VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Sobre minha condição canina

Quase sempre que a vida me desperta com uma intensidade maior que a dos dias comuns, tento me pôr num estado de expectativa canina: postar-me diante do ponto de luz e calor humano que me atrai e permanecer à espera de um afago com os pés ou de uma migalha qualquer. Nem sempre esse estado é possível – geralmente as paixões humanas falam mais alto –, mas quando é, vivo um estado de Graça. Os dias se tornam mágicos e as horas cheias de sentido: algo próximo do que se chama Felicidade.

Mas de certa forma essa é uma situação falsa, pois não pode durar muito tempo. Provavelmente só Diógenes e seus discípulos práticos – não os teóricos – viveram a condição canina como algo perene. A verdade é que o homem não nasceu para a felicidade, e mesmo no olhar que se finge canino – e por isso a condição canina
(kynica) é também uma condição cínica no pior sentido – viceja, escondida, a maldita Esperança. Se Diógenes ou, sei lá, Sócrates, Cristo, Buda etc., foram exceções eu não sei. Sei que eu não sou.

E a esperança, é claro, é sempre a de que o contato mínimo produza um grande reconhecimento. Quando essa esperança viceja à flor desta pele quase sem pelos, eu geralmente pulo a etapa canina, e a felicidade, agora puramente projetada, torna-se um monstro bifronte, que me sorri e fascina de um lado e do outro lambe os beiços pronta pra me destroçar e cuspir fora.

Mas nunca é tarde pra redescobrir o cão dentro de mim. O estado autenticamente canino (claro que há deformações, inclusive entre os cães) não é o do fascínio cego nem da sujeição humilhada, mas do amor quase desinteressado: migalhas dormidas, raspas e restos, pequenas porções etc. Enfim, a felicidade à soleira da porta.

Até a inevitável recaída na condição humana, e a redescoberta – solitária ou não – de que a dignidade do homem reside não na felicidade, mas no amor consciente com que se conduz a luta e a lida diárias. Se mesmo assim os dias continuam a ser mágicos e as horas cheias de sentido, é porque a maldita Esperança acertou dessa vez, ou, quem sabe, porque o homem e o cão interiores se tornaram mais íntimos e colaborativos.

Esses tempos andei pensando em alguém cujo nome não conseguia – nem me interessava muito – guardar. Acho que isso, de pensar quase sem palavras, simplesmente como quem olha um rosto bonito, me criou a ilusão de que se tratava de alguém igual a mim. Mas se nem entre os cães existem iguais absolutos, quem dirá entre as pessoas. É verdade, somos no máximo parecidos. Aliás, somos todos parecidos.

Então é melhor voltar a ser canino – ou cínico no melhor sentido – e esperar (sempre ela, a maldita Esperança) que o olhar que eventualmente cruze o meu possa supor, quem sabe perceber, que o que essa máscara esconde (pois é uma máscara: sejamos cínicos, não hipócritas) não é assim tão mau, tolo ou insípido. Cães não sabem jogar: no máximo correm atrás de uma bola ou brigam por um osso... principalmente se envolto por uma bela porção de carne.



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