza" e pautada exclusivamente na adaptação do sujeito torna legítima as perseguições contra os colegas que apresentam tais "traços disformes" (aqueles destoantes do modelo de pessoa bem adaptada), ou algum tipo de fragilidade. A escola é também local de violência e punição quando deveria ser um ambiente que pudesse formar pessoas resistentes a qualquer tipo ou traço de violência. Somado a isso tudo, cada vez mais as pessoas (pseudo) formadas no seio das sociedades tecnológicas e da indústria cultural têm se tornado avessas ao conhecimento teórico e a determinados assuntos do "espírito".

Para o assunto "bullying" e "violência na escola" - diferentemente das abordagens de especialistas sobre o tema que prestam serviço à publicidade sensacionalista - deve ser questionado: o que há por trás do excesso de informações e de exploração sobre o "fenômeno bullying" encontrado no mass media? Por que hoje virou moda falar sobre o assunto? Estamos presenciando maior violência e abusos por parte de jovens e crianças hoje, do que antigamente? O que o termo técnico "bullying" visa ocultar? Ora, humilhações e demais brincadeiras de mau gosto, ou extremamente violentas, sempre ocorreram em instituições educacionais entre crianças, e/ou professores e alunos, presenciadas nos ritos de iniciação entre jovens em formação e nos abusos cometidos em sala de aula. Mas tal tipo de relação regredida não deveria jamais ser "naturalizada", ou reduzida aos problemas de personalidade dos sujeitos envolvidos, como é muito comum hoje escutarmos nas análises de especialistas voltados ao tema (por exemplo, existem estudos que apontam tanto a personalidade do aluno que comete violência e abusos contra colegas, quanto as características de quem se torna vítima de bullying. Em que pese a objetividade desses estudos, a questão é a de que aspectos psicológicos envolvidos na violência escolar não são suficientes para tratar do problema). O termo bullying utilizado e disseminado pelos experts torna-se mais um "produto cultural" a ser consumido pelos agentes educacionais, que acaba impedindo a conscientização e a reflexão mais crítica por parte dos mesmos sobre o legado de representações e práticas violentas que a escola carrega consigo, tendo em vista a nossa cultura prenhe de manifestações bárbaras.

Sobre a necessidade da força física para a dominação social, ainda muito presente nas sociedades liberais e democráticas, Adorno apresenta no texto "Tabus..." a existência da tradição de punições e de castigos físicos que fazem parte da história das instituições educacionais, o que contribuiu para a imagem do professor como "carrasco" e como "tirano" (o arcaísmo presente na profissão de ensinar). Mas o que é importante destacar é que os resquícios de punições ainda imperam na memória escolar, ao lado do exercício da força bruta e das humilhações psicológicas - essas, agora, mais presentes no quadro de relações estabelecidas nas escolas entre mestres e alunos -, indicando que nossa cultura é pautada na violência, e que nossas leis e relações sociais vigoram pela ameaça. Na literatura, é importante citar o livro O Jovem Törless (aqui comentado pelo mentor deste blog, meu amigo Ravel), bem como a obra Professor Unrat, de Heinrich Mann, comentada por Adorno no texto que, apesar de obras distintas e as especificidades de cada uma, retratam o tema do "clima pedagógico" perpetuador de relações autoritárias e regressivas entre os sujeitos: a manifestação do preconceito delirante, a opressão, a tortura e o genocídio.

Caberia, então, pensarmos o que ocorre nas nossas escolas hoje que, dolorosamente, crianças, jovens e professores têm experimentado. Alguns fatores podem ser levantados: as relações afetivas permeadas de ambivalência entre professores e crianças são sufocadas, bem como a dissolução de "autoridades esclarecidas", no sentido adorniano; os tabus contra o magistério (representações inconscientes) ainda vigoram e não são trabalhados ou ditos explicitamente nas relações entre os escolares; e mais outros elementos graves, tais como o preconceito de classe, etnia, entre outros, sabemos que se encontram bem presentes nas escolas, principalmente em se tratando de jovens e crianças pobres (aqui não citamos o repúdio que as autoridades brasileiras têm pela educação infantil e fundamental que, é claro, se reflete no interior das escolas, contribuindo para tais relações doentias). Nesse ambiente no qual o medo e a angústia não são trabalhados - lembrando que tais sentimentos estão à altura daquilo que a nossa realidade social nos exige -, seus efeitos deletérios só podem de fato se manifestar, nas piores formas possíveis: nos massacres e nas diversas formas de violência.

domingo, 17 de julho de 2011

Da vida, da morte: contradições envoltas no tema


Há um texto muito instigante de Herbert Marcuse intitulado "A ideologia da morte", publicado na década de 60, que me ocasionou algumas reflexões importantes, à revelia da cultura contemporânea que gera pessoas avessas ao tema (à morte e à questão da mortalidade), cujo assunto tem sido transformado em tabu, apesar de todas as contradições objetivas envolvidas no tema em questão. Na mesma discussão desenvolvida nos últimos capítulos de "Eros e Civilização" sobre a morte, Marcuse retoma o tema sobre a possibilidade de numa sociedade livre e mais justa, o conteúdo e a qualidade da morte humana individual serem modificadas, até chegar ao ponto do homem poder escolher a sua própria forma de morrer estabelecendo uma forma diferençada de se relacionar com a morte. Nesse texto, Marcuse apresenta uma abordagem histórico-filosófica da morte no ocidente - desde a condenação de Sócrates -, passando pelo cristianismo, apontando a questão biológica da morte, até chegar ao conceito freudiano de "pulsão de morte". Das idéias que ora consolidam a morte como algo "metafísico e transcendente", e/ou que ora confirmam a morte como "natureza" - destino pelo qual o homem deve necessariamente se curvar -, o autor então confronta tais idéias de morte(ou ideologias introjetadas pelo homem verificadas, inclusive, na modernidade)com as questões políticas e econômicas de acontecimentos históricos do século XX.

