VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

domingo, 9 de junho de 2013

Terra Vermelha e a voz que resiste

Osvaldo (Abrisio da Silva Pedro)
Assisti ontem pela terceira vez a uma exibição do filme Terra Vermelha, do cineasta chileno (de nacionalidade italiana) Marco Bechis. A primeira, no hoje extinto Cine Cultura de Campo Grande, me deixou a convicção de que se tratava de um filme fundamental, cuja abordagem sóbria e corajosa de um tema dramático e fulcral ia na contramão da “cosmética da fome” da chamada Retomada do cinema brasileiro.

A segunda, que ocorreu por minha próprio sugestão no IV Encontro de Estudos Literários da UEMS ocorrido no mês passado, relativizou um pouco essa impressão, graças principalmente ao debate conduzido pelo professor Volmir Cardoso Pereira e no qual tomaram parte alguns alunos indígenas da UEMS, inclusive o líder Terena Sérgio da Silva Reginaldo. Enquanto o primeiro sublinhou a presença de alguns clichês cinematográficos e de feição romântica, os segundos indicaram o que haveria de verossímil e inverossímil no retrato dos índios. Entretanto, diga-se logo, nenhuma dessas pessoas negou o valor e a importância do filme de Bechis, cujos acertos todos reconhecem muito mais presentes e marcantes que os clichês e as inverossimilhanças, como o pequeno romance entre Osvaldo, o jovem aprendiz de xamã, e a filha do fazendeiro, uma história com ares de telenovela mas desde o início fadada a um fim melancólico. 


Cacique Nadio (Ambrosio Vilhalva)

Aliás, já é hora de explicar que Terra Vermelha é um filme de ficção baseado nas dramáticas condições de vida (e morte) dos índios Garani-Kaiowa confinados em pequenas e miseráveis reservas na região de Dourados e em sua luta pela reconquista de seus Tekohas: seus lugares de origem e cultura material e espiritual, como explicou o Patrik Adam Alves Pinto, militante da causa indígena e funcionário da Funai, que debateu o filme na exibição de ontem.

Pois bem, e justamente a exibição de ontem – promovida pelo Projeto Cinema (d)e Horror da UFMS – consolidou aquela minha convicção, e com ela a de que Terra Vermelha constitui um verdadeiro aliado (o Coletivo Terra Vermelha é uma prova disso) na luta pelas causas indígenas; mais especificamente, na necessária conscientização da opinião pública quanto à gravidade, amplitude e importância dessas causas, que ultrapassam em muito a realidade indígena. A “questão rural”, a premência de uma reforma agrária efetiva e responsável, são coisas que dizem respeito à possibilidade de um desenvolvimento social e econômico que tenha outra lógica que não a do consumismo predador e crescentemente catastrófico que predomina, aliás, literalmente avança hoje – aliás, há longos cinco séculos – no Brasil.
 

Ademilson Concianza Berga (Ireneu)

Não que o filme tematize sociologicamente isso, mas os dramas que ele mostra propiciam, talvez, o início de uma sensibilização para isso. O gesto do cacique que come um punhado de terra em resposta às declarações de propriedade e pertencimento do fazendeiro são uma resposta, também, ao mundo dos homens, mulheres e crianças que já não podem andar descalços, seja porque o asfalto é muito duro, porque os poucos espaços de terra na cidade estão ou nos parecem imundos ou porque é potencialmente humilhante não ostentar um tênis (ou um celular) da moda. Um drama psicossocial, esse último, que entre os próprios indígenas se soma ao confinamento, o trabalho semiescravo, os assassinatos, o alcoolismo... Nada, decerto, a ver com “nosso mundo”.

Mas justamente ali, no mundo “deles”, onde tudo isso é tão pior, a vitória do jovem herói sobre si mesmo e os maus espíritos tem a força de um efetivo ato de resistência: a mesma que se manifesta, hoje, na decisão dos índios Terena de continuarem exigindo, mesmo sob risco de mais derramamento de sangue, a demarcação de suas terras.


Alicelia Batista Cabreira (Lia)

É verdade que, como sublinhou Patrik Adam, Terra Vermelha exige um trabalho de contextualização histórica e social para a compreensão de muitos elementos da realidade que ele apresenta, como o alcoolismo e a suposta esquiva ao trabalho dos indígenas. Por isso mesmo, seria extremamente oportuno que se editasse e disponibilizasse na internet e por outros meios uma versão do filme com uma contextualização prévia desse tipo – e esse post é também um convite a que se faça isso.

Para além disso, no entanto, Terra Vermelha é um filme que, na súmula de suas qualidades e defeitos, possui um mérito extraordinário: o de nos apresentar e nos fazer aliados de um novo herói: um herói que não é, nem de longe, o índio puro e idealizado d’O guarani (e muito menos a índia passivamente sofredora de Iracema), e que talvez nem seja propriamente – ou apenas – um índio, mas, antes, uma voz: a voz que diz “Eu ganhei, você perdeu”, e que diz que resistir, exigir dignidade e justiça, são atos necessários e possíveis. Para “eles” e para nós, que no fundo estamos no mesmo barco, porque é a mesma questão fulcral que se coloca para todos: em que mundo, em que lugar, em que cultura material e espiritual – em que realidade humana – vamos criar ou estamos criando nossos filhos?

Bem, já se pensa em colonizar Marte, e outros vêem seus “Tekohas” em praias ou lugares piores da Flórida, mas não são esses, certamente, que amam a Terra, menos ainda nossa sofrida terra em brasas.

 

Link para o filme completo no youtube:
Acionar legendas (o filme é em boa parte falado em guarani) no segundo ícone à direita da barra de ferramentas do vídeo.

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