VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

domingo, 3 de julho de 2011

Musil, Törless e a radiografia do indizível


Este é o meu primeiro post com tema literário, e eu não posso deixar de me sentir grato pelas meias-coincidências que determinaram seu assunto. Pois o livro de que ele trata - o último que li, como se diz, por mero diletantismo - foi adquirido em circunstâncias quase inteiramente fortuitas, numa banca de livros usados, com o objetivo de tornar menos tediosa uma viagem de ônibus, e no entanto ele se me prestou (perdoem o preciosismo) a uma pequena mas importante catarse intelectual e emocional. Mais exatamente, essa leitura e este post compensam, em parte, e por conta de certas relações temáticas, a desistência de um velho projeto, a saber, um trabalho mais amplo sobre o filme Elefante, de Gus Van Sant.

O jovem Törless é a primeira empresa literária de vulto do escritor austríaco Robert Musil (1880-1942), embora apenas uma mostra mínima do talento que viria a aflorar no imenso (e inacabado) O homem sem qualidades. Curto, denso, um pouco menos cuidado na estruturação do enredo que na apresentação, aliás mais descritiva que narrativa, dos conflitos (sobretudo mas nem de longe apenas interiores), Törless é uma espécie de romance de formação condensado, temporal e espacialmente restrito aos dolorosos aprendizados (ou, talvez, não-aprendizados) do protagonista nos anos vividos em um Seminário para filhos de famílias endinheiradas.

Bem, devo alertar, como nas páginas da Wikipédia, que este texto contém revelações do enredo - sendo que o livro, que vale a pena ser lido, pode ser encontrado em muitos sebos, inclusive virtuais.

As experiências de Törless se ligam intimamente às de dois colegas, Reiting e Beineberg, e mais ainda - e mais intimamente ainda - às de um outro, o frágil e "desprezível" Basini, que os primeiros submetem a frequentes sessões de humilhação e tortura, física e psíquica. Daqueles três, entretanto, para apenas um deles essas sessões sinistras (não raro interpretadas como uma antevisão do nazismo) constituem exercícios de um mero poder cruel e dominatório. Tanto para o "filosófico" Törless quanto para o "budista" Beineberg são outras obsessões de domínio que estão em jogo, obsessões ligadas à própria estrutura do real, e seu conhecimento e experiência.

E se Beineberg busca fazer da mente e do corpo daquele "outro" um instrumento de comprovação de suas fés ou teorias místico-religiosas, o que Törless busca, mas no âmago psíquico, ou seja, na alma desse corpo-consciência massacrado - e não menos inutilmente que seu colega -, é um vislumbre, um sentido ou o que quer de luz que ele possa trazer, do âmago mesmo de suas terríveis experiências, para as dúvidas "cruciais", ou seja, os paradoxos que o aluno "sensível" e aplicado vê, obsessivamente, pairando ou, antes, vicejando, no fundo mesmo de quaisquer certezas, de qualquer tipo.

Um fundo onde tudo o que é razão, moral, entendimento, valores ou o que quer se vincule a um Ideal, uma Lei ou o que quer que se conceba como superior se deixa flagrar em seu conluio com uma vida, uma matéria, sempre com seu quê de sórdida, suja e, claro, falha e mortal. Um fundo onde tudo se dissolve na estrutura vertiginosa, paradoxal, da mera e absurda existência. Mas em seu próprio fundo, o próprio Törless somente vislumbra o quanto viceja o indizível. Ou melhor, os indizíveis: medo, desejo, desamparo.

Tudo isso - ou apenas isso -, de minha parte, para extrair daí uma moral pedagógica, ou, quiçá, uma lição, quem dera até um programa. Sim, pois o que talvez mais falte a Törless (cujo futuro medíocre, desvelado no final, marcará sua distância da instância autoral) e a Beineberg, e mesmo ao torpe Reiting, e mesmo ao "coitado" Basini - ou melhor, uma das poucas ou muitas coisas que talvez a escola pudesse fazer para compensar todos os abismos (sociais, morais, existenciais, metafísicos, "relacionais") que se cavam na alma das pessoas, seriam aulas de paradoxo, aulas de absurdo, de vertigem. Isso que nos faz sentir, antes que nos sintamos tentados a comprovar e/ou expurgar isso em outrem, que também somos algo semelhante a um nada, ou uns filhos do nada.

