VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

sábado, 23 de novembro de 2013

Não eu, quem então?

Nos últimos meses andei palpitando (principalmente no Facebook) sobre as questões do público de cinema e da produção cinematográfica em Mato Grosso do Sul: reclamando, por exemplo, que os filmes mais significativos que abordam a realidade do Estado, como Terra vermelha e Cabeça a prêmio, são de diretores e produtores externos, e sugerindo que um curso de Cinema na UFMS (a única capaz de abrigar decentemente um curso desse porte) seria fundamental pra começar a mudar essa realidade; o que me parece urgente, num Estado tão carente de consciência crítica, em vista da importância do cinema enquanto arte que reflete sobre o mundo contemporâneo.

Assim, quando soube que o I FestCine Vídeo América do Sul seria aberto por um longa-metragem legitimamente local, ou seja, realizado por um diretor, atores e produtores sulmatogrossenses, me senti na obrigação de ir à exibição – e, claro, palpitar sobre ela. Não me arrependi, pois assisti a um filme belíssimo e porque tenho a chance, agora, de abordar em outro nível a questão a que me referi, por mais que minha compreensão e, portanto, minha leitura do filme sejam precárias e lacunares. Faço questão de sublinhar isso porque realmente saí da sala com muitas dúvidas, tanto em relação à história quanto a como interpretar o que entendi ou julgo ter entendido dela.

É verdade que Não eu, o belo filme de Breno Benetti de que estou falando, não vale apenas pela história que conta, se é que não há, nele, uma dominância do poético sobre o narrativo. E, de fato, são elementos como a plasticidade e o fluxo das imagens, a expressividade dos atores e a trilha sonora que mais sobressaem no filme, já que seu enredo e seu núcleo dramático são, sem serem necessariamente simples, extremamente condensados: em linhas gerais, Não eu trata da crise sexual do anti-herói (ou, digamos, antiguerreiro) Jorge (Luiz Bertazzo, em interpretação excelente), um jovem professor universitário de origem abastada, filho de um fazendeiro, ao que tudo indica latifundiário (David Cardoso, muito bom, também), cujo conservadorismo extremo parece inibir a homo ou bissexualidade – ou, simplesmente, a sexualidade – reprimida, latente ou titubeante do filho.

O enredo se reduz a alguns poucos eventos, que parecem defrontar o protagonista com as possíveis soluções para sua crise – a hetero, a homo ou a bissexualidade –, e outros tantos gestos que indicam os limites de sua revolta com sua própria condição, sendo o mais significativo deles o desenho de uma face deformada e rabiscada numa cadeira modernosa cujo “design” lembra, sugestivamente, um bidê ou um vaso sanitário; além do gesto de acender um cigarro atrás do outro, sintoma-clichê que cria um humorismo involuntário: o camarada sentado ao meu lado chegou a brincar com isso, dizendo que até o fim do filme o personagem ganharia um câncer ou um enfisema pulmonar (mentira, a ideia do enfisema foi minha, hehe).

Parece muito pouco para um longa-metragem, e, de fato, desde o início eu tive a impressão de que Não eu seria uma espécie de curta estendido além da conta. Além do minimalismo da trama, a própria linguagem poética e experimental, incluindo a fotografia em preto e branco, e um certo clima de iminência constante, como se o filme estivesse sempre prestes a terminar – e o próprio título, que parece mais adequado a um curta –, me deram essa impressão.

Geralmente esperamos de um longa-metragem uma história cuja ambientação ou pano de fundo, por mais mal compostos que sejam, tenham relevo suficiente para dar a impressão de que acompanhamos fatos oriundos de uma certa realidade social, menos ou mais encoberta pelas tintas da ficção. Em Não eu, no entanto, a única realidade que parece significativa é a vida interior do protagonista; todo o resto parece derivado, subordinado ou deformado por ela.

No limite de uma crítica que enverede por esse caminho – mas este é apenas um caminho possível –, o filme de Benetti seria um típico “produto da decadência burguesa” (ou pequeno-burguesa, ou, sei lá, rural-burguesa, levando em conta a condição do personagem). Creio que, se estivesse vivo e se interessasse por cinema de vanguarda, meu eterno mestre George Lukács diria algo assim, acusando Benetti de obscurantismo e subjetivismo antissocial. E é interessante, realmente, notar que não há, no olhar de Jorge  (ou no de Benetti?), um reconhecimento efetivo da alteridade social – nem, aliás, sexual, o que vem de par com a ausência completa ou quase completa (pelo menos não tenho lembrança a respeito) da figura materna.


David Cardoso e Luiz Bertazzo

As figuras que fazem as vezes de tais alteridades são as duas mulheres que assediam o protagonista, mas ambas são nitidamente configuradas como peças-chave em sua problemática psicológica: elas apenas lhe oferecem – uma desinteressadamente e a outra não, mas ainda assim com um belo desconto de 50%  – o amor carnal que não parece interessá-lo muito. Uma delas, naturalmente, é de fato uma prostituta, mas configurada com tal glamour que foge um bocado – propositalmente ou não – a uma representação verossímil, principalmente enquanto figura que alude a uma condição social: trata-se, afinal, de uma prostituta de rua.

