VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

domingo, 17 de julho de 2011

Da vida, da morte: contradições envoltas no tema


Há um texto muito instigante de Herbert Marcuse intitulado "A ideologia da morte", publicado na década de 60, que me ocasionou algumas reflexões importantes, à revelia da cultura contemporânea que gera pessoas avessas ao tema (à morte e à questão da mortalidade), cujo assunto tem sido transformado em tabu, apesar de todas as contradições objetivas envolvidas no tema em questão. Na mesma discussão desenvolvida nos últimos capítulos de "Eros e Civilização" sobre a morte, Marcuse retoma o tema sobre a possibilidade de numa sociedade livre e mais justa, o conteúdo e a qualidade da morte humana individual serem modificadas, até chegar ao ponto do homem poder escolher a sua própria forma de morrer estabelecendo uma forma diferençada de se relacionar com a morte. Nesse texto, Marcuse apresenta uma abordagem histórico-filosófica da morte no ocidente - desde a condenação de Sócrates -, passando pelo cristianismo, apontando a questão biológica da morte, até chegar ao conceito freudiano de "pulsão de morte". Das idéias que ora consolidam a morte como algo "metafísico e transcendente", e/ou que ora confirmam a morte como "natureza" - destino pelo qual o homem deve necessariamente se curvar -, o autor então confronta tais idéias de morte(ou ideologias introjetadas pelo homem verificadas, inclusive, na modernidade)com as questões políticas e econômicas de acontecimentos históricos do século XX.

Com o enfraquecimento e a neutralização da religião, ao lado de uma tendência cada vez mais forte de empobrecimento e de mercantilização de bens simbólicos e culturais, a atitude do homem diante da morte é a mais conformista possível e com teor altamente punitivo, associada à introjeção do sacrifício individual - para atender interesses econômicos -, na qual a idéia de morrer é vista como via de "libertação" de uma vida sofrida, pautada no sacrifício, ao mesmo tempo em que o medo da morte - essa, vista como vergonhosa e ameaçadora - tem se tornado cada vez mais exagerado. E tal situação paradoxal chega ao máximo quando se verifica a naturalização de mortes de vidas consideradas "descartáveis" - os pobres, os miseráveis, os considerados bandidos e toda uma população alvo de ataques de guerras -, cuja justificativa se dá pelos critérios estabelecidos pela racionalidade econômica e instrumental dominantes. Tal situação agravante pode ser traduzida nos seguintes termos: as pessoas "mantidas vivas" pelo sistema são aquelas ativamente envolvidas na vida produtiva econômica, enquanto uma massa de pessoas que reivindicam sua sobrevivência tem gerado aborrecimentos. Mas o ponto crucial do texto é quando Marcuse levanta a idéia da morte, considerada "natural", na realidade, ter se tornado "segunda natureza" na nossa cultura beligerante, posto ser objeto de manipulação psíquica de grupos poderosos que instilam nas pessoas a idéia de que a morte tem sua característica de "fatalidade" e de "destino". Quando uma mãe perde um filho na guerra, ou quando um acidente nuclear acontece provocando o morticínio generalizado, as pessoas se curvam e dizem "sim, é preciso que alguns morram para que o equilíbrio geopolítico e econômico se restabeleça", bem ao gosto de uma sociedade que recusa dar sentido e significado a uma vida desejável! "Auschuwitz é mais do que uma alegoria na nossa cultura", como afirmou Adorno, pois presenciamos novas formas de campos de concentração.

Mas sobre a tese de que a "ideologia da morte" pode ser superada, levantada por Marcuse, caso as condições objetivas sejam transformadas, o autor também levanta a questão da necessidade de meios tecnológicos para tal. De fato, já alcançamos esses meios pelos quais verificamos o aumento de expectativa de vida das pessoas. Mas como o autor mesmo discute, nesse excesso de bens de consumo e de capitalização mundial, a vida prolongada sob condições cada vez mais injustas de existência não é mais tão desejável. O acesso e o "direito" ao prolongamento da vida é para poucos e, mesmo assim, dentro de condições na qual a desejável "imortalidade" não tem sido tão prazerosa e digna de ser vivida. Se, por um lado, o prolongamento da vida gera um comportamento que acusa a morte e o envelhecer como algo humilhante e vergonhoso - ao mesmo tempo em que a morte continua ainda sendo uma promessa de "liberdade", já que ainda não alcançamos uma vida terrena e material tão justa e prazerosa assim -, por outro, o "assassinato" de anônimos e de outros que não fazem parte dos grupos "eleitos para a imortalidade" é exibido nos meios de comunicação de massa de forma espetacular.