Com o enfraquecimento e a neutralização da religião, ao lado de uma tendência cada vez mais forte de empobrecimento e de mercantilização de bens simbólicos e culturais, a atitude do homem diante da morte é a mais conformista possível e com teor altamente punitivo, associada à introjeção do sacrifício individual - para atender interesses econômicos -, na qual a idéia de morrer é vista como via de "libertação" de uma vida sofrida, pautada no sacrifício, ao mesmo tempo em que o medo da morte - essa, vista como vergonhosa e ameaçadora - tem se tornado cada vez mais exagerado. E tal situação paradoxal chega ao máximo quando se verifica a naturalização de mortes de vidas consideradas "descartáveis" - os pobres, os miseráveis, os considerados bandidos e toda uma população alvo de ataques de guerras -, cuja justificativa se dá pelos critérios estabelecidos pela racionalidade econômica e instrumental dominantes. Tal situação agravante pode ser traduzida nos seguintes termos: as pessoas "mantidas vivas" pelo sistema são aquelas ativamente envolvidas na vida produtiva econômica, enquanto uma massa de pessoas que reivindicam sua sobrevivência tem gerado aborrecimentos. Mas o ponto crucial do texto é quando Marcuse levanta a idéia da morte, considerada "natural", na realidade, ter se tornado "segunda natureza" na nossa cultura beligerante, posto ser objeto de manipulação psíquica de grupos poderosos que instilam nas pessoas a idéia de que a morte tem sua característica de "fatalidade" e de "destino". Quando uma mãe perde um filho na guerra, ou quando um acidente nuclear acontece provocando o morticínio generalizado, as pessoas se curvam e dizem "sim, é preciso que alguns morram para que o equilíbrio geopolítico e econômico se restabeleça", bem ao gosto de uma sociedade que recusa dar sentido e significado a uma vida desejável! "Auschuwitz é mais do que uma alegoria na nossa cultura", como afirmou Adorno, pois presenciamos novas formas de campos de concentração.

Mas sobre a tese de que a "ideologia da morte" pode ser superada, levantada por Marcuse, caso as condições objetivas sejam transformadas, o autor também levanta a questão da necessidade de meios tecnológicos para tal. De fato, já alcançamos esses meios pelos quais verificamos o aumento de expectativa de vida das pessoas. Mas como o autor mesmo discute, nesse excesso de bens de consumo e de capitalização mundial, a vida prolongada sob condições cada vez mais injustas de existência não é mais tão desejável. O acesso e o "direito" ao prolongamento da vida é para poucos e, mesmo assim, dentro de condições na qual a desejável "imortalidade" não tem sido tão prazerosa e digna de ser vivida. Se, por um lado, o prolongamento da vida gera um comportamento que acusa a morte e o envelhecer como algo humilhante e vergonhoso - ao mesmo tempo em que a morte continua ainda sendo uma promessa de "liberdade", já que ainda não alcançamos uma vida terrena e material tão justa e prazerosa assim -, por outro, o "assassinato" de anônimos e de outros que não fazem parte dos grupos "eleitos para a imortalidade" é exibido nos meios de comunicação de massa de forma espetacular.

Ora, tristes conclusões podemos retirar desse quadro também apontado por Marcuse, cujas idéias têm implicações muito mais sérias do que imaginamos. O homem que tende a fugir da morte por horror a ela, negando a questão da mortalidade, assim criando subterfúgios para se desviar do "destino" biológico - determinado e mediado socialmente -, acaba por perder sua "humanidade", já que, como Borges (citado por Bauman ) escreveu no conto "O Imortal", a morte derrotada também derrotaria o homem ( o sentido de todas suas proezas, lamúrias, etc); Mas o desejo de não morrer, por sua vez, entra em conflito com uma existência empobrecida de uma vida que traiu todos os sonhos e promessas e que, assim, impele os homens ao desejo de morte como "promessa de liberdade" e como consolo - e a morte forjada socialmente, maqueia-se "ideologicamente" como destino natural. E uma grande maioria que, considerada inadequada e excluída dos meios que poderiam prolongar a sua existência (saúde, emprego, educação) numa sociedade marcada pela desigualdade social, é descartada do direito de viver. Como Marcuse afirmou, a morte está longe de ser um dado da "biologia", da "natureza", ou algo que preserva seu sentido "transcendental" consolidado por toda uma tradição de pensamento filosófico, ético, político e moral (também objeto de manipulação para a preservação do status quo). O homem foi expropriado de seu direito de morrer porque a vida também lhe foi expropriada. Junto à reivindicação de uma sociedade justa a morte perderia seu caráter medonho, ameaçador e punitivo, mas, "entre o céu e a terra" há muitos mistérios do que jamais podemos conceber... agora, só resta a todos os homens poderem desvendar esses mistérios e realizar os seus sonhos na terra.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Um giro magnético por São Paulo


Los Magnéticos, incendiando o Cerrado e fazendo a vaquinha babar

Fazer "divulgação de eventos" não é exatamente um dos objetivos deste blog, mas eu vou me sentir muito ingrato se não ajudar a noticiar a miniturnê pelo estado de São Paulo de uma das minhas bandas bigfieldenses preferidas: a às vezes doce e sempre vigorosa Jennifer Magnética.

