VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Elegia para uma cafeteira quebrada


 

ntem de manhã, o pino do suporte de plástico do coador com filtro de papel da minha cafeteira quebrou. Não deu pra tomar o cafezinho matutino e o meu quatro de julho de 2013 começou mal. O pino do suporte de plástico do coador com filtro de papel da minha cafeteira talvez custasse uns vinte centavos. Vinte Centavos. Mas onde comprar um pino do suporte de plástico do coador com filtro de papel que servisse certinho no modelo e marca da minha cafeteira? Dia ruim, amargo Brasil. Não, não é só por vinte centavos. Pensando bem, não é só pela cafeteira que quebrou e o café que não saiu.

Meu cérebro amanhecendo sem café remói o mundo-moinho e sinto os meus ossos quebradiços. Cansaço, sombra nascente, nublada manhã que segue. Desperdício de energia minha, da minha geração high-tech, incapaz de usar o coador bruto de Maria Bonita. Acorda, Maria Bonita... cangaço de retóricas, mãos ágeis e leves para as teclas, telas, sem punho firme para foice e martelo e bigorna. Quantos calos nas mãos inglórias serão necessários para que a foice comece a ceifar e o martelo o aço a martelar? Quantos calos na garganta para que o grito ganhe a carne? Ah, como essa dor me espanta, arde, como me inquieta uma atualização de facebook e minha satisfação perfilizada, quase pérfida, carapuça política de um egoísmo programado. As ruas logo ali, meu violão aqui ao lado sem a corda Mi. Dylan, Dylan, the times they are a-changin' merda nenhuma. Nem canção, nem aliteração, ritmo forçado, rima ginasial, disfarçarão as sentenças que escrevo de sua inevitável tibieza espiritual. Lembro o olhar de Dilma piscando uma Constituinte Exclusiva para a Reforma Política e a massa nas ruas cantando O gigante acordou e Bandeira e o Hino e Fora aos partidos. A piscadela da ex-guerrilheira passou despercebida, dobrou à esquerda na esquina, se foi. A juventude quebra-semáforo ainda não sabe o que fazer com a esquina. Entre micaretas, futebol e indignação, um “Vem pra rua porque a rua é a maior arquibancada do Brasil” saltando dos carros sonhos-de-consumo da Fiat para as catracas quebradas em São Paulo, da voz-antena de Falcão para as minhocas de metal onde a juventude se tromba, se compartilha, mesmo com os ouvidos fechados em fones e música e tecnologia. Os proletários descobriram que eram proletários tagarelando juntos dentro da fábrica. Ford se foi e ficaram os trens, metrôs e ônibus da cidade. Dentro das grandes latas móveis, da vida que se vai no caminho pisado, onde o homem de hoje quer “um lugar pra sentar e sonhar no lotação”, será aí o espaço de conversa possível para se descobrir de novo que raios é isso que a esquerda, às vezes quase quixotesca, chama de proletário? De que lugar lançou-se o grito pelos 20 centavos? Ou ainda – um agravo – resolve alguma coisa saber de onde o grito surgiu? Um eco, um oco cheio de novo, cheio de tudo, até de vazio.

As ruas ocupadas, um aroma.

Eu que não sou niilista, que só preciso tomar um café quente pra crer de novo no progresso da humanidade, em Che, em Gandhi, vi com bons olhos o menino de doze anos surfando com rodinhas no asfalto duro da avenida Afonso Pena, no coração duro de Campo Grande. Vi com ternura seu cartaz apagado contra a PEC 37. Invejei sua desenvoltura, seu skate, sua camisa amarrada na cara (e um skate é algo ainda inconcebível para mim). Meus atrasos. Vi o Bradesco apedrejado, vi o Bradesco mordendo com seus estilhaços-dentes de vidro a perna de um vida loka embriagado de raiva justa, urgente. Terror contínuo na periferia, saldo sempre insuficiente. Vi assentados rurais, abandonados pelo Estado, perdidos na massa com cartazes tímidos escritos com caneta Bic pedindo luz elétrica. Pareciam de outro tempo, estáticos, quase pedras, em um canto escuro. Nem sei como os vi na turba patriotizada com o branco da paz e o verde e amarelo gritantes. Lembrei de Meu Coronel em pleno desenvolvimento azul e branco, também cores da bandeira. E a Reforma Agrária, sejamos francos, será sempre vermelha. E o vermelho desbotado, meu querido andrajo, quer vermelha a rosa do povo. Mas “a hora pressentida esmigalha-se em pó na rua” (como diz o poema de Drummond, “nosso tempo”, sobre o tempo dele, que é o tempo nosso também). Restará algo só nosso, um vintém, um V de Vingança, conquista desta juventude, caso não olhemos para a História, caso não abdiquemos de querer fazer sempre um samba? Rosa Luxemburgo, ensinai-nos sobre os conselhos operários, ensinai-nos sobre um socialismo debaixo pra cima, sem cartilhas goela-abaixo. Terá mesmo a chave a América Latina? Talvez mais louco do que a média, “eu que ainda espero a revanche pintar”, mesmo que muito devagar, vou percorrendo o litoral central de Geraldo Roca, o escurão-sul desse mato grosso. Sem muito o que dizer, sem rota, ancorado em citação, só me resta entregar estas linhas pobres ao canto superior de Drummond:

Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.


Eu não sou as coisas. E eu não sei sequer dar nome específico a esse tal pino do suporte de plástico do coador com filtro de papel da minha cafeteira. Só sei que é a cafeteira quebrada, como um todo, o que me incomoda. Só a substituição ou o conserto ou a abolição da cafeteira podem explicar o que seja os vinte centavos de uma coisa que não tem nome, que não tem catálogo, mas que não deixa o café ficar pronto, que afasta a alvorada pra longe, desritmando meus neurônios agitados.


Volmir Cardoso Pereira

8 comentários:

  1. Muito obrigado, Volmir, e também ao Picasso e ao Henfil!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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    1. Volmir, bonito texto, pois apresenta de forma generosa o que talvez tenha passado, para muitos, despercebido. abraços

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  3. Talvez as nossas impressões postas em discurso literário (ou pretensamente literário) ajudem a pensar melhor quando o raciocínio não consegue tecer argumentação científica convincente sobre o que está acontecendo ... valeu Ravel, valeu Edelberto.

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  4. Fiquei curioso pelo motivo do Edelberto ter removido seu comentário...

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  5. Oh, Ravel, respondendo-te: apaguei o texto porque estava mal escrito. abraços para vocês, Ravel e Volmir.

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    1. Ah, Edelba, era um excelente comentário! Tô com ele em minha caixa postal, e com uma vontade de republicá-lo, hehe.

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