Ora, tristes conclusões podemos retirar desse quadro também apontado por Marcuse, cujas idéias têm implicações muito mais sérias do que imaginamos. O homem que tende a fugir da morte por horror a ela, negando a questão da mortalidade, assim criando subterfúgios para se desviar do "destino" biológico - determinado e mediado socialmente -, acaba por perder sua "humanidade", já que, como Borges (citado por Bauman ) escreveu no conto "O Imortal", a morte derrotada também derrotaria o homem ( o sentido de todas suas proezas, lamúrias, etc); Mas o desejo de não morrer, por sua vez, entra em conflito com uma existência empobrecida de uma vida que traiu todos os sonhos e promessas e que, assim, impele os homens ao desejo de morte como "promessa de liberdade" e como consolo - e a morte forjada socialmente, maqueia-se "ideologicamente" como destino natural. E uma grande maioria que, considerada inadequada e excluída dos meios que poderiam prolongar a sua existência (saúde, emprego, educação) numa sociedade marcada pela desigualdade social, é descartada do direito de viver. Como Marcuse afirmou, a morte está longe de ser um dado da "biologia", da "natureza", ou algo que preserva seu sentido "transcendental" consolidado por toda uma tradição de pensamento filosófico, ético, político e moral (também objeto de manipulação para a preservação do status quo). O homem foi expropriado de seu direito de morrer porque a vida também lhe foi expropriada. Junto à reivindicação de uma sociedade justa a morte perderia seu caráter medonho, ameaçador e punitivo, mas, "entre o céu e a terra" há muitos mistérios do que jamais podemos conceber... agora, só resta a todos os homens poderem desvendar esses mistérios e realizar os seus sonhos na terra.

4 comentários:

  1. Oi, Ana! Mais uma vez, obrigado pelo post. Entonces... Sendo fã de ambos, eu concordo com vc e o Marcuse quanto à necessidade de despir as precauções metafísicas que nos separam do sentimento da morte. Mas eu penso um pouco diferente quanto ao "desencantamento" implicado nisso. Primeiro porque meu lado "borgeano" me torna aberto às, digamos, "infinitas possibilidades" (inclusive metafísicas; e, bem, se houver um Deus cruel, nesse caso eu sou contra ele), e segundo porque eu concordo (aí é uma concordância estrita, mesmo) com Lavoisier quanto a nada se perder na natureza (e olha que eu li muito sobre as entropias pós-modernas...). E acontece que o meu vitalismo é meio um "panteísmo", também, ou um "essencialismo", talvez. No fundo, acho que tudo isso - energia, matéria, "essência", "espírito" - é uma coisa só, e acho que eu só ponho as últimas palavras entre aspas porque este é um blog intelectual, rs. E mais, acho que o alento de alguma esperança também é necessário à dignidade humana, como antídoto contra o niilismo (e que vetar esse alento é um gesto autoritário, aliás fartamente praticado no "socialismo real"). Como não transformar isso num constructo alienante é uma outra questão; quem sabe daqui a uns mil anos, se algo em mim subsistir até lá, eu possa comentar algo a respeito, rsrs.
    Um abração!

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  2. Querido Ravel, eu que lhe agradeço pela oprotunidade, embora tenho sido muito "lenta" nas produções de textos. Quanto ao seu comentário (como sempre, cheio de elementos para se pensar), o "desencantamento" da morte é necessário devido ao tipo de "encantamento desencantado" produzido na nossa sociedade contemporânea que ainda continua dominando os homens pela ameaça, quando poderia já libertá-los; a morte é objeto de manipulação política (sempre foi, né?) e envolve as diferenças de classe sociais (a forma, a qualidade do morrer, etc). A esperança, segundo Marcuse, tem que ser vivida aqui na terra... mas continuemos com suas implicações metafísicas!
    Abraços!
    Ana Paula

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  3. É verdade, se não for radicada na Terra, a esperança é apenas um pretexto para a dominação...

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  4. Olá Ana Paula,
    Parabéns pelo post!
    Como foi usada uma imagem do filme "O Sétimo Selo", tomo a liberdade de citar um aspecto interessante do mesmo, que tanto pode ser relacionado com o seu texto, quanto com o pensamento de Marcuse:
    Os únicos que escapam às garras da morte são os artistas. Será porque eles não a temiam, como o cavaleiro?
    Pensando no aspecto simbólico da morte, isto se torna ainda mais paradoxal.

    Abraços,
    Paulo Irineu

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