De fato, uma das marcas dos magnéticos é aliar a delicadeza melódica, a sensibilidade e inteligência poética e a pegada rocker; então, se algumas letras e melodias lembram Los Hermanos ou Radiohead - sem falar numa alegria algo beatle -, a sonoridade tem muito de Led, que aliás eles emulam numa fusão algo insólita com... não, não: tem que ouvir pra crer.

E não que falte unidade entre som e letra na J.M. Tanto que os três - o batera Diogo Zarate, o guitarrista Jean Stringheta e o baixista Rodrigo Faleiros - compõem e cantam, com igual talento e sem prejuízo do virtuosismo instrumental. Quando fui cumprimentar o Diogo no festival acima documentado, e descobri que ele só podia contar com o auxílio de um olho pra fazer tudo o que faz com a voz, os pés e as mãos, me convenci de vez: esse cara é um ser mitológico!

Campo Grande não tem praia, mal tem rio e, a bem da verdade, nem campo tem tido ultimamente. Mas tem um céu imenso e muitos sons vagando entre ele e esse chão sofrido. Sim, há mais mistérios... e, muitas, muitas forças magnéticas entre o céu e a terra.

Quem estiver por perto, não perca. E faça "a crítica" se quiser, porque eu sou fã incondicional dos caras.

16/07 - São Carlos - Armazém Bar - junto com a banda Lisabi

17/07 - São Paulo - CAFESP - Domingo na Casa

18/07 - São Carlos - Programa de rádio Independência ou Marte

19/07 - São Paulo - CAFESP - Ao Vivo na Casa

20/07 - Bauru  - Shiva Bar

Aqui, curtindo o friozinho paulistano por antecipação

sábado, 9 de julho de 2011

Ainda em torno de Törless, ou do que (não) o atordoa


Este post tem algo da situação autopunitiva de um mea culpa. Afinal, ele advém de uma espécie de "retorno do recalcado"; o retorno, na verdade, de um "desprezado", sendo que as aspas sublinham não só a leviandade como a precipitação, sem falar na artificialidade, do gesto. Pois a verdade (e eu espero que o Tião, defensor ardoroso do Roberto Schwarz, leia isto) é que eu devo muito aos "sociólogos da literatura" para me referir a eles como fiz em minha resposta ao comentário de minha querida mestra, Suzi Frankl Sperber, no post anterior. E a grande - e pior - verdade é que se eu lhes dedicasse mais tempo e atenção não teria pago o pequeno ou grande "mico" que paguei, no texto referido, de tentar uma articulação exterior ao meu assunto nos post scriptuns (ou post posts) sobre os estudantes pobres, sem me dar conta de que essa articulação se dá, de certa forma, no interior do próprio objeto.

Minha própria mestra me alertou que o tema pedia mais desenvolvimentos; e embora eu jamais tenha tido a esperança - e, num post bloguístico (e é este, certamente, um de seus maiores benefícios), sequer a vontade - de esgotar qualquer assunto, a verdade é que ainda havia coisas por demais imprescindíveis a serem ditas nesse caso, e uma delas é isto: aliás, antes de tentar "definir" ou "explicar" - na verdade, generalizar - "isto", deixem-me tentar apresentá-lo na forma de uma objetividade conceitual mínima (ou seja, na forma de uma conceitualidade minimamente convincente quanto à sua "objetividade"), dizendo, apenas, que o inferno de Basini tem um explícito e inegável atrelamento econômico: pois se são seus empréstimos, dívidas e furtos que o tornam vulnerável aos ritos sinistros impetrados pelos colegas...

Mas o meu "antes" é um aquém, um deter-me: não vou, de fato, me perguntar sobre os "possíveis sentidos mais amplos" disso, ou seja, se determinados elementos do romance permitem ver Basini como um "representante" ou mesmo um símbolo de alguma condição social; uma "condição", no caso, "intermediária" (pensando, inclusive, nas relações do personagem com as pessoas pobres, mais exatamente uma prostituta, da aldeia). O fato é que, qualquer que seja o volume de seus gastos, os recursos de Basini não são suficientes para supri-los. Ainda que num nível puramente individual, portanto, e ainda que de forma relacionada a supostos "desvios" ou "patologias", Basini vive uma situação de precariedade e dependência econômica que o conduz, ainda que na forma de algum "pretexto", ao sofrimento. Basta, então, indicar que, conscientemente ou apenas por obra das frestas inevitáveis em um produto tão mergulhado no real, essa dimensão do real se infiltra aí: a condição de uma sociedade de classes, e, portanto, de alguma forma, da luta de classes.

