VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Os suspiros dos fumantes ou seus "últimos" suspiros? O fumar como tabu


Desconfia dos que não fumam: esses não têm vida interior, não têm sentimentos. O cigarro é uma maneira disfarçada de suspirar... (Mário Quintana) 

O fragmento acima, do poeta Mário Quintana, pode causar certa estranheza hoje aos leitores, tendo em vista os tempos atuais em que percebemos uma obstinada perseguição e exclusão dos fumantes, assentadas na preocupação com a saúde, principalmente com as medidas rigorosas de restrição ao tabagismo no Brasil em ambientes públicos. A intensidade da expressão acima, de natureza aforismática, parece contradizer certo ideal dominante que tende a associar o fumar com algo condenável, “vergonhoso” e repugnante que, por sua vez, nos lembram as práticas higiênicas que, desde o final do século XIX, vieram regrar a vida social e determinar códigos de comportamentos dos sujeitos, baseados no discurso médico de conotação moralizante.

O poeta conhecido por sua aversão às convenções e que se auto-intitulava um “tabagista de coração”, testemunha por meio de seu lirismo relutante e bem humorado o silenciamento do espírito e da atitude contemplativa, vistos hoje como sinais de fraqueza, como atos de curiosidade ociosa, fatores repudiados pelo nosso sistema e cultura utilitarista. E, segundo Rui Castro, tragar é exercer um “diálogo interior” sendo que, o “suspiro disfarçado” pela fumaça, conforme a sentença de Quintana lança pista sobre a íntima relação existente entre o tabaco e a criação artística (ou do exercício do pensamento que reflete, na forma de lamento, o horror da realidade e as possibilidades de liberdade ainda não realizadas).

Na linha de pensamento do poeta Quintana, não seria a fumaça do cigarro a materialização do desejo, ou melhor, a nostalgia do desejo proibido? O tragar lembraria a promessa de felicidade não cumprida no processo civilizatório, ainda que o cigarro tenha servido à própria civilização, tanto em seus aspectos regressivos e (por que não?) progressivos? Por trás da proibição (ou da repulsa) ao fumo, encontra-se algo de natureza mais profunda, assim apontando para dois aspectos aparentemente contraditórios do cigarro: a tentação que lhe é atribuída remete tanto à possibilidade de sublimação representada pelo “tragar” do artista (segundo os poetas), quanto à de regressão suscitada pela felicidade alienante dos narcóticos, que, por sua vez, fornece ao fumante a ilusão de liberdade. Deste paradoxo acima colocado – as possibilidades “sublimatórias” e “regressivas” do cigarro – chego a identificar uma questão importante sobre o fumar e sobre o discurso social dominante que recai sobre os fumantes (a idéia de doença e do fumante como “doente”, fraco de caráter, sem falar que sob o regime nazi-fascista, muitos intelectuais foram perseguidos e executados, deixando explícito o "repúdio" que os fascistas tinham pelos "homens de espírito", como também o fato de que Hitler foi o primeiro a condenar e a proibir expressamente o fumo em determinados locais no ocidente).

Ouso até a atribuir ao fumar uma conduta fortemente marcada pelo sofrimento imposto interna e externamente ao indivíduo em uma sociedade por demais injusta, assim sendo o tragar uma via de expressão das “pulsões” proscritas e/ou administradas pelas sociedades tecnológicas que desenvolveram instrumentos mais sofisticados de controle da natureza. Novas discussões sobre este tema podem ser levantadas a fim de não recairmos em respostas fáceis sobre o assunto, visto que, nos temas polêmicos, em que as respostas já estão previamente dadas (no caso, ou se é contra ou a favor do cigarro), acabamos por fazer concessões facilitadoras. Para além das questões referentes aos malefícios do cigarro ao corpo das quais não nego em nenhum momento, tais discursos devem ser confrontados com as contradições do objeto em questão, tendo em vista as tendências sociais dominantes, tais como as propagandas apelativas sobre os malefícios do cigarro.

As propagandas antifumo veiculadas pelas horríveis imagens de "fumantes cadáveres" encontradas nos maços de cigarro, reforçam tendências básicas das sociedades administradas voltadas especificamente para a dominação do corpo que perpetuam o atrofiamento da esfera privada e particular dos sujeitos – as suas possibilidades de fruição que lembrariam a promessa de felicidade não realizada na nossa cultura. As imagens de “fumantes cadáveres” encontram-se presentes nos discursos que fortalecem tendências sociais regressivas e que, possivelmente, indicam a massificação dos sujeitos enquanto “corpo objeto” e alvo de crueldade. Nas imagens atuais vemos presente o princípio que rege a lógica de nossa sociedade: preparar as pessoas para as máximas do “sacrifício” e do sofrimento individual, assim como para o desejo de morte e vingança sobre aqueles que não correspondem às "normas" dadas. A publicidade antifumo possivelmente tem o poder de acostumar as pessoas ao “horror” gerado na sociedade com tendências totalitárias, por meio de uma nova espécie de barbárie exacerbada nas fotos publicitárias de corpos desfigurados e em estado de debilidade (o avesso do narcisismo), cujas vítimas “sacrificadas” nas imagens veiculadas possam representar a vida sem encanto, ou a perdida “unidade do corpo e da alma".


Também atento para a associação do fumo com a arte – os resquícios das “possibilidades sublimatórias do tragar” -, presente, por exemplo, nas obras de autores burgueses românticos que fizeram, outrora, o elogio ao tabaco. Assim, as tendências antiintelectuais fortemente presentes na contemporaneidade não corroboram com a transformação do hábito de fumar em tabu?

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