E tudo isso confina de tal forma o mundo de Jorge à sua subjetividade que não é de se espantar que essa subjetividade e seu drama não tenham despertado empatia ou solidariedade em alguns espectadores, como é o caso de um amigo com quem conversei depois do filme e mesmo, em parte, o meu caso. A prisão do anti-herói em seu mundinho pequeno-burguês e, mais ainda do que a dificuldade extrema de superar sua crise (não ficou claro, para mim, se ele consegue isso), sua impossibilidade de ver além dos limites desse mundinho, criam um efeito que é quase de antipatia, pelo menos em espectadores para quem essas questões têm alguma importância.

Mas justamente nesse ponto surge o nó górdio da intencionalidade autoral (que talvez o próprio autor se disponha – ou não – a desfazer): Benetti expõe criticamente um ponto de vista de classe, problematizando-o, ou apenas exprime esse ponto de vista?

É nesse ponto, aliás, que convém reiterar que o enredo de Não eu é mínimo mas não simples, pois justamente as lacunas, e mais uma profusão de ambiguidades, tornam a diegese do filme bastante complexa e hermética. Em vários momentos, por exemplo, parece que estamos diante de sonhos, talvez relatados na sessão de psicanálise que entrecorta a narrativa. E justamente o episódio da prostituta generosa e vestida de anjo é um deles, e nesse caso a deformação glamourosa pertenceria à subjetividade do personagem, não ao ponto de vista autoral.

Essa questão também se coloca diante de outro elemento, episódico mas importante, na medida em que é outro momento em que atrevemos uma figuração da alteridade social. Falo da presença, no filme, do Teatro Imaginário Maracangalha, que não apenas emprestou a Benetti uma de suas componentes (Fran Corona, em atuação deslumbrante) como comparece numa cena muda e em câmera lenta, realizando um de seus famosos “cortejos”. O mutismo e a quase fixidez da cena aludem, naturalmente, à distância do personagem em relação à euforia que ele tem diante de si. Mas a alegria é apenas metade do Maracangalha: a outra é a insistência na temática das injustiças e opressões sociais, e esta não comparece na cena. Ou talvez compareça, muito subliminarmente, pelo quê de grotesco – e, portanto, de postura antissocial – que acompanha mesmo as intervenções circenses do grupo.

Luiz Bertazzo, Fran Corona e André Tristão

Outro dado importante, e este marcadamente sociológico, é a própria origem social do protagonista. A crise de sexualidade de um filho de um latifundiário, em plena capital do gado, não pode deixar de respingar simbolicamente na estrutura social e antropológica dessa sociedade, na medida em que ela tem no machismo, no zelo do poder pelo pater familias, um de seus elementos. Ao mesmo tempo, a subordinação quase sempre acovardada de Jorge ao pai parece muito marcada para não marcar de forma incisivamente negativa o personagem.

Ao invés de afrontar a autoridade paterna, Jorge parece esperar dela a permissão para dar vazão a suas pulsões, como sugere uma outra cena ao que tudo indica sonhada, na qual o pai lhe pergunta até onde ele já foi e lhe diz pra seguir adiante. O que no fim das contas sugere limites bem estreitos para esse personagem em crise: como diz ao pai, ele é sociólogo, não socialista. Está empenhado em entender algo obscuro em seu trajeto de vida e dentro de si mesmo, mas não parece capaz de enfrentar esse “algo” de peito aberto, quanto mais de lutar por um processo de transformação que atinja as bases de sua condição existencial.

Em suma, há uma rede de ambiguidades em Não eu que exigiria, no mínimo, outra sessão para que eu pudesse abordá-la de forma um pouco mais consequente. Mas quero deixar claro que não subordino minha admiração pelo trabalho de Benetti a quaisquer respostas às minhas dúvidas. A meu ver, seus méritos são indiscutíveis, e têm a ver não apenas com suas qualidades estéticas e as atuações excelentes, ou seja, com seus aspectos “técnicos”, mas também com sua abordagem corajosa de um tema polêmico. Mais do que um resíduo, seu ar de curta-metragem é fruto de sua proposta: retratar uma solidão psíquica extrema, fruto de uma alienação social objetiva, de classe. O tamanho dessa solidão e dessa alienação de classe pediam, sim, um longa-metragem.

Em seus momentos mais bonitos e expressivos, Não eu me lembrou Limite, de Mario Peixoto, que também sempre me deu a impressão de ser um curta superampliado, sem deixar de ser, por isso, uma obra-prima do cinema brasileiro – aliás, mundial. Mas Não eu, digamos assim, territorializa Limite. A precariedade e a estranheza com que isso ocorre me parecem, ao fim deste post, cada vez mais legítimas. De qualquer forma, que seja nossa amada Bigfield, com suas paisagens e pessoas tão queridas, o lugar onde deveria surgir esse retrato da desolação humana, é um privilégio sobre o qual temos muito que pensar.