Para ser sincero, parece-me - mesmo com o vexame do atraso da percepção (mas antes tarde do que nunca) - difícil supor que Musil fosse alheio às possibilidades de sentido (ou seja, de relações) aí implicadas; e isso porque o próprio Törless se mantém quase alheio (é quase que por instinto, ou pela dimensão inconfessável do sentimento que grassa nele, que ele finalmente o "salva") à condição humana de Basini; não na generalidade de sua individualidade humana, mas na complexidade e especificidade - inclusive social - desta. Ou melhor, ele a vê, sente (e/ou pressente) e mesmo vive, mas como quem olha e tenta dar sentido aos reflexos dela e sua degradação em si mesmo; vive-a, portanto, como um laboratório, reiteremos, para sua "radiografia". O que eu escrevi antes a propósito de Törless apenas vislumbrar "os indizíveis" em si é, portanto, uma meia verdade: pois se ele praticamente inquire o outro sobre a essência do não-ser - e, no entanto, sequer cogita perguntar "quem tu és?"; quem dirá lhe pedir que lhe conte sua história.

Essa anulação prévia do outro - e um outro, diga-se logo, a quem se ama - possui alguma dimensão social para além ou aquém das determinações mais amplas da forma e da representação literárias? Não sei, mas tenho agora a convicção - e de que sobre isso Musil nos alerta cabalmente, a nós, "intelectuais" - de que o conformismo (o, digamos, "conformismo filosófico") do velho Törless ("um homem de espírito refinado e sensível", "uma dessas naturezas de esteta e intelectual que sentem paz observando as leis e seguindo em certa medida a moral da sociedade, pois isso as exime de terem de refletir sobre as coisas grosseiras que ficam muito abaixo das sutis emoções espirituais") é um conformismo de classe.

E será que eu estarei extrapolando de novo o âmbito de meu objeto se lembrar o quão triste e sintomático (de algo, seja lá o que for) é o fato de que essa mesma palavra distintiva que encerra o parágrafo anterior ainda designa o espaço de nossas "ações pedagógicas", como a nos lembrar o quanto os lugares de poder - as inferioridades e superioridades - estão implicados neles? O jovem Törless, não se esqueça, é uma espécie de "romance escolar".

Mas puxa vida! Férias são sagradas, ou pelo menos deveriam ser. Se pudesse eu cantaria agora, com o... Herva Doce, Menudo?: Vamos a la playa, ô, ô, ô, ô, ô. Mas me contento com The Clash em surf music, que no entanto exige (até pela ausência da letra) o complemento do próprio The Clash. E nem vou criticar Joe Strummer, que morreu mas ainda vive, e sua velha trupe, o que além de fácil seria leviano para quem os adora tanto (situação não muito diferente, bem se vê, da relativa aos "sociólogos da literatura"). Bem, pelo menos desses (então) jovens rebeldes com calças (rasgadas...) e literalmente "de primeiro mundo" nenhum goiano paraguaio pode dizer que são assim, tão "alienados".  


Charles Does Surf (surf music tribute to The Clash)

The Clash - Combat Rock

(O disco acima tem a, digamos, "Holiday in Camboja" do The Clash, "Straight to Hell"; mas vejam como sou simpático e dou preferência a este rito, e não ao ainda mais infernal dos Dead Kennedys.)

Ah, sim: no fundo, no fundo, a culpa deste post é de minha amiga Fabiana, que, por mera e desprevenida compaixão, me pediu para não abandonar "meus leitores" nas férias. O que, espero, significa que eu terei pelo menos uma leitora. Em todo caso, prometo que o post de "volta às aulas" será bem diferente.



Mas (calma, calma, Eberaldo) como é que eu menciono The Clash sem linkar com esses covers brazucas, o segundo, aliás, bigfieldense?:
Redson - London's Burning
(O Sonante Filho Vermelho é o líder do Cólera, um dos muitos The Clash brasileiros, além de "ter" essa banda cover dos clashes.)
Jennifer Magnética - Should I Stay or Should I Go
(Vale o mesmo para a J.M., eu ia dizer "no contexto de Campo Grande", mas por que excluir Campão desta terra em brasas cheia de porteiras?)

  

domingo, 3 de julho de 2011

Musil, Törless e a radiografia do indizível


Este é o meu primeiro post com tema literário, e eu não posso deixar de me sentir grato pelas meias-coincidências que determinaram seu assunto. Pois o livro de que ele trata - o último que li, como se diz, por mero diletantismo - foi adquirido em circunstâncias quase inteiramente fortuitas, numa banca de livros usados, com o objetivo de tornar menos tediosa uma viagem de ônibus, e no entanto ele se me prestou (perdoem o preciosismo) a uma pequena mas importante catarse intelectual e emocional. Mais exatamente, essa leitura e este post compensam, em parte, e por conta de certas relações temáticas, a desistência de um velho projeto, a saber, um trabalho mais amplo sobre o filme Elefante, de Gus Van Sant.

O jovem Törless é a primeira empresa literária de vulto do escritor austríaco Robert Musil (1880-1942), embora apenas uma mostra mínima do talento que viria a aflorar no imenso (e inacabado) O homem sem qualidades. Curto, denso, um pouco menos cuidado na estruturação do enredo que na apresentação, aliás mais descritiva que narrativa, dos conflitos (sobretudo mas nem de longe apenas interiores), Törless é uma espécie de romance de formação condensado, temporal e espacialmente restrito aos dolorosos aprendizados (ou, talvez, não-aprendizados) do protagonista nos anos vividos em um Seminário para filhos de famílias endinheiradas.