"Aulas de poesia!", alguém me sugerirá. Mas não, porque definitivamente o paradoxo, a vertigem e o absurdo não podem ser apresentados como instâncias, atributos, propriedades, de qualquer privilégio posicional, actancial, pragmático ou o que seja. Pois se eles pertencem e a eles pertence o real: o mísero real nosso - ou melhor, deles (menos os poetas que os, diz-se, sem-poesia) - de cada dia.

Porque o nosso, bem, ao menos para alguns de nós há os terços de férias. O que aliás me lembra que este é um post de Boas Férias, vindo a calhar, portanto, seu contexto livresco e escolar.

Vêem que rimar é quase uma sina? Mas deixo para outro dia a piada do Joãozinho.

E viva o Joãozinho, e vivam Basini, Reiting, Beineberg e Törless, e, claro, o imenso Musil, o melhor Joyce que uma Áustria pré-nazista poderia parir, e que muito ainda ensina. E vivam as férias!


P.S.1: Encontrei o desenho acima, acreditem, num site universitário - no da UFMS de Bonito, é claro. (Mas também poderia ser de Corumbá - é claro.) E viva - e Deus guarde, porque de nossa parte não sei não - Bonito (e Corumbá, e etc.). (Com um abraço aos tios e tias e primos e primas, inclusive ao Breno, que pertence a esses dois paraísos ameaçados.)
P.S.2: Ainda sobre Bonito (e Corumbá), como dizem "os que podem", é "uma boa pedida".
P.S.3: A título de nada: achava muito grotesco, quando estudante, a maior parte dos professores não saberem que muitos alunos "não podem nada" nas férias. Ultimamente, tampouco os professores andam "podendo" muito, mas muitos continuam sem saber.

5 comentários:

  1. Boa noite, Ravel,
    O que quer dizer: "achava muito grotesco, quando estudante, a maior parte dos professores não saberem que muitos alunos "não podem nada" nas férias. Ultimamente, tampouco os professores andam "podendo" muito, mas muitos continuam sem saber." Poder o que? É linguagem clariceana?
    Gostei dos comentários sobre o jovem Törless, que precisariam continuar.
    Talvez, visto que v. fala do indizível - sim: o medo, o desejo e o desamparo - lhe possa interessar um evento duplo:
    Agosto 2011
    Local: Auditório do IEL-UNICAMP

    Dia 08.08

    III Colóquio Margens – Estudos interdisciplinares nas fronteiras da literatura e da linguagem - em dois tempos
    Tempo 1 - Fronteiras e margens com o olhar dos estudos da linguagem.

    Manhã: 10hs-12hs
    O levante da palavra marginal: Heloisa Buarque de Hollanda
    Moderadoras: Suzi Frankl Sperber e Anna Christina Bentes

    Tarde: 14hs-17hs
    Mesa redonda interdisciplinar: Alteridade e dialogismo (ou questões abertas pelo estudo sobre as margens) - Anna Christina Bentes, Suzi Frankl Sperber - Debatedora: Heloisa Buarque de Hollanda

    18hs: Apresentação do filme Mahabharata de Peter Brook (155 minutos)

    Tempo 2
    Dias 09, 10, 11.08.2011
    II Encontro “Literatura e Sagrado” – fronteiras e margens do sagrado com o olhar dos estudos literários. Dias 09, 10 e 11 de agosto de 2011.

    Obrigada, Ravel!!! Aguardo mais Törless. Boas férias!