* * *

Bem, vou ter que deixar a questão da importância do Curso de Cinema em Campo Grande (ou, por que não, em Corumbá) pra um outro post... Se alguém leu este aqui até o fim só pra chegar nessa discussão, foi maus aí...



Cortejo do Maracangalha antes do evento


11 comentários:

  1. ..., não vi NÃO EU. ..., não creio que entre em circuito curitibano. ..., mas parece interessante pela sua quase dissecação. ..., adoro LIMITE, de Mario Peixoto. ..., vou ficar atento.

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  2. Será que era uma crise de sexualidade? Por que toda crise tem relação com sexualidade. Hum, muito freudiano isso. Tenho cá minhas dúvidas. As vezes, o indivíduo esta infeliz por não entender que tem tudo para ser feliz. Mas, realmente, o filme passa essa impressão de que realmente é uma crise de sexualidade, mas pode não ser... confuso. Mas o fato concreto é que foi muito legal ver gente da nossa terra fazer um trabalho tão competente, e que venha mais. Parabéns, belo texto.

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  3. Grande Ravel, parabéns pelo post!! Que bom seria se um jornal de MS tivesse um crítico cinematográfico com seus atributos! #ficadica pro Correio do Estado, rsrs. Os eventos culturais um pouco mais artesanais como cinema, teatro, dança ou música regional, não mega shows, deveriam ter sim um espaço de crítica, estimularia o público, que estimularia a produção num ciclo benéfico à arte em Campo Grande. Enfim, não vi o filme, quando passará de novo? Vai entrar em cartaz? Quanto ao texto, acho bem pouco provável um homossexual fruto de uma classe social, talvez fruto de um sistema sócio/familiar/religioso/educacional. Falar de classe nesse sentido limitaria a subjetividade a uma determinada classe. O que seria altamente burguês, não concorda? Se ele não fosse alienado de sua classe, não poderia ser homossexual? Bem estranho... enfim, não vi o filme, quero ver. Você cumpriu o seu papel me estimulando, parabéns!! Continue! Dia 05/12 vá ver Sonho de Uma Noite de Verão no Teatral Grupo de Risco, às 20h. E pode escrever! rsrs abraços

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  4. Obrigado, amigos, pelos comentários. Se tudo der certo, vou ver sim sua montagem do Shakespeare, Marcus! Vai ser um prazer, adoro essa peça. Bem, não entendi muito bem suas observações, mas eu não fiz exatamente uma relação entre a homossexualidade e a condição de classe, e sim entre esta e o recalque da sexualidade. Nesse sentido concordo com o Washington: não se trata apenas de uma crise de sexualidade. Mas sou meio freudiano mesmo, quer dizer, acho que tudo tem a ver com sexualidade mesmo. Mas também não vamos brigar por causa disso, né, camarada Washington? hehe

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  5. Ah sim, Marcus: não sei quando haverá outra exibição, mas creio que haverá muitas... fiquemos atentos, também quero ver de novo!

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    1. Amanha, dia 04/12, às 20h, Teatro Prosa, Sesc Horto.
      Logo após a exibição vai rolar um bate-papo com diretor e atores.

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  6. Pois é, caro Ravel, muito bom texto. Não vi o filme, mas me interessei enormemente após a leitura de seu artigo. Li os comentários, inclusive os seus, e pensei algo: também acho que tudo tem a ver com a sexualidade, mas quem falou que a sexualidade está "alienada" das coisas desse mundo? Como se pudéssemos dizer: sexualidade vai até aqui e daqui em diante é luta de classes, etc... ora, sexualidade também é política! A sexualidade pode metaforizar outras tantas relações sociais... O bacana é que o cinema e a literatura expõem as diversas (inter) relações em suas estruturas discursivas.

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    1. Pois é, Anônimo, penso como você. Pô, mas quem é você?

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  7. Respondendo a mim mesmo, já sei que o anônimo é a Fabiana Rached, hehe. Mas hoje eu li um texto no blog do Gabriel Lima Leal que me revelou o final do filme, que eu havia perdido por distração. Jorge corre pro mar, como notou o Gabriel, paisagem por assim dizer oposta à campograndense; o que me parece confirmar a ideia de Campo Grande como uma espécie de entidade-personagem do filme...

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  8. Não vi o filme, espero que venha para o circuito SP, pois a temática me interessa. Acredito na seriedade do trabalho de Benetti.
    Gostei da forma como vc abordou o tema da homossexualidade como crise da sexualidade, pois é exatamente o que ocorre, uma crise sexual, independente de ser homo ou bissexual.

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  9. Amanha, dia 04/12, às 20h, Teatro Prosa, Sesc Horto.+ uma exibição
    Logo após a exibição vai rolar um bate-papo com diretor e atores.

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