Bem, devo alertar, como nas páginas da Wikipédia, que este texto contém revelações do enredo - sendo que o livro, que vale a pena ser lido, pode ser encontrado em muitos sebos, inclusive virtuais.

As experiências de Törless se ligam intimamente às de dois colegas, Reiting e Beineberg, e mais ainda - e mais intimamente ainda - às de um outro, o frágil e "desprezível" Basini, que os primeiros submetem a frequentes sessões de humilhação e tortura, física e psíquica. Daqueles três, entretanto, para apenas um deles essas sessões sinistras (não raro interpretadas como uma antevisão do nazismo) constituem exercícios de um mero poder cruel e dominatório. Tanto para o "filosófico" Törless quanto para o "budista" Beineberg são outras obsessões de domínio que estão em jogo, obsessões ligadas à própria estrutura do real, e seu conhecimento e experiência.

E se Beineberg busca fazer da mente e do corpo daquele "outro" um instrumento de comprovação de suas fés ou teorias místico-religiosas, o que Törless busca, mas no âmago psíquico, ou seja, na alma desse corpo-consciência massacrado - e não menos inutilmente que seu colega -, é um vislumbre, um sentido ou o que quer de luz que ele possa trazer, do âmago mesmo de suas terríveis experiências, para as dúvidas "cruciais", ou seja, os paradoxos que o aluno "sensível" e aplicado vê, obsessivamente, pairando ou, antes, vicejando, no fundo mesmo de quaisquer certezas, de qualquer tipo.

Um fundo onde tudo o que é razão, moral, entendimento, valores ou o que quer se vincule a um Ideal, uma Lei ou o que quer que se conceba como superior se deixa flagrar em seu conluio com uma vida, uma matéria, sempre com seu quê de sórdida, suja e, claro, falha e mortal. Um fundo onde tudo se dissolve na estrutura vertiginosa, paradoxal, da mera e absurda existência. Mas em seu próprio fundo, o próprio Törless somente vislumbra o quanto viceja o indizível. Ou melhor, os indizíveis: medo, desejo, desamparo.

Tudo isso - ou apenas isso -, de minha parte, para extrair daí uma moral pedagógica, ou, quiçá, uma lição, quem dera até um programa. Sim, pois o que talvez mais falte a Törless (cujo futuro medíocre, desvelado no final, marcará sua distância da instância autoral) e a Beineberg, e mesmo ao torpe Reiting, e mesmo ao "coitado" Basini - ou melhor, uma das poucas ou muitas coisas que talvez a escola pudesse fazer para compensar todos os abismos (sociais, morais, existenciais, metafísicos, "relacionais") que se cavam na alma das pessoas, seriam aulas de paradoxo, aulas de absurdo, de vertigem. Isso que nos faz sentir, antes que nos sintamos tentados a comprovar e/ou expurgar isso em outrem, que também somos algo semelhante a um nada, ou uns filhos do nada.

"Aulas de poesia!", alguém me sugerirá. Mas não, porque definitivamente o paradoxo, a vertigem e o absurdo não podem ser apresentados como instâncias, atributos, propriedades, de qualquer privilégio posicional, actancial, pragmático ou o que seja. Pois se eles pertencem e a eles pertence o real: o mísero real nosso - ou melhor, deles (menos os poetas que os, diz-se, sem-poesia) - de cada dia.

Porque o nosso, bem, ao menos para alguns de nós há os terços de férias. O que aliás me lembra que este é um post de Boas Férias, vindo a calhar, portanto, seu contexto livresco e escolar.

Vêem que rimar é quase uma sina? Mas deixo para outro dia a piada do Joãozinho.

E viva o Joãozinho, e vivam Basini, Reiting, Beineberg e Törless, e, claro, o imenso Musil, o melhor Joyce que uma Áustria pré-nazista poderia parir, e que muito ainda ensina. E vivam as férias!


P.S.1: Encontrei o desenho acima, acreditem, num site universitário - no da UFMS de Bonito, é claro. (Mas também poderia ser de Corumbá - é claro.) E viva - e Deus guarde, porque de nossa parte não sei não - Bonito (e Corumbá, e etc.). (Com um abraço aos tios e tias e primos e primas, inclusive ao Breno, que pertence a esses dois paraísos ameaçados.)
P.S.2: Ainda sobre Bonito (e Corumbá), como dizem "os que podem", é "uma boa pedida".
P.S.3: A título de nada: achava muito grotesco, quando estudante, a maior parte dos professores não saberem que muitos alunos "não podem nada" nas férias. Ultimamente, tampouco os professores andam "podendo" muito, mas muitos continuam sem saber.

sábado, 25 de junho de 2011

É pra Jah! (notícias (cá) do mundo austral)


Preciso escrever logo este post, antes que ele se esfume de vez na minha cabeça. É verdade que tenho aqui comigo o cd dos Thompsons, mas, como cheguei a dizer, em meu be(a?)st english, ao baterista da banda (olhando o dvd que, com certeza, ele tinha esperança que eu comprasse, e que aliás me arrependi de não ter comprado): "it's not the same thing!". Um show do Jarrah Thompson, como eu tive a chance de presenciar mês passado em São José do Rio Preto, na fantástica Vila Dionísio, é uma experiência única. Queria entender minimamente de música para tentar descrevê-la com mais do que palavras vagas e impróprias, mas, enfim, faça-se o que se possa.

