VIVENCIAL

Viver o cotidiano não exime da tarefa de pensá-lo, como não o faz a prática de experienciar a cultura em suas formas mais acabadas, inclusive naquilo em que nelas se imiscui a chamada vida comum. A proposta deste blog é constituir um espaço de intersecção entre esses campos vivenciais para pessoas que, como nós, têm na reflexão crítica um imperativo para a existência digna do corpo e do espírito – individual e social.

domingo, 24 de julho de 2011

Algo de "inteligente" a dizer sobre isso?


Duas tragédias - muito diferentes em comoção e, sobretudo, proporções, sem que haja uma relação direta entre esses termos - têm ocupado o noticiário desses dias: a morte de Amy Winehouse e o massacre que vitimou, até agora, pelo menos 93 pessoas, em sua grande maioria jovens e adolescentes, na Noruega. O perfil deste blog praticamente me obriga a pelo menos registrar - "arquivar" soa mais inadequado do que nunca - esses tristes eventos.

Como disse, são eventos muito desproporcionais, e há algo de uma coincidência sinistra em sua proximidade, inclusive pelo fato de que é bem possível que tenha sido a morte da cantora britânica o que suscitou mais lágrimas e homenagens ao redor do mundo. Mas qualquer comentário para além disso é abusivo e pernicioso. Amy Winehouse foi uma artista notável, e sua perda precoce - com a mesma idade, como se sabe, de outros músicos igualmente talentosos - é digna, sim, da comoção que despertou. Mais do que isso, é digna da revolta por sabermos que este é mais um caso a atestar essa verdade que Renato Russo sintetizou em um belo e doloroso verso: "E há tempos são os jovens que adoecem".

Mas que dizer do que houve na Noruega? Que dizer do que fez Anders Behring Breivik? Que palavras minimamente inteligentes podem ser ditas diante disso? Tudo o que a análise psicossociológica mais completa possa dizer a respeito é fútil e redundante diante disso que podemos até não dizer com todas as letras, mas sabemos muito bem: que isso é "só" mais um sintoma de um estado de corrosão extrema, da falência estrutural e espiritual desse nosso belo projeto de "civilização".

Não quero com isso minimizar a singularidade do acontecido, tão cheio, aliás, de tragédias individuais. Embora - e é triste constatar e admitir isso - a distância geográfica, as diferenças culturais etc., ou seja, tudo o que torna a realidade dos países nórdicos uma realidade "outra" para um brasileiro, sem dúvida diminua o impacto dessas notíciais em mim. Do contrário, eu talvez adotasse simplesmente - e novamente - aquela sábia divisa, dizem que chinesa, segundo a qual o silêncio sim, é o verdadeiro ouro. Pois é inevitável a sensação de que usar o que houve para "reclamar do sistema" contém algo de leviano.

Mas muito mais leviano não é o que faz "o sistema"? Sim, o Monstro Sist, o sistema de destruição programática da vida. E, já que citei Raul Seixas, e embora talvez não devesse escrever isso num autonomeado espaço crítico, o sentimento mais forte - não direi mais profundo, porque espero que não seja - que me advêm diante disso se traduz naqueles versos em que ele e/ou Paulo Coelho amealham visões proféticas do Apocalipse a Eliot, e as sintetizam num refrão que diz, simplesmente: "Está em qualquer profecia que tudo se acaba um dia". Lembrar - saber - disso, às vezes, é a única coisa que consola de "ver o noticiário" nesses dias.

Nota em 25/07: Se é o caso de dizer algo mais "específico" a respeito dos "atentados" na Noruega, não basta, a meu ver, obervar como eles atestam a ressurgência do espírito nazista (não sendo uma completa surpresa que isso se dê num país nórdico - vide o que os filmes de Bergman testemunham a respeito), ou reforçam, pelo "antiislamismo" de Breivik, a complexidade da situação instaurada pelas ditas "invasões bárbaras". O dado mais surpreendente nisso tudo, a meu ver, é a deferência com que a mídia tem se referido às "ideias" de um fanático tão inconsequente e incoerente quanto qualquer outro (aliás, "qualquer outro" é uma generalização absurda). Eu também acharia louvável a forma como a mesma mídia tem se referido a ele - "o suspeito", e não, por exemplo, "o assassino" ou "o maníaco" -, não fosse o caráter de absoluta exceção desse tratamento, de motivações racialistas evidentes.

Na mesma data: Também quero acrescentar algo - necessariamente mais leve - a respeito de Amy Winehouse. A primeira vez que a vi - e ouvi - foi numa gravação de um show, num dvd que um amigo e ex-aluno, José Fernando, me apresentou. Pelo descompasso entre a figura - já entào algo deteriorada - e a voz, perfeita, e vigorosíssima, cheguei a pensar que se tratasse de um playback, e tive que ser convencido do contrário. Enfim, desde então tenho essa impressão: de que a voz de Amy Winehouse é uma "entidade" como que independente de seu corpo.

Um comentário:

  1. Meu caro, tenho extamente essa impressão - impressão que até o momento não sabia definir: "a voz de Amy Winehouse é uma "entidade" como que independente de seu corpo".
    Abraço.
    Fabiana

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