    Suzi Frankl Sperber

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  2. Minha grande e querida mestra: "estar podendo" não é linguagem clariceana, mas "gíria jovem", ou de jovens de uns dias atrás. Se bem que Clarice usava gírias, não? Em todo caso, gramaticalmente faltaria um verbo aí, e é "gastar". "Estar podendo" é ter dinheiro, e o que me incomodava - e mais ainda a outros colegas - era quando algum professor sem percepção psicológica ou sociológica contava de suas férias na praia com os filhos e depois perguntava para os alunos pobres a respeito das suas. Isso em Corumbá, há trocentos anos, no ensino fundamental, mas o sentimento elitista ainda grassa em nossa categoria, inclusive no ensino superior. Não é o seu caso, que dedica seu tempo e sua inteligência tanto a Rosa ou Clarice quanto a Carolina de Jesus, além desse trabalho artístico e social fantástico que é o Lume. Por outro lado, só recentemente o IEL se abriu para cursos (noturnos, certo?) de Licenciatura, ou seja, para demandas mais efetivamente sociais que as demandas em que intervêm, digamos, os sociólogos da literatura. O que nos lembra que sair dos paradoxos poéticos para os sociais é um gesto tão necessário quanto potencialmente esquivo.

    Mas que belo evento! E para mim, do maior interesse. Quero ir sim, e tomo a liberdade de estender o convite aos leitores e colegas do blog, inclusive o Tião, que prepara um projeto sobre Dostoievski na perspectiva do sagrado.

    Muito obrigado pelo comentário! Um grande e saudoso abraço do eterno aprendiz

    Ravel.

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  3. Recebi por e-mail, de duas colegas e amigas, dois comentários sobre este post, contendo impressões de leitura do livro de Musil, e achei que valia a pena pelo menos comentá-los aqui. Fabiana Rached de Almeida me diz que o leu há anos e ficou com ele travado na garganta; testemunha sua qualidade e lembra que, em se tratando de uma obra de tal quilate (ela usa uma expressão que talvez prefira que eu não reproduza :), a discussão temática e estética nunca acaba. Ana Paula Gomide, que assina uma bela postagem (Administração para a morte) neste blog, comenta que adorou o romance quando o leu tempos atrás, mas também me sugere, rindo virtualmente, que é um livro um pouco "pesado" para uma leitura de férias. Eu concordo com as duas, mas replico à Ana que além de pesado o livro é belíssimo, e com um potencial emocional e moralmente libertário muito grande. Então, vale a pena, mesmo nas férias. Pode reler, viu, Ana? :)

    A propósito, a Estante Virtual tem muitos e muitos volumes. Na primeira página da lista, com exceção de um único exemplar, todos ficam entre 5 e 10 reais: http://www.estantevirtual.com.br/q/robert-musil-o-jovem-torless/2

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  4. Amigo Ravel (grande Maurice Ravel! Bela homenagem - se é que é mesmo homenagem), honra a mim também ter vc me acompanhando. E fostes tu quem teve a iniciativa. Quer saber de uma grande verdade? Quando dou uma olhada no status de alguns dos que me acompanham, fico até meio besta - é o teu caso. E isso não é MESMO rasgação de seda.

    Infim, quanto ao Quintana lá, já me alertaram e vc viu q me apressei em alertar ao próximo, que aquele poeminha "sujo" (entre mil aspas), é apócrifo.

    Mas, sinceramente, não entendo como o talento original de quem escreveu o cujo se esconderia por trás do nome de Mário Quintana. Já q acredito q o próprio Mário ou até Deus! em pessoa, assinaria numa boa "A criação da xoxota". Numa boa e com louvor!

    Abraços! Tamos aí (e lá).

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  5. Acho que é de bom tom dar o link, no SERgioSonico (um dos blogs que inspiraram a criação deste), para o referido poema, chamando atenção, inclusive para o subsequente debate a propósito do ser aquático implicado na questão: http://sergiosonico.blogspot.com/2007/12/quintana-e-quintais.html
    Ainda ontem, aliás, uma amiga que eu não via há décadas (e provavelmente não verei de novo outras tantas) me reafirmava sua fé na Era de Aquário. Ou será a Era do Mar Redivivo? Vai saber.

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