(Um parêntese para me queixar pelo fato de nenhum professor de português ter se queixado da ausência de Jânio Quadros no post que lhes dediquei (aos "quadros", quero dizer) outro dia.)

Confesso que, quando cheguei diante do palco (eu vinha do banheiro, de onde tinha ouvido uns acordes introdutórios, acreditem (eu tentei não acreditar), de flauta) com a tão anunciada e badalada "banda australiana", tive vontade de ir embora. À esquerda (não é a foto que ilustra o post), um sujeito moreno e grandalhão, de olhos fechados e voltados pro espaço, tirava uns acordes esparsos do baixo. Ao centro, outro "viajandão", meio baixo e meio loiro, com o ar que me pareceu o mais anódino do mundo, emitia uns vocais agudos e pilotava uma guitarra com inverossímil pose de hero. À direita uma moça linda, com ar de deusa nórdica, portava, ou tocava, não me lembro, a tal flauta, mas com tal expressão de boba alegre que nem ela me comoveu. Atrás, outra beldade, loira, causava uma pequena barafúndia percussiva, em comum desacordo (assim me pareceu, à primeira e má audição) com um baterista que eu nem havia me dignado a procurar.

Mas o Jarrah Thompson é uma dessas bandas com uma frequência, ou um tônus, muito particular, que exige mais do que ser contemplado, ainda que com os ouvidos, para se dar a conhecer. É como Ramones: é preciso engrenar para que funcione. A diferença é que aqui a engrenagem é muito mais sofisticada, muito mais rica de experiências melódico-sensoriais. Mas olha o abstratão operando aí.

Indo, então, ao concreto, o que posso descrever (isto não é, lembre-se-me, uma autobiografia) é o seguinte: uma guitarra e uma flauta operando numa espécie de afinação ou, sei lá, lógica transcendental; um par, ou trio, ou sei lá o quê de vozes funcionando em perfeita (trans)afinação com as primeiras e uma maquinaria de base igualmente em perfeito entrosamente, mas, mais do que meramente lhes servindo, criando, viajando junto com elas.

Pois não só a guitarra e a flauta e a vozes de Mr. Thompson e Miss Asha Henfry solam e se costuram de formas não tão virtuosísticas quanto inteligentes e inusitadas, como também o fazem o baixo de Bruno Padoveze, repleto de meios-tons densos que introduzem simultaneamente mais peso e riqueza e estranhamento melódicos à eletrovertigem de Thompson, e a bateria de Chris Cameron, de uma precisão, um virtuosismo e, sobretudo, uma alegria igualmente regida, tem-se a impressão, por um princípio transcendental, no qual a percussão da lorinha Bianca Aviaz (ausente na foto) já atua o tempo inteiro, transcendida. Isso quando as duas, Asha e Bianca, não se lançam numa dança frenética que deveria envergonhar os paradões lá de baixo.

Por isso, de fato, tudo ali (não apenas Mr. Thompson) é Jarrah Thompson, seja lá o que for isso. Lembro de algumas sínteses que me baixaram na segunda música, assim que ela me fisgou: um AC/DC psicodélico. Um Led ultraelétrico, sem Bonham e sem pausa pra respirar. Um Jethro Tull pós-moderno e muito, muito (nada contra os barbudos, garanto!), mais lindo(a, bem entendido).

Mas é preciso, sim, prestar tributo a Mr. Thompson, ao menos se for dele a autoria das canções - digo, das músicas (até porque as letras não as entendi então e nem tento entender agora - deixo isso para meus críticos nacionalistas, goianos ou paraguaios). Pois é daí que deriva, de fato, todo o resto, ou seja, a aliança de experimentação e harmonia a toda prova, de estranhamento que, ainda à beira da dissonância, não deixa de insistir, um segundo sequer, em sua insistência rítmico-melódica. A redundância é inevitável, pois é a própria lógica da coisa: é como se se quisesse sempre mais: neverstopem, neverstopem, pedem-se mutamente as jahvozes e os jahinstrumentos; e quiçá seja mesmo assim, enquanto puder ser.

(Aliás, "australiana" vírgula (porque o Bruno é irmão do Marcelo Camelo, tenho quase certeza): brazucaustral, eu diria, se "caustral" não soasse tão, digamos, claustral (para não dizer coisa pior), sendo que o Jarrah Thompson é o contrário, ou quase, disso: é missa a céu aberto.)

Fuce algo aqui:


domingo, 19 de junho de 2011

A Demanda da Espiritualidade Perdida


"Se Deus não existe, tudo é permitido."
Dostoiévski

"O passado traz consigo um índice misterioso, que o impele à redenção. Pois não somos tocados por um sopro do ar que foi respirado antes? Não existem, nas vozes que escutamos, ecos de vozes que emudeceram? Não têm as mulheres que cortejamos irmãs que elas não chegaram a conhecer? Se assim é, existe um encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Alguém na terra está à nossa espera. Nesse caso, como a cada geração, foi-nos concedida uma frágil força messiânica para a qual o passado dirige um apelo. Esse apelo não pode ser rejeitado impunemente. O materialista histórico sabe disso."
Walter Benjamin

O filme Nostalghia, do cineasta russo Andrei Tarkovski, revela uma outra realidade dentro da realidade dos homens comuns. É um universo utópico, um não-lugar, paralelo ao mundo ordinário. À semelhança dos romances de Dostoiévski, retrata um novo mundo que está por nascer, sobre as ruínas do antigo. Um mundo que está ainda em estado embrionário, surgindo lentamente por sobre as névoas deste tempo sombrio que quer abortar o novo que está surgindo.
A modernidade capitalista , que teve sua gênese na Itália, está sendo substituída, por um tipo de sociedade que ainda não possui uma configuração clara. A chama da fé cristã é passada do povo italiano para o povo russo, o novo portador da esperança utópica, de uma humanidade liberta da escravidão do materialismo suicida do capital.
Esperança que havia se apagado durante a ditadura stalinista, mas que volta a reacender-se pelo contato com a fé italiana. Uma fé que está se extinguindo na Itália moderna, simbolizada pela personagem Eugênia, mas que luta desesperadamente, como o personagem Domenico, para que esta chama seja levada adiante, para que não morra sob o escombros de uma civilização que está desabando.
Como profetizara Dostoiévski, A Rússia se tornaria o farol do novo mundo. Sua obra representa este sonho utópico de uma humanidade redimida de todas as suas atrocidades. Cabe aos loucos, aos poetas, aos místicos, a missão de carregar esta chama utópica de uma nova humanidade.
No mundo dos normais, a maioria está preocupada em aumentar sua felicidade individual, prolongar sua vida, preservar a juventude. Como o sistema do capital, as pessoas não querem envelhecer, não querem morrer, presas ao prazeres materiais que se multiplicam a cada dia, seduzidas pela propaganda, pela medicina, pela indústria famacêutica e de cosméticos. Enfeitiçadas pelas promessas de uma eterna e permanente felicidade, por um gozar da vida ininterrupto, elas se lançam no jogo fratricida da competição capitalista, para gozar das delícias oferecidas pelo mercado.
Numa cena antológica, Domenico, depois de ser retirado de seu cativeiro, que ele impôs a si e sua família para esperar o juízo final, corre atrás do seu filho, talvez para impedir que a criança entre em contato com este mundo dominado pelas trevas da sua própria decadência. Seu filho pergunta, nas escadarias de uma igreja, se ali era o fim do mundo.
Os fatos da nossa realidade contemporânea talvez respondessem que sim. Um mundo onde o Prêmio Nobel da Paz ordena ataques aéreos que matam crianças e mulheres indefesas, com a justificativa mentirosa de defender o mundo da ameaça terrorista, ameaça criada pelo governo do país que ele preside; um mundo onde as crianças são cercadas pela violência, pela fome, pelas psicoses, pela miséria, pela pornografia, pelo consumismo compulsivo, por parentes e religiosos pedófilos, por autoridades corruptas e depravadas; por drogas lícitas e ilícitas de todos os tipos. A resposta de Domenico e de todo pai preocupado com sua família não poderia ser outra: de que já estamos no fim deste mundo dominado pelo vampiro do capital.
É preciso atravessar o pântano moral, no qual nos encontramos, com a chama da nossa humanidade protegida da tempestade que sopra do abismo do esquecimento.
Na crise da humanidade humanidade européia, da qual fugimos, que fingimos não existir, ou quando percebemos, procuramos soluções individuais, Deus está sempre falando ao homem, mas ele se fecha em seu racionalismo, em seu orgulho. Só os santos e os loucos ouvem a voz de Deus. A criança encarna a luz do novo mundo.
Benjamin identifica o progresso capitalista com essa tempestade do abismo, que vem do passado, acumulando ruínas sobre ruínas. A história humana, ou pré-história para Marx, é uma sequência de catástrofes e segundo Benjamin, até a natureza, se lhe fosse dada a palavra, teria muito o que lamentar. Para Kafka o estado atual da civilização não se diferenciou quase nada do de um lamaçal. O homem ainda chafurda na lama à semelhança dos seus ancestrais barbáros. É uma barbárie racionalizada, com uma violência burocratizada, consumada pela máquina do Estado, perpetuando a bestialidade humana.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

Educação + política = dignidade: uma equação possível?

Há muitos anos, quando eu era estudante de graduação, organizei, com a ajuda de uns poucos colegas (lembro-me, apenas, da Lucilene, então minha namorada, e de outra amiga do CA de Letras, a Ângela, além de minha "adversária política" Eliany Salvatierra) e, sobretudo, do então diretor do Centro de Ciências Humanas e Sociais da UFMS, um seminário sobre a realidade e as perspectivas dos cursos de licenciatura e do "exercício do magistério" (como então se dizia). O desenho acima, bolado por mim e realizado pelo Tito, da antiga assessoria de imprensa da UFMS (e que eu tomei a liberdade de recontextualizar), ilustrava o folder do Seminário.

Foi um evento bastante problemático, sobretudo devido à minha inexperiência, e uma das situações mais criticadas pelos participantes foi uma palestra conferida por Antônio Carlos Biffi, então sindicalista na área da Educação e eterno candidato a algum cargo eletivo na política estadual. Que eu me lembre, a fala de Biffi, que tinha fama de fisiologista, foi basicamente uma apresentação de estatísticas detalhando a condição de exploração e penúria dos professores dos níveis básicos. Nenhuma abordagem teórica; apenas a exposição de dados crus, talvez manipulados de acordo com as conveniências; nada em todo caso, cujo conhecimento e, mais ainda, discussão fossem desprezíveis.

Seja como for, a experiência desse evento me levou a uma dupla decepção: com a área educacional e com a política estudantil - e, por extensão, com a política em geral. Não por aquela situação específica, mas sobretudo pela falta de apoio de professores e dos colegas, inclusive do DCE, do qual eu era membro. Foi, em todo caso, quando decidi ser um "teórico da literatura", talvez me esquecendo que a sina de professor era praticamente inevitável e que, enfim, somos todos animais irremediavelmente políticos (o Delfim, aliás, devia ter acrescentado isso em seu comentário sobre as empregadas domésticas).

O fato é que há muito tempo eu não tinha notícias do Biffi, até que recebi, ontem, um e-mail, do jornalista e colecionador de receitas vegetarianas Éber Benjamin, a respeito de uma intervenção do agora deputado federal petista no Fórum do Meio Ambiente sobre a votação do novo Código Florestal na Câmara. Biffi, esclareça-se (e termine-se o suspense), foi o único deputado do MS a votar contra o código, e apresentou uma avaliação que apontava a importância de elementos político-partidários - relacionados sobretudo às denúncias contra o ex-ministro Palocci - no resultado da votação.

É bem provável que esse posicionamento e essa avaliação tenham a ver, ao menos em parte, com questões de política partidária, inclusive com divergências entre as tendências internas do PT. Ainda assim, considero o voto de Biffi um gesto acertado e corajoso, ainda mais em vista de sua exclusividade na bancada estadual (o outro petista da bancada declarou voto favorável ao Código mas estava ausente na hora da votação). E felicito-me, sobretudo, por ele advir de um político que iniciou sua atuação na área educacional; o que me faz ter a esperança de que essa relação, entre política e educação, ainda seja capaz de produzir frutos diferentes de tantos que temos visto por aí. Mesmo porque essa é uma relação não só necessária como inevitável. E em nenhuma outra é mais necessário, por uma questão de coerência mesmo, que ela tenha por base princípios honestos e efetivamente transformadores.

Escrevo tudo isso consciente do quanto pode haver aí de ingênuo. Não se trata, ademais, de qualquer tipo de publicidade, ainda mais em vista da recente e pouco interessante, para decepção de muitos, trajetória política de um conhecido escritor e "educador" - em todo caso, de ampla aceitação entre educadores - de São Paulo. Em todo caso, talvez um dia alguém escreva a história da relação entre política e educação, ou melhor, dos políticos educadores, sopesando as ações positivas e negativas, honestas ou desonestas, ingênuas ou tendenciosas, felizes ou desastrosas de gente como Darcy Ribeiro, Marilena Chauí, Cristóvão Buarque etc. Tomara que, ao menos depois disso - quiçá, antes ainda, quiçá já seja assim em alguns casos -, a imbricação das palavras em itálico dignifique o que cada uma tem ou pode vir a ter de melhor.

Voltando à explanação do Biffi, acredita o quiçá sincero deputado que o destino do Código Florestal pode ser outro no Senado, também por questões de configuração político-partidária, que são, ao que parece, o que mais importa na política deste país, a ponto de reduzir essa nobre palavra a essa relação estreita. Em todo caso, segundo essa avaliação, ainda é tempo para desfazer e refazer o quadro - a meu ver nada alentador - ora esboçado, de onde meu pedido de continuidade da divulgação do texto sobre o assunto aqui publicado.

A matéria enviada pelo Éber é de autoria do Centro de Documentação e Apoio aos Movimentos Populares do MS, cujo e-mail é cedampo@terra.com.br. Para quem mora em Campo Grande: o Cedampo e o Fórum incluíram a bandeira ambientalista na Marcha da Liberdade, dia 18 próximo, com saída da Praça Ary Coelho às 9 da manhã.

domingo, 12 de junho de 2011

Vênus vive viva Vênus


Mais uma "dica cultural", agora cinematográfica, à guisa de post emergencial (e acrítico... ou não, porque o amor é, em mais de um sentido, o mais crítico dos gestos e sentimentos). Pelo menos é adequado à data, embora os casais mais jovens - ou melhor, insensíveis - possam se decepcionar. Porque Vênus, de Roger Michell, é mais um desses filmes sobre o amor ser maior que a morte, mas de uma forma em que essas palavras quase mutuamente anagramáticas se enlaçam como nunca: sem sangue, sem declarações, sem sexo, sem jorros de espécie alguma. Bem, os estudantes e profissionais das letras creio que não irão se decepcionar, pois só ver Peter O'Toole recitando Shakespeare já vale a pena.

Dessa vez não dou nenhum link, mesmo porque o filme ainda pode ser encontrado, em qualidade melhor que a dos posts, na maioria das locadoras.

"O amor é uma flor roxa que nasce nos corações dos trouxas", alguém me dizia há muito tempo lá em Corumbá. Que vivam então as flores roxas, pois também elas lembram que o amor é maior que a morte!

Ps: Para os mais jovens, uma dica complementar - insipirada na de uma fã (não minha, mas magnética ;):

http://www.youtube.com/watch?v=590RrSf-NPY
(ouça no volume máximo!)

Para uma excelente descrição da experiência sonora do J.M., cf.: http://estudioaovivo.wordpress.com/author/laramarx/


"meu amor, nosso amor é uma questão